Se este dia
23 de fevereiro não fosse domingo, celebrar-se-ia a memória litúrgica de São
Policarpo de Esmirna ou Izmir (na atual Turquia), um dos Padres Apostólicos que ocupou importante lugar nos primórdios da
história da Igreja. Como escreveu São Jerónimo, Policarpo foi discípulo de São João,
o mais novo dos Apóstolos, o autor do 4.º Evangelho e, a par de Paulo, um dos primeiros
grandes teólogos da Igreja. E é um dos primeiros autores cristãos, teólogos.
Para alguns, terá sido ele um dos compiladores e editores do Novo Testamento.
Genuíno é o seu testemunho da doutrina dos Apóstolos, da comunidade de
Jerusalém, da singularidade da intuição dos alvores do Cristianismo, porém, mantendo
o discernimento e a ortodoxia numa época em que eram muitas as versões e interpretações
dos pensamentos e ditos de Jesus e dos Apóstolos, pelo que enfrentou combatendo-as
as heresias e os desvios doutrinais.
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Os Padres
Apostólicos – os mais conhecidos, além de Policarpo, foram Papias de
Hierápolis, Clemente de Roma e Inácio de Antioquia – são os escritores
eclesiásticos que estiveram em contacto direto com os apóstolos. Na verdade, após os escritos do Novo Testamento,
houve, ainda no século I e no começo do II, os dos Padres Apostólicos, a quem
sucederam, nos séculos II e III, os apologetas ou escritores que defenderam a
fé cristã contra os pagãos e as primeiras heresias. Serviram de elo entre a Igreja primitiva e a Igreja do mundo
greco-romano.
Dada a sua antiguidade, os Padres Apostólicos são muito estimados. Os seus escritos
têm semelhanças com os do Novo Testamento, a ponto que alguns chegarem a ser
considerados canónicos (vg:
a Didaqué, a epístola de Clemente, a do PseudoBarnabé). Não escreveram tratados teológicos,
mas geralmente cartas grego que abordam assuntos de disciplina, recomendam a
unidade da Igreja e a autoridade dos Apóstolos.
São
apostólicos por terem contactado diretamente com os apóstolos; por terem
trabalhado todos eles nos grandes polos
difusores da Igreja primitiva, da fé e da cultura cristãs, a par de Alexandria
e de Jerusalém, centros de fusão de culturas antigas, como a egípcia, a judaica, grega e latina;
por terem sido ativos no
labor da transmissão
do testemunho que aprenderam
diretamente dos
apóstolos, deles receberam a marca do
primeiro grupo e a disseminaram por novos caminhos e novas comunidades; por terem escrito textos fundamentais a partir da partilha desses
testemunhos e da sua aprendizagem com os apóstolos, tendo sido autores das
primeiras obras de apologia, defesa e explicação da fé (trabalho
árduo e difícil, naqueles tempos difíceis, mas levado até ao fim); e por terem assumido, como os apóstolos, o martírio
pagando com a vida a abnegação e o testemunho vivo.
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Pouco se
sabe da vida de Policarpo, filho de pais cristãos, que terá nascido por volta
do ano 69 ou do ano 70 (alguns alvitram o ano de 89, inverosímil), em Esmirna (na Ásia Menor), maioritariamente grega (Jónia). O nome Πολύκαρπος (Polýkarpos) significa “muitos frutos” ou o “frutífero”.
Conhecem-se só duas fontes principais sobre a sua vida: o “Martírio de Policarpo”, de autor anónimo, carta da comunidade de
Esmirna dirigida à comunidade cristã de Filomelio, cidade da Frígia (Noroeste da
atual Turquia) e em que se
narra o martírio do santo; e textos de Santo Irineu de Lyon, seu discípulo, que
o menciona no “Adversus Haereses” (“Contra os
Hereges”), bem como em cartas a Florino e
também ao Papa Vítor. Mas Irineu menciona ainda, nas suas obras, a “Carta de Policarpo aos Filipenses”, São
Jerónimo refere também Policarpo, no seu “De
Illustribus Viris” (XVIII) ou “Dos Homens Ilustres” e Eusébio de
Cesareia, na sua “História Eclesiástica” (IV 15, 1-43). Também referem Policarpo duas epístolas de Inácio de
Antioquia, sendo uma delas dirigida ao santo de Esmirna e a outra aos
habitantes desta cidade. Inácio de Antioquia, figura importantíssima do
Cristianismo dos primeiros séculos e seu companheiro, cita ainda Policarpo em
cartas que enviou aos cristãos de Éfeso e Magnésia, na Ásia Menor. Tertuliano,
autor cristão da época, alude também a Policarpo, o que cauciona ainda mais o
valor e dimensão, não apenas teológica, mas também histórica do santo de
Esmirna, plenamente validados pelos autores acima citados. A sua autoridade e
valor pastoral estão mais do que comprovados, sendo os seus testemunhos ou
alusões, diretas ou indiretas, indicadores e fontes de informação acerca das comunidades
cristãs coevas. É ainda de referir que, em 1999, alguns fragmentos coptas dos
séculos III a VI sobre Policarpo foram publicados sob o título de “Fragmentos de Harris”.
São
efetivamente poucas as fontes, mas são todas de autores e obras fundamentais da
história da Igreja primitiva, o que atesta a grandeza de Policarpo, considerado
um dos Padres da Igreja antiga mais referenciais. Depois da narrativa da morte
de Estêvão, o protomártir, a descrição do martírio de Policarpo é a segunda
referência, em importância e autenticidade, no género da literatura
martirológica. É de caráter reto, elevado saber, amor à Igreja e fiel à
ortodoxia da fé.
Com Papias
de Hierápolis foi discípulo de João o Presbítero (ou Apóstolo, ou Evangelista… três
figuras ou a mesma, de um deles foi), que
provavelmente o consagrou bispo de Esmirna, sob o imperador romano Trajano (98-117). Terá sido prelado daquela cidade jónica até 23 de fevereiro
de 155, quando ali foi martirizado (na fogueira ou esfaqueado, pois as
labaredas não o queimavam), o que
equivale a dizer que serviu a comunidade como bispo cerca de 40 anos.
Foi um bispo
estimado no seu tempo, com autoridade, pastoral como teológica, tendo até em
154 sido escolhido e convocado para ir a Roma como representante da Igreja da
Ásia, para discutir com o Papa Aniceto (c. 157-168) a data de celebração da Páscoa. As datas referidas
são as que se consideram ser as do papado deste Pontífice sírio, amigo de
Policarpo e dos teólogos asiáticos contemporâneos, embora o “Annuarium Ponitificum” dê o início do
pontificado de Aniceto em 153. Todavia, mais importante que as datas, é o
prestígio intelectual e pastoral de Policarpo, famoso também pelas suas
posições contra as heresias, em particular a docetista de Marcião e Valentino,
que sustentava que o corpo de Jesus era uma ilusão (a crucificação
terá sido apenas aparente). Em Roma,
como em Esmirna, combateu esta heresia, como outras, por exemplo, o gnosticismo
de Marcião (ou Marciano), que,
segundo Irineu de Lyon, terá encontrado Policarpo em Roma, na ida deste até
junto de Aniceto, e a quem o Bispo de Esmirna chamara “primogénito do demónio”,
como sugerira já na sua “Carta aos Filipenses”.
Foi
Policarpo capturado em Esmirna, naqueles tempos difíceis dos primórdios da
Igreja. Estácio Quadrado, procônsul romano, em nome do imperador Antonino Pio (138-161), acusou-o de recusar o sacrifício em nome do
imperador, condenando-o a ser queimado vivo no estádio da cidade (no dia 23
de fevereiro, há 1865 anos). Ele
próprio subiu para a fogueira e disse ante o Povo:
“Sede bendito para sempre, ó Senhor; que o Vosso Nome adorável seja
glorificado por todos os séculos”.
Estácio quisera que o bispo renegasse a fé, mas obteve o belo
testemunho de Policarpo:
“Há 86 anos sirvo a Cristo e nenhum mal
tenho recebido dele. Como poderei rejeitar Aquele a quem prestei culto e
reconheço como meu Salvador?”.
É o apostolado regado com o sangue do martírio a verdadeira
semente de cristãos!
2020.02.23 –
Louro de Carvalho
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