domingo, 23 de fevereiro de 2020

São Policarpo de Esmirna, pastor e mártir, um dos Padres Apostólicos


Se este dia 23 de fevereiro não fosse domingo, celebrar-se-ia a memória litúrgica de São Policarpo de Esmirna ou Izmir (na atual Turquia), um dos Padres Apostólicos que ocupou importante lugar nos primórdios da história da Igreja. Como escreveu São Jerónimo, Policarpo foi discípulo de São João, o mais novo dos Apóstolos, o autor do 4.º Evangelho e, a par de Paulo, um dos primeiros grandes teólogos da Igreja. E é um dos primeiros autores cristãos, teólogos. Para alguns, terá sido ele um dos compiladores e editores do Novo Testamento. Genuíno é o seu testemunho da doutrina dos Apóstolos, da comunidade de Jerusalém, da singularidade da intuição dos alvores do Cristianismo, porém, mantendo o discernimento e a ortodoxia numa época em que eram muitas as versões e interpretações dos pensamentos e ditos de Jesus e dos Apóstolos, pelo que enfrentou combatendo-as as heresias e os desvios doutrinais.
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Os Padres Apostólicos – os mais conhecidos, além de Policarpo, foram Papias de Hierápolis, Clemente de Roma e Inácio de Antioquia – são os escritores eclesiásticos que estiveram em contacto direto com os apóstolos. Na verdade, após os escritos do Novo Testamento, houve, ainda no século I e no começo do II, os dos Padres Apostólicos, a quem sucederam, nos séculos II e III, os apologetas ou escritores que defenderam a fé cristã contra os pagãos e as primeiras heresias. Serviram de elo entre a Igreja primitiva e a Igreja do mundo greco-romano.
Dada a sua antiguidade, os Padres Apostólicos são muito estimados. Os seus escritos têm semelhanças com os do Novo Testamento, a ponto que alguns chegarem a ser considerados canónicos (vg: a Didaqué, a epístola de Clemente, a do PseudoBarnabé). Não escreveram tratados teológicos, mas geralmente cartas grego que abordam assuntos de disciplina, recomendam a unidade da Igreja e a autoridade dos Apóstolos.
São apostólicos por terem contactado diretamente com os apóstolos; por terem trabalhado todos eles nos grandes polos difusores da Igreja primitiva, da fé e da cultura cristãs, a par de Alexandria e de Jerusalém, centros de fusão de culturas antigas, como a egípcia, a judaica, grega e latina; por terem sido ativos no labor da transmissão do testemunho que aprenderam diretamente dos apóstolos, deles receberam a marca do primeiro grupo e a disseminaram por novos caminhos e novas comunidades; por terem escrito textos fundamentais a partir da partilha desses testemunhos e da sua aprendizagem com os apóstolos, tendo sido autores das primeiras obras de apologia, defesa e explicação da fé (trabalho árduo e difícil, naqueles tempos difíceis, mas levado até ao fim); e por terem assumido, como os apóstolos, o martírio pagando com a vida a abnegação e o testemunho vivo.
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Pouco se sabe da vida de Policarpo, filho de pais cristãos, que terá nascido por volta do ano 69 ou do ano 70 (alguns alvitram o ano de 89, inverosímil), em Esmirna (na Ásia Menor), maioritariamente grega (Jónia). O nome Πολύκαρπος (Polýkarpos) significa “muitos frutos” ou o “frutífero”. Conhecem-se só duas fontes principais sobre a sua vida: o “Martírio de Policarpo”, de autor anónimo, carta da comunidade de Esmirna dirigida à comunidade cristã de Filomelio, cidade da Frígia (Noroeste da atual Turquia) e em que se narra o martírio do santo; e textos de Santo Irineu de Lyon, seu discípulo, que o menciona no “Adversus Haereses(“Contra os Hereges”), bem como em cartas a Florino e também ao Papa Vítor. Mas Irineu menciona ainda, nas suas obras, a “Carta de Policarpo aos Filipenses”, São Jerónimo refere também Policarpo, no seu “De Illustribus Viris(XVIII) ou “Dos Homens Ilustres” e Eusébio de Cesareia, na sua “História Eclesiástica” (IV 15, 1-43). Também referem Policarpo duas epístolas de Inácio de Antioquia, sendo uma delas dirigida ao santo de Esmirna e a outra aos habitantes desta cidade. Inácio de Antioquia, figura importantíssima do Cristianismo dos primeiros séculos e seu companheiro, cita ainda Policarpo em cartas que enviou aos cristãos de Éfeso e Magnésia, na Ásia Menor. Tertuliano, autor cristão da época, alude também a Policarpo, o que cauciona ainda mais o valor e dimensão, não apenas teológica, mas também histórica do santo de Esmirna, plenamente validados pelos autores acima citados. A sua autoridade e valor pastoral estão mais do que comprovados, sendo os seus testemunhos ou alusões, diretas ou indiretas, indicadores e fontes de informação acerca das comunidades cristãs coevas. É ainda de referir que, em 1999, alguns fragmentos coptas dos séculos III a VI sobre Policarpo foram publicados sob o título de “Fragmentos de Harris”.
São efetivamente poucas as fontes, mas são todas de autores e obras fundamentais da história da Igreja primitiva, o que atesta a grandeza de Policarpo, considerado um dos Padres da Igreja antiga mais referenciais. Depois da narrativa da morte de Estêvão, o protomártir, a descrição do martírio de Policarpo é a segunda referência, em importância e autenticidade, no género da literatura martirológica. É de caráter reto, elevado saber, amor à Igreja e fiel à ortodoxia da fé.
Com Papias de Hierápolis foi discípulo de João o Presbítero (ou Apóstolo, ou Evangelista… três figuras ou a mesma, de um deles foi), que provavelmente o consagrou bispo de Esmirna, sob o imperador romano Trajano (98-117). Terá sido prelado daquela cidade jónica até 23 de fevereiro de 155, quando ali foi martirizado (na fogueira ou esfaqueado, pois as labaredas não o queimavam), o que equivale a dizer que serviu a comunidade como bispo cerca de 40 anos.  
Foi um bispo estimado no seu tempo, com autoridade, pastoral como teológica, tendo até em 154 sido escolhido e convocado para ir a Roma como representante da Igreja da Ásia, para discutir com o Papa Aniceto (c. 157-168) a data de celebração da Páscoa. As datas referidas são as que se consideram ser as do papado deste Pontífice sírio, amigo de Policarpo e dos teólogos asiáticos contemporâneos, embora o “Annuarium Ponitificum” dê o início do pontificado de Aniceto em 153. Todavia, mais importante que as datas, é o prestígio intelectual e pastoral de Policarpo, famoso também pelas suas posições contra as heresias, em particular a docetista de Marcião e Valentino, que sustentava que o corpo de Jesus era uma ilusão (a crucificação terá sido apenas aparente). Em Roma, como em Esmirna, combateu esta heresia, como outras, por exemplo, o gnosticismo de Marcião (ou Marciano), que, segundo Irineu de Lyon, terá encontrado Policarpo em Roma, na ida deste até junto de Aniceto, e a quem o Bispo de Esmirna chamara “primogénito do demónio”, como sugerira já na sua “Carta aos Filipenses”.
Foi Policarpo capturado em Esmirna, naqueles tempos difíceis dos primórdios da Igreja. Estácio Quadrado, procônsul romano, em nome do imperador Antonino Pio (138-161), acusou-o de recusar o sacrifício em nome do imperador, condenando-o a ser queimado vivo no estádio da cidade (no dia 23 de fevereiro, há 1865 anos). Ele próprio subiu para a fogueira e disse ante o Povo:
 Sede bendito para sempre, ó Senhor; que o Vosso Nome adorável seja glorificado por todos os séculos”. 
Estácio quisera que o bispo renegasse a fé, mas obteve o belo testemunho de Policarpo: 
Há 86 anos sirvo a Cristo e nenhum mal tenho recebido dele. Como poderei rejeitar Aquele a quem prestei culto e reconheço como meu Salvador?”.
É o apostolado regado com o sangue do martírio a verdadeira semente de cristãos!
2020.02.23 – Louro de Carvalho

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