Trata-se
de um documento papal que é comentado apressadamente como não tendo consignado
a ordenação presbiteral de homens casados e a ordenação diaconal de mulheres –
leitura que não acompanho por ser extremamente redutora e por não abranger o
núcleo essencial, quer do Sínodo, quer da própria exortação apostólica
pós-sinodal.
Sinceramente
não estava à espera que este documento viesse sancionar aqueles dois pontos que
o próprio Sínodo pediu oficialmente (os vaticanistas já
deixavam antever essa não assunção),
mas que talvez ainda não tenham amadurecido na sua discussão. E o livro “Da profundeza dos nossos corações”, do
Cardeal Sarah (e, em parte, de Ratzinger/Bento XVI) não veio favorecer esse
amadurecimento. Por outro lado, medidas inovadoras em concreto costumam surgir
em carta apostólica, em constituição apostólica ou em bula.
Porém, o
Santo Padre não fecha as portas a essas possibilidades, pois refere
expressamente que não cita o documento final do Sínodo porque ele merece ser
lido em conjunto com a exortação pós-sinodal. Além disso, urge a multiplicação
e consolidação dos ministérios laicais que não carecem do sacramento da Ordem,
com especial destaque para as mulheres, advertindo que estas têm um papel muito
ativo a desempenhar, sem que tenham de ser clericalizadas, tal como aponta o
facto de haver na Amazónia poucos diáconos permanentes (casados).
Por
outro lado, enquanto enaltece a Eucaristia como dado constitutivo da vida da
Igreja e lamenta que as comunidades amazónicas tenham muita dificuldade em
aceder a ela, frisa a essencialidade das funções do presbítero que não estão na
animação das comunidades – que pode ser confiada a leigos e leigas sob a
dinâmica apostólica do envio eclesial – mas no poder de celebrar a Eucaristia
cabendo-lhe em exclusivo dizer “Isto é o
meu corpo…” e ministrar o sacramento da Reconciliação/Penitência proferindo
as palavras “Eu te absolvo”. E, para
que as comunidades amazónicas tenham acesso mais facilitado a estes sacramentos
(e
obviamente ao da Santa Unção),
Francisco recomenda a migração missionária de sacerdotes para a Amazónia. Isto
quer dizer que, segundo o Pontífice, antes da ordenação presbiteral de homens
casados e da ordenação diaconal de mulheres, há muitas outras possibilidades a
explorar e consolidar.
Em todo
o caso, o Papa continua a denunciar a injustiça e o crime ecológico e desumano
cometido contra a floresta amazónica e povos autóctones, não penas por
estrangeiros, mas também por autoridades locais que se deixam levar pelo
objetivo do lucro e do falso progresso económico. E o documento releva os
quatro sonhos sobre a Amazónia: o sonho social, o sonho cultural, o sonho
ecológico e o sonho eclesial.
A nível
do sonho social, propõe-se o diálogo
social, que “não se deve limitar a privilegiar a
opção preferencial pela defesa dos pobres, marginalizados e excluídos, mas há
de também respeitá-los como protagonistas”, pois “trata-se de reconhecer o
outro e apreciá-lo ‘como outro’, com a sua sensibilidade, as suas opções mais
íntimas, o seu modo de viver e trabalhar” e, não sendo assim, “o resultado
será, como sempre, ‘um projeto de poucos
para poucos’, quando não um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz”
– o que tornará necessária “uma voz profética”, que nós, como cristãos, somos
chamados a fazer ouvir.
A nível
do sonho cultural, propõe-se o
encontro cultural, pois, “na Amazónia, mesmo
entre os distintos povos nativos, é possível desenvolver relações
interculturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias
de um poder sobre os outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais
diferentes, de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da
esperança”. Por consequência, “em
qualquer projeto para a Amazónia, é preciso assumir a perspetiva dos direitos
dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o
desenvolvimento dum grupo social (...) requer constantemente o protagonismo dos
atores sociais locais a partir da sua própria cultura”. Na verdade, “nem mesmo
a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do
mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano”. E, “se as culturas
ancestrais dos povos nativos nasceram e se desenvolveram em estreito contacto
com o ambiente natural circundante, dificilmente podem ficar ilesas quando se
deteriora este ambiente”.
A nível
do sonho ecológico, o documento
refere que, para cuidar da Amazónia, é bom conjugar a sabedoria ancestral com os
conhecimentos técnicos contemporâneos, mas procurando sempre intervir no
território de forma sustentável, preservando ao mesmo tempo o estilo de vida e
os sistemas de valores dos habitantes”. Com efeito, “a estes, especialmente aos
povos nativos, cabe receber, para além da formação básica, a informação
completa e transparente dos projetos, com a sua amplitude, os seus efeitos e
riscos, para poderem confrontar esta informação com os seus interesses e com o
próprio conhecimento do local e, assim, dar ou negar o seu consentimento ou
então propor alternativas”.
E o documento estriba-se em conceitos científicos, que respeita.
E, a
nível eclesial, o Papa sente:
“Perante tantas necessidades e angústias
que clamam do coração da Amazónia, é possível responder a partir de
organizações sociais, recursos técnicos, espaços de debate, programas
políticos… e tudo isso pode fazer parte da solução. Mas, como cristãos, não
renunciamos à proposta de fé que recebemos do Evangelho. Embora queiramos
empenhar-nos lado a lado com todos, não nos envergonhamos de Jesus Cristo. Para
quantos O encontraram, vivem na sua amizade e se identificam com a sua
mensagem, é inevitável falar d’Ele e levar aos outros a sua proposta de vida
nova: ‘Ai de mim, se eu não evangelizar!’ (1 Cor 9, 16).”.
Depois defende a inculturação e os caminhos da inculturação: inculturação
social e espiritual; inculturação litúrgica (onde
ainda há muito por fazer); e inculturação no mistério.
Por fim, Francisco dirige uma prece a Maria, “a Mãe que Cristo nos deixou”, que, “embora seja a
única Mãe de todos, manifesta-Se de distintas maneiras na Amazónia”. E, sabendo
nós que “os indígenas se encontram vitalmente com Jesus Cristo por muitos
caminhos”, também sabemos que “o caminho mariano contribuiu mais que tudo para
este encontro”.
***
Enfim, vejo na exortação apostólica grande aproximação ao
teor do livro “Uma Igreja de todos e de
alguém”, do Padre José Luzia (Paulinas,
2012),
que descreve, a partir da análise da realidade moçambicana, um conjunto de experiências
de Igreja ministerial sob a égide do então Bispo de Nampula, Dom Manuel Vieira
Pinto, com réplica em Quelimane, em que leigos, mandatados e enviados, animavam
as comunidades com seus ministérios, não como substitutos dos padres, que
rareavam, mas tirando partido da Lumen
Gentium, constituição dogmática sobre a Igreja, e do Apostolicam Actuositatem, decreto conciliar sobre o apostolado dos
leigos – do Concílio Vaticano II – e documentos pontifícios subsequentes. Para tanto,
urgia a formação bíblica e a sua articulação com a realidade cheia de carências
e possibilidades, que induziu uma nova visão de Igreja, não piramidal, mas
participativa e cintilante. É certo que o livro critica recuos em documentos da
Cúria Romana, mas infere que as comunidades eclesiais da África subsaariana são
verdadeiro lugar teológico, o que agora é assumido com a região amazónica.
Porém, há ainda muito caminho por fazer e por percorrer.
2020.02.12
– Louro de Carvalho
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