domingo, 16 de fevereiro de 2020

Cristo assume a Lei, mas é maior que a Lei


Uma passagem do livro do Ben-Sirah (Sir 15, 15-20), tal como o Salmo 1, glosa o tema da opção entre dois caminhos – o caminho da vida e felicidade e o caminho da morte e desgraça, um tema caro à teologia tradicional de Israel. Para os teólogos deuteronomistas (vd Dt 30,15-20), é a grande questão que condiciona o sentido da vida do homem: se este escolhe a via da autossuficiência, à margem dos mandamentos, prepara para si e para a comunidade em que está inserido um futuro de morte e de desgraça; mas, se escolhe viver no “temor” de Deus, constrói para si e para o seu Povo um futuro de felicidade, de bem-estar, de abundância, de paz.
A proposta de opção por uma das duas vias é um desafio à liberdade humana a que o homem deve responder com responsabilidade pessoal, tendo em conta o seu bem e o da comunidade a que pertence. Se a liberdade, muitas vezes, consiste em escolher ou não escolher ou escolher entre várias hipóteses boas, quando se trata de optar entre o bem e o mal, a escolha do mal comporta risco e consequências por que é unicamente responsável o optante. 
Os sábios de Israel perceberam, pela experiência que a história da nação lhes forneceu, que, se o Povo respeita a Lei de Deus, edifica a sociedade fraterna, livre e solidária, mas se escolhe caminhos à margem do Senhor, constrói a sociedade do egoísmo, da exploração, da divisão, do sofrimento, das privações, da morte, expondo-se às grandes catástrofes nacionais.
Neste texto, o Bem-Sirah coloca os homens do seu tempo – oscilantes entre os valores da fé dos pais e os valores propalados pela cultura dominante – ante a opção fundamental que a liberdade lhes oferece: a vida e a desgraça. O homem não é um títere nas mãos de Deus ou um robô que Deus liga e desliga com o seu comando, mas um ser livre, que faz as suas escolhas e que tem nas mãos o próprio destino. Deus indica-lhe o caminho para chegar à felicidade; mas respeita as opções que ele faz. Resta ao homem fazer as suas escolhas e construir o seu destino.
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Por seu turno, a perícopa do Evangelho de Mateus (Mt 5,17-37) apresenta-nos a dupla postura de Jesus perante a Lei: total cumprimento da Lei e total refundação da Lei – porque Ele a assume, mas também a reformula, purifica e a inscreve no interior dos corações. Jesus assegura que não vem abolir a Lei que Deus ofereceu ao Povo no Sinai, mas completar, antes exigindo que nem uma só letra ou um pontinho deixem de ser cumpridos. A par disso, assume-se como superior à Lei, o que Pedro não compreendia: no momento da Transfiguração, vendo que Jesus falava com Moisés e Elias, sugeria a formação de três tendas ali – uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias (vd Mt 17,1-9) – como se os três estivessem em pé de igualdade.
Ora, é necessário que Lei, que se mantém válida, seja encarada, não só como um conjunto de prescrições externas, mas como a expressão concreta da adesão total a Deus, com a lucidez da mente, a ternura do coração e a energia do corpo e da alma. Assim, quem transgredir a Lei e ensinar o contrário do que ela diz, será o menor no Reino dos Céus; mas quem a praticar e a ensinar será grande no Reino dos Céus. É de notar o fulcro da pregação de Jesus: o Reino!
Por isso, surgem logo quatro exemplos sujeitos à dicotomia: “ouvistes o que foi dito aos antigos; porém, eu digo-vos”.
O primeiro refere-se à relação fraterna. Moisés exige não matar, mas na ótica do Mestre (que exige uma nova atitude interior e mais exigente) não matar implica não causar qualquer mal ao próximo, fruto da ira, do egoísmo, da supremacia indevida: insulto, inveja, espezinhamento, exploração, tráfico humano, comercialização sexual do corpo humano, sadismo, tortura, etc.  
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Face a este preceito da Lei moisaica, retomado por Cristo, era legítimo e expectável que os discursos homiléticos, em vésperas de discussão parlamentar sobre a eutanásia, frisassem o dever de proteger a vida humana desde o seu início até ao seu termo natural. A vida humana é um valor universalmente defendido a ponto de serem censuráveis como retrocesso civilizacional os atos que significam sobreposição da honra à vida humana. E a nossa Constituição consagra-a como o primeiro direito (não percebo como o Presidente do Tribunal Constitucional se antecipa, antes de o tema chegar às mãos dos juízes, a dizer que o tema não é da Constituição, que nem obriga nem proíbe a despenalização).
Também se diz que um direito humano não é referendável, o que, a pari, implicaria que um direito humano não é passível de votação parlamentar nem judicial ou de discussão apressada.   
Fala-se no direito de decidir ter uma morte condigna. Sim, mas a morte provocada pelo próprio ou por outrem será condigna? E, enquanto uns acusam outros de quererem resolver de modo fácil e económico o incómodo do sofrimento próprio e alheio, o que dito assim pode ser injusto, outros argumentam que é indigno prolongar a vida artificialmente através da ligação à máquina.
Ora, é de recordar, como referem doutas asserções, que não é eutanásia desligar a máquina quando já não há hipótese de recuperar o doente. Levar à máquina um doente que não espera nada da medicina, ou para quem esta nada lhe venha a dar, e mantê-lo a ela ligado será, antes, obstinação terapêutica. A eutanásia será ajudar através de processos terapêuticos o doente a morrer a seu pedido, facilitando-lhe, para evitar o sofrimento, o suicídio ou mesmo tirar-lhe a vida. Já não o será, se para aliviar a dor, lhe for ministrado um medicamento ainda que, por efeito secundário, lhe possa abreviar a vida.
A questão é que muitos entendem que o direito à vida não é absoluto, mas antepõem-lhe a liberdade e o que entendem por dignidade! Mas esta exige cuidados que teimam em não vir.
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Inevitavelmente o discurso homilético, centrado na defesa da vida, afastou os crentes da profundeza da perícopa evangélica deste 6.º domingo do Tempo Comum no Ano A.
Há, de facto, muitas formas de destruir o irmão, de o eliminar, de lhe roubar a vida: as palavras que ofendem, as calúnias que destroem, os gestos de desprezo que excluem, os confrontos que põem fim à relação interpessoal. Ora, os discípulos não podem limitar-se a cumprir a letra da Lei; têm de assumir a atitude do respeito absoluto pela vida e pela dignidade do irmão. Tanto assim é que Mateus apresenta à sua comunidade a catequese da urgência da reconciliação. Cortar relações com o irmão, afastá-lo da relação, marginalizá-lo é uma forma de o eliminar. Por isso, na perspetiva mateana, a reconciliação com o irmão deve sobrepor-se ao próprio culto, pois é uma mentira a relação com Deus de alguém que não ama o irmão (1Jo 4,20). É de notar que o texto não diz “se te lembras de que tens alguma coisa contra o teu irmão”, mas “se  te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti…”. É uma sensibilidade diferente e mais rigorosa. E a oferta ficará sobre o altar, não a podendo levar o oferente porque já não é sua, mas ali espera até que ele se reconcilie com o irmão.
O segundo exemplo tem a ver com o adultério. Moisés exige não cometer adultério, mas, para Jesus, é preciso ir além da letra da Lei e atacar a raiz do problema: é no coração do homem que nascem os desejos de apropriação indevida do que não lhe pertence. Não é o que entra no homem que o torna impuro, mas o que lhe sai do próprio coração (cf Mt 15,11). Por isso, é ao nível do coração que é preciso realizar uma “conversão”. A referência a arrancar o olho, a cortar a mão – olho e mão são ocasião de pecado, respetivamente como órgão de entrada dos desejos e órgão da ação, através do qual se concretizam os desejos – são expressões duras a significar que é preciso agir onde as ações más do homem têm origem, eliminando, na fonte, as raízes do mal.
O terceiro exemplo refere-se ao divórcio. Moisés permitiu ao homem repudiar a sua mulher, mas Jesus corrige a Lei, assegurando que o divórcio não estava no plano original de Deus, quando criou o homem e a mulher e os chamou a amarem-se e a partilharem a vida. E quem repudiar a sua mulher pode estar a expô-la à ocasião de adultério
O quarto exemplo versa o julgamento. Moisés pede a fidelidade aos compromissos selados com um juramento, mas Jesus, no pressuposto de que a necessidade de jurar implica a existência de um clima de desconfiança que é incompatível com o Reino, exige que os discípulos do Reino gozem de um tal clima de sinceridade e confiança que bastem os simples “sim” e “não”. Assim, qualquer fórmula de juramento, além de supérflua, é sinal de corrupção da dinâmica do Reino.
Há ainda mais dois exemplos que Mateus apresenta nesta ordem de ideias e que são desenvolvidos no 7.º domingo do Tempo Comum.
Um deles alude à Lei de Talião: “olho por olho e dente por dente” – lei razoável que evita as vinganças excessivas, brutais, indiscriminadas… (Dantes, quem arrancasse um olho ou um dente pagava com a vida). Mas Jesus propõe uma lógica inteiramente nova. Não chega manter a vingança dentro de fronteiras ditas razoáveis: é preciso que os membros do Reino sejam capazes de interromper o curso da violência, assumindo uma atitude pacífica, de não resistência, de não resposta às provocações. Assim, não se pode responder com a mesma moeda a quem nos agride fisicamente, mas oferecer a outra face. Perante uma exigência exorbitante, como a entrega da túnica, deve responder-se entregando também a capa. A quem exige o acompanhamento por uma milha, deve acompanhar-se pelo dobro. E Jesus recomenda que não se ignore nem se deixe sem atender o que pede emprestado. Tudo isto quer dizer que os membros da comunidade de Jesus devem manifestar a todos um amor sem medida, muito além do que é humanamente exigido. Dessa forma, eles inauguram uma nova era de relações entre os homens.
O último exemplo refere-se ao amor aos inimigos. A Lei recomendava: “ama o teu próximo e odeia o teu inimigo” (ou deixa de amar o teu inimigo). Doravante, alarga-se o significado de próximo (vd Lc 10,29-37), que abrange o inimigo e os mais afastados. E a exortação de Jesus apresenta uma verdadeira novidade e exige uma autêntica revolução das mentalidades. Para Jesus, não chega amar o que está perto, aquele a quem nos sentimos ligados por laços étnicos, sociais, familiares ou religiosos, mas a todos, sem exceção, inclusive os inimigos. Fica, assim, abolida qualquer discriminação, abatidas todas as barreiras que separam os homens. E isto é porque Deus não faz discriminação no seu amor. Ele é o Pai que não distingue entre amigos e inimigos, que faz brilhar o sol e envia a chuva sobre bons e maus, que oferece o seu amor a todos, inclusive aos indignos. O amor universal de Deus é a razão do amor que os membros do Reino devem oferecer a todos os homens e mulheres que Deus coloca no seu caminho. “Ser filho de Deus” significa dar testemunho do amor de Deus e parecer-se com Deus no modo de agir.
A questão essencial é, pois: quem quer viver na dinâmica do Reino precisa de uma atitude interior nova, de um compromisso com Deus que envolva o homem todo e lhe transforme a mente e o coração, as atitudes e os comportamentos.  
2020.02.16 – Louro de Carvalho

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