A filha mais
velha de José Eduardo dos Santos – que mantém, segundo a revista “Ceoworld”, a 14.ª posição no ranking dos milionários africanos – escreveu a
João Lourenço uma carta de uma página e meia em que fez um pedido explícito de
negociações. Fê-lo pouco depois de os seus bens e contas terem sido arrestados
pela justiça angolana e da divulgação do Luanda Leaks.
Num dos
parágrafos da carta, fundamenta o solicitado no estado da economia nacional e na
responsabilidade social, propondo, em termos duma plataforma segura de
cooperação, a abertura de conversações conducentes à devolução dos 1,1 mil
milhões de dólares (cerca de mil milhões de euros) que deve ao Estado angolano, em troca do levantamento
do arresto.
Porém, a
carta não produziu o efeito almejado, tendo o Presidente sido perentório na
entrevista dada à “Deutsche Welle”
a 3 de fevereiro, ao declarar que gostaria de deixar “garantias muito claras de
que não se está a negociar” e que não se vai negociar, porque houve oportunidade
para o fazer e que não foi aproveitada. Com efeito, “as pessoas envolvidas
neste tipo de atos de corrupção tiveram seis meses de período de graça para
devolverem os recursos que indevidamente retiraram do país”.
Estas
afirmações de João Lourenço surgiram três dias depois de o “Expresso” ter referido que as
negociações estavam em curso, citando Hélder Pitta Grós, Procurador-Geral da
República de Angola, que se apressou a desmentir a notícia, tal como
o faria, a seguir, o advogado Sérgio Raimundo, porta-voz angolano da estratégia
de Isabel dos Santos.
Fontes
políticas angolanas dividem-se em torno da questão se João Lourenço terá equacionado
seriamente esse caminho de negociação. Há quem admita que essa possibilidade esteve durante algum (pouco) tempo em cima da mesa presidencial, tendo vindo a ser afastada depois de alguns
comentários da filha de José Eduardo dos Santos nas redes sociais que
desagradaram a Lourenço. Aliás, a empresária só terá parado com as
publicações sobre o assunto nas redes sociais depois de o pai lhe ter sugerido
que ficasse calada. Ao invés, há quem
garanta que Lourenço excluiu à partida essa possibilidade, o que reforça a tese
dos que apontam uma certa seletividade no combate à corrupção, a grande
bandeira da atual governação. Sintoma disso será o facto de Manuel Vicente
parecer estar a ser poupado, o que Lourenço negou na entrevista que deu
pós-Luanda Leaks, alegando a imunidade de que ainda goza o ex-vice-Presidente e
aduzindo que “o caso está a ser tratado pela PGR”. Outro indício desta
seletividade seria o facto de haver negociações com alguns altos quadros do
Estado acusados de envolvimento em esquemas de corrupção, por exemplo Manuel
Rabelais, antigo ministro da Comunicação Social, um ex-governador do Banco
Nacional de Angola e alguns generais do MPLA.
Para Marcolino
Moco, ex-primeiro-ministro de José Eduardo dos Santos (de 1992 a
1996), a opção de João Lourenço traz
algumas dificuldades. Este advogado e político, que foi eliminado politicamente
(e humilhado
publicamente) pelo
ex-Presidente, tem sido uma voz ponderada no meio angolano, é autor do livro “Angola: Por uma nova partida”, que será lançado
brevemente em Portugal e defende uma “justiça restaurativa” mais do que uma
justiça que prioriza mandar “este ou aquele” para a prisão. Isto quer dizer que
preferia solução diferente da que está a ser seguida por Lourenço nestes casos.
E, sendo certo que podem estar em causa crimes, interroga-se:
“Crimes de
quem? De todos os que dirigiram o MPLA nesse período? Vão todos para a cadeia?
O país para? O MPLA
entrega o poder a outra formação político-partidária? Tem lógica? É exequível?”:
Assim,
argumenta que se trata de crimes que “foram autorizados durante muitos anos”.
Ora, como foi um “problema político,
a solução deve ser política. Na verdade, o que provocou este enriquecimento de
Isabel e toda a desordem de pessoas que só trabalhavam para elas e não para o
país “foi o sistema político”. Saída como a que está a ser equacionada traz
problemas.
Revela o
político e advogado:
“Muito antes de a máquina punitiva entrar em funcionamento, chamei a
atenção para o facto de que a dimensão do desvio do erário público atingira
tais proporções durante os últimos 15 anos do mandato de José Eduardo dos
Santos que não podia ser resolvida com uma justiça do tipo punitivo ocidental.
Houve muitas irregularidades em todo o sistema; sobretudo o partido no poder, o
MPLA, tem culpa no cartório em tudo o que aconteceu.”.
E vai mais
adiante ao sustentar que este foi um cenário facilitado por alguns fatores,
como a opacidade comunicacional: “não se podia falar desta coisa do desvio do
dinheiro”; os tribunais foram proibidos de agir contra; e “o Tribunal
Constitucional, por exemplo, foi ‘obrigado’ a emitir um acórdão que dizia que
os ministros e os titulares do Estado não podiam ser chamados a serem
investigados pela Assembleia Nacional sem autorização do chefe do governo”. Em
suma, “havia uma licença para o desvio, toda
a gente estava envolvida” – diz o jurista. Até “o próprio Presidente
reconheceu isso mesmo”, refere Marcolino Moco, evocando a entrevista à “Deutsche Welle” em que Lourenço assumiu:
“Ninguém pode dizer que não fazia parte
do sistema. Todos nós fizemos parte do sistema”.
E o jurista
interroga-se o que significará esta postura, em termos práticos, em relação a
Isabel dos Santos, suspeita de ter lesado o Estado angolano em mais de mil
milhões de euros em negócios que envolveram a Sonangol e a Sodiam,
por exemplo. Negociar? Punir? Com efeito, para Moco, que foi secretário-geral
do MPLA nos anos 80, “este tipo de justiça não se aplicaria a indivíduos
isolados, mas será o regime” (que no fundo continua o mesmo, com a mesma Constituição,
as mesmas leis, não as mesmas práticas, porque este presidente inegavelmente
trouxe outras) que, antes
de mais, se deve autocriticar, reconhecendo as irregularidades que fomentou de
forma geral.
Depois,
viria o segundo passo, o do arrependimento formal do Governo perante o povo de
Angola e a comunidade internacional a prometer que “o que aconteceu numa mais
aconteceria”.
A seguir,
viria o terceiro e o mais importante passo, para estabilizar a economia e
encontrar solução para os problemas sociais graves, como a fome: o da recuperação dos meios financeiros
desviados, sobretudo para o estrangeiro, pois os investimentos feitos no
país deviam ser tratados de modo a não abalá-los porque “propiciam
empregabilidade, prestam serviços”. Estes teriam um tratamento que se “cingisse
apenas a fazê-los cumprir as regras do fisco e outras do género” e submetê-los
a um processo paulatino de “devolução dos dinheiros desviados”, mas sendo o
foco colocado na “devolução das fortunas colocadas fora do país”.
Por fim, o
quarto passo consistiria em “marcar um dia D a partir do qual se começariam a
aplicar as verdadeiras normas inspiradas no ocidente” – do género quem rouba
vai para a prisão – nunca mais se permitindo qualquer tipo de desvio do erário
público à luz do dia.
Traçado este
itinerário, devia haver tentativa de negociação com todos. Na verdade, como
insiste o jurista, não faz sentido seguir uma linha punitiva do tipo
ocidental como se Angola tivesse sido um país igual aos outros, que não o
foi. É certo que as pessoas tiveram seis meses para devolverem o dinheiro
desviado. Porém, a escolha desta via pressupõe que Angola é um país normal, que
nunca houve nada de especial para não aplicarmos a lei como está. Ora, a
solução política faz-se apenas por essa lei do repatriamento dos bens desviados
do país, mas o sistema pelo qual se quer resolver o problema é inadequado e dá
a sensação de alguma seletividade. E Marcolino Moco continua na sua crítica:
“Estamos a seguir um esquema que não estabiliza o país, vamos por uma
solução casuística, hoje é o ministro dos Transportes, [Augusto Tomás, acusado
de corrupção e preso sem que lhe tenha sido dadas algumas garantias legais],
caso que foi muito descarado na passagem de pastas; depois, Isabel dos Santos;
alguns generais como Kopelipa e Dino; o ex-presidente Manuel Vicente…”.
Assim, uns
entram no raio de ação da justiça, mas não se sabe se outros vão entrar mais
tarde ou se já não vão entrar. E isso
causa um problema de desestabilização permanente do quadro nacional
e “entra em contradição com a vontade que há de tornar Angola num país
confiável, onde se possa investir sem grandes sobressaltos” – observa o
jurista, que antevê:
“Colocando o assunto no campo do judiciarismo de países que sempre tiveram
vida normal, nós vamos errar. Aliás, ouvimos pela primeira vez o Presidente
dizer que também fez parte do sistema, então pela lógica desta solução alguém
pode vir a dizer que João Lourenço – que até é um homem que tem mostrado boas
intenções e quer retificar o rumo do país – também ‘fez isto ou deixou fazer
isto e aquilo e deveria ser julgado’… faz sentido?”.
E sustenta que
não são replicáveis no seu país abordagens da Justiça semelhantes às que se
aplicam a figuras cimeiras de Estados, como os casos de Sócrates em Portugal,
Lula no Brasil, ou mesmo Jacob Zuma na África do Sul. E justifica:
“Nesses países a justiça nunca
esteve bloqueada, como esteve tantos anos em Angola, onde as pessoas que condenavam é que iam
para a cadeia, como o Rafael Marques, já para não falar dos que eram mortos a
tiro como aconteceu ao [Hilbert] Ganga da CASA-CE abatido [por um membro da
Guarda Presidencial de José Eduardo dos Santos enquanto colava cartazes de uma
manifestação, em 2013], em que o assassino foi absolvido porque disse que
estava a defender uma causa patriótica”.
Nestes
termos, o ex-primeiro-ministro angolano invoca, para a sua defesa de uma
justiça restaurativa, o exemplo do que se passou na África do Sul no
pós-apartheid, com a Comissão de Verdade e Reconciliação, que não puniu crimes
cometidos nem pelo regime nem pelo ANC: “Angola
podia aplicar a mesma ideia ao desvio do erário público”.
***
Não há
dúvida de que é uma visão equilibrada a de Marcolino Moco, um político que bem
conhece o regime e que sabe que, se a justiça fiar fino, muitíssimos podem ir
parar à prisão, o que resolve pouco. Porém, bem podia ter ressalvado a
necessidade de os prevaricadores deverem responder oportunamente pelos crimes
perpetrados noutros países e pelos dinheiros que ali aplicaram ao arrepio das
leis dos ditos países, sendo aí sujeitos a inquérito (com
eventual instrução) e julgamento.
A reconciliação
em Angola só peca por tardia. E os Bispos têm-na pedido.
2020.02.17 – Louro de Carvalho
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