O facto de o
diretor do DCIAP ter intervindo no processo de Tancos no sentido de os três procuradores
titulares do processo não deverem inquirir o Presidente da República e o Primeiro-Ministro,
para não se beliscar a dignidade e a alta função dos seus cargos, até porque de
nada adiantariam os seus depoimentos, e terem de anular dezenas de perguntas (48
perguntas) que lhes iriam fazer suscitou a
questão da conciliação entre a autonomia do Ministério Público (MP) e a subordinação hierárquica dos procuradores às
chefias respetivas. O predito superior hierárquico sustenta que a competência
para realizar inquirições ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro
pertence aos serviços do MP no Supremo Tribunal de Justiça.
Os três
procuradores exigiram que o diretor do DCIAP colocasse a ordem por escrito, o
que resultou num despacho de 30 páginas. E esta ação foi entendida em alguns
setores do MP como uma interferência no trabalho dos procuradores.
Entretanto,
a Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, na sequência das dúvidas
criadas, solicitou parecer sobre a matéria ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral
da República, que se pronunciou no sentido de os procuradores deverem acatar as
indicações superiores, que não têm de ficar registadas no respetivo processo,
embora como referências a suportes documentais que as partes poderão consultar
se o desejarem. Porém, os procuradores têm a possibilidade de pedirem ao
superior que dê as eventuais indicações por escrito e que as devem recusar se
envolverem conflitos com a sua consciência jurídica.
Posto isto,
Lucília Gago, que pedira tal parecer após sugestão, em outubro passado, do
Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), onde o tema motivou divergências, transformou tal parecer em diretiva. Nos
termos desta diretiva, a doutrina passa a ser que a hierarquia pode intervir
nos processos-crime, “modificando ou revogando decisões anteriores” dos
procuradores. E, derivando de uma ordem hierárquica no processo do furto de material
de guerra em Tancos, já se transformou alegadamente num debate sobre a autonomia
do MP e a intervenção do poder político. Nessa altura já soava o alarme no
Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), com advertências públicas:
“Sem autonomia interna, a autonomia externa do Ministério Público corre
o risco de se transformar numa fraude para o povo em nome do qual a justiça é
administrada”.
E o SMMP
apelou então à Procuradora-Geral da República e ao CSMP para que “determinem a
proibição e correspondente punição de práticas ilegais que são e serão sempre
insustentáveis”.
A este respeito, o líder do SMMP
diz que é “o maior ataque à autonomia dos
magistrados alguma vez efetuado no regime democrático” e oferece forte contestação,
inclusive nos tribunais administrativos. Lucília Gago diz que não é verdade e
que a PGR não tem poderes acrescidos, mas os partidos políticos querem ouvir as
suas explicações.
De acordo
com fonte ligada ao CSMP, a diretiva que reforça os poderes da hierarquia sobre
a autonomia dos procuradores estava prevista para ser discutida, no dia 11, no
início da reunião do CSMP, pois
alguns dos seus membros tinham
ficado desagradados com o facto de a Procuradora-Geral da República ter
transformado um parecer do Conselho Consultivo da PGR em diretiva sem antes o
colocar à discussão no CSMP, motivo por que pretendiam suscitar a questão no
Período Antes da Ordem do Dia (PAOD). Porém, Lucília Gago, em nota enviada às redações no dia 11, informa que
pediu um parecer complementar ao Conselho Consultivo sobre o “regime de acesso
ao registo escrito de decisões proferidas no interior da relação de subordinação
hierárquica” e, até que o Conselho Consultivo emita parecer, decidiu
suspender a publicação em Diário da República da diretiva. Mas o SMMP não desarma.
O Presidente
da República, sustentando que Lucília Gago “deu um passo importante” ao pedir
novo parecer e suspender a diretiva sobre poderes hierárquicos no MP, declarou:
“Ao
dizer que vai pedir novo parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral
da República, portanto, parando, até se conhecer esse parecer, a aplicação da
diretiva, eu penso que a senhora Procuradora-Geral deu um passo importante no
sentido de, por um lado, esclarecer dúvidas, que eram muitas e existiam, e, por
outro lado, contribuir para uma distensão numa magistratura que é muito
importante”.
O Chefe de Estado (tudo
comenta) acrescentou que “não pode haver dúvidas de que o Ministério Público tem uma
função fundamental que, se não for ele a cumprir, ninguém a cumprirá”.
***
Parece que
os procuradores estão a confundir a autonomia e estatuto do MP no âmbito da sua
ação em relação aos órgãos de soberania (como estipula a CRP, art.º 219/2) – não podendo nela interferir, o Chefe de Estado, o
Governo, o Parlamento e os Tribunais – com a subordinação hierárquica, estabelecida
pela CRP no n.º 4.º do art.º 219 e no EMP (Estatuto do Ministério Público). Este documento, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, estabelece no seu art.º 97.º:
“1 - Com respeito
pelo princípio da autonomia do Ministério Público, os seus magistrados são
responsáveis e hierarquicamente subordinados, nos termos da Constituição
e do presente Estatuto. 2 - A
responsabilidade consiste em responderem, nos termos da lei, pelo
cumprimento dos seus deveres e pela observância das diretivas, ordens e
instruções que receberem. 3
- A hierarquia é de natureza funcional e consiste na subordinação dos
magistrados aos seus superiores hierárquicos, nos termos definidos no
presente Estatuto, e na consequente obrigação de acatamento por aqueles das
diretivas, ordens e instruções recebidas, sem prejuízo do disposto nos
artigos 100.º e 101.º. 4 - A
intervenção hierárquica em processos de natureza criminal é regulada pela lei
processual penal. 5 -
Salvaguardado o disposto no número anterior, as decisões finais proferidas
pelos magistrados do Ministério Público em procedimentos de natureza não
criminal podem ser objeto de reapreciação pelo imediato superior hierárquico. 6 - A impugnação judicial dos atos administrativos praticados pelos
magistrados do Ministério Público é precedida de impugnação administrativa
necessária, nos termos do presente Estatuto.”.
O art.º 100.º define as situações e condições em que o
magistrado pode não acatar as indicações superiores; e o art.º 101.º define as
matérias e condições em que o membro do Governo se relaciona com a PGR e o MP.
Os artigos 48.º a 52.º do CPP (Código
do Processo Penal) estabelecem as condições e restrições da legitimidade de
intervenção do MP no processo.
Quer tudo isto dizer que o MP arroga-se poderes demasiados em
relação ao que estabelece a CRP, o MP e o CPP. E isto não é novidade. Já quando
o PSD quis propor a alteração à composição do CSMP de modo que a maioria de elementos
proviesse de fora do sistema, o SMMP fez excessivo alarido agitando o espantalho
da ingerência dos políticos na magistratura; e a proposta caiu. E, sim, o CSMP
não interfere nos processos, antes define estratégias e supervisiona a ação disciplinar.
Assim, o CSMP tem uma composição mais corporativa que o CSM (Conselho Superior da Magistratura). Este tem 7 elementos
designados pelo Parlamento, 2 pelo chefe de Estado e 7 eleitos pelos juízes. E os
tribunais não são apenas autónomos, mas independentes (e as suas decisões prevalecem sobre as de quaisquer outras
autoridades). Ora, cabe ao MP representar
o Estado e defender os interesses que a lei determinar (cf
CRP, art.º 219.º/1);
e a PGR é o órgão superior do MP, com a composição e a competência definidas na
lei (cf
CRP, art.º 220.º/1).
Que temem os procuradores, a não ser a “invasão” do seu
território e o escrutínio externo?
Só penso que, em razão de transparência, as indicações
superiores devem constar nos processos.
2020.02.12
– Louro de Carvalho
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