Nos últimos quatro anos o Comandante Supremo das
Forças Armadas tem recorrentemente apelado para o reconhecimento do papel dos
militares na sociedade portuguesa e no mundo por parte do Governo e das
populações e tem encarecido a capacidade e o aprumo com que têm desempenhado as
mais diversas missões que lhes têm sido confiadas. Todavia, o desrespeito pela
instituição militar tem sido palmar por parte dos sucessivos governos – e este
não é exceção – quer na falta de investimento nas infraestruturas, quer na
valorização das condições de prestação do serviço, o que leva muita gente a
concluir pela inutilidade das Forças Armadas (FFAA) num pequeno país como o nosso.
Por outro lado, surgem casos que nada abonam em
favor dos servidores militares, de que se destacam: a suposta discriminação de
orientação sexual no Colégio Militar; a morte de dois instruendos num curso de
comandos; e o furto e recuperação de material de guerra dos PNT (Paióis Nacionais de Tancos).
Nestes casos, sobrepôs-se à disciplina e à justiça militares a vertente civil
da disciplina e da justiça (esta
mais complacente, morosa e ineficaz) por via da desconfiança na capacidade de a
instituição militar ministrar a disciplina (que tem sido inconclusiva e passível de recuos) e pelo
facto de terem acabado os tribunais militares para os crimes estritamente
militares em tempos de paz. E, por fim, regista-se o abandono em barda das
fileiras por parte das praças e, recentemente, também dos oficiais (15111 militares saíram das FFAA
em 5 anos) e é difícil preencher as vagas nas academias
militares e na Escola Naval, bem como as abertas para oficiais contratados.
A culpa deste estado de degradação é, sem dúvida,
dos governos e dos chefes militares.
Entretanto, como noticiava o Expresso, do passado sábado, dia 22 de fevereiro, e refere o DN, de hoje, dia 25, quatro oficiais-generais assinaram uma carta de alerta
dirigida ao Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas.
Desses, três são ex-chefes do Estado-Maior: o general Manuel Taveira Martins,
ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea, o general José Pinto Ramalho, ex-chefe
do Estado-Maior do Exército, e o almirante Fernando Melo Gomes, ex-chefe do
Estado-Maior da Armada. O quarto oficial-general é o major-general Luís
Sequeira, ex-secretário-geral do Ministério de Defesa Nacional (MDN).
São todos presidentes dos órgãos
dirigentes do Grupo de Reflexão Estratégica Independente (GREI), que integra um vasto conjunto de oficiais-generais
dos três ramos, na reserva e na reforma, que desempenharam cargos de alta
responsabilidade na hierarquia das FFAA e na GNR. E foi em nome do GREI que
tomaram a iniciativa de escrever àquele que é o garante constitucional do
funcionamento das instituições democráticas.
Os
subscritores dizem estar a assistir “com preocupação ao contínuo processo de
degradação das Forças Armadas e ao consequente aumento das vulnerabilidades do
sistema de defesa nacional e da posição do país no quadro das alianças que
integra”.
E os
generais apresentam dez razões para o “estado da arte”:
- A reforma estrutural iniciada em
2013 designada “Defesa 2020” teve
resultados muito aquém dos objetivos, do que resultaram consequências gravosas
que urge reverter. O Governo de então pretendia “obter ganhos de eficiência,
economias de escala e vetores de inovação” e, sobretudo, “racionalizar a despesa”.
Porém, as reformas passaram a privilegiar a redução de despesa como um fim,
quase sempre com prejuízo dos critérios de racionalidade económica e militar. Assistiu-se a cortes aleatórios nos orçamentos e
nos efetivos, à alienação e abandono de infraestruturas, ao cancelamento de
programas de reequipamento e à venda de equipamentos sem se proceder à
indispensável substituição.
- As
despesas com pessoal, operação e manutenção “têm estado abaixo dos montantes” necessários
para “garantir a prontidão operacional”, pelo que “têm crescido as dificuldades
de manutenção e a sustentação no âmbito geral das FFAA, com maior
incidência na Marinha e na Força Aérea, pelas caraterísticas dos meios que
operam”. O calendário e fluxos financeiros da LPM (Lei de
Programação Militar) sofrem frequentes
descontinuidades por via de cativações, deduções, transferência de saldos e, em
certos casos, dificuldades associadas à complexidade técnica e administrativa
dos processos; a “conservação, manutenção, segurança, modernização e edificação
de infraestruturas” têm sido “insuficientemente realizadas”; há “graves
deficiências a nível da habitabilidade e funcionalidade de muitas
infraestruturas”; e a Marinha, perdido o navio reabastecedor, limita a sua
capacidade operacional às águas nacionais.
- Na reforma
“Defesa 2020”, previa-se um efetivo
nas FFAA de 30 a 35 mil. Porém, no final da década passada (2018-2019), o número estava 30% abaixo desse valor e, no
Exército, era de 50% – mínimos nunca verificados nas FFAA. Quanto à falta de efetivos, o estado das FFAA é grave, mas no caso do
Exército é de “emergência institucional”, pois “uma unidade do Exército só é
passível de emprego operacional quando o seu potencial de combate, em pessoal e
material, se encontra acima dos 75%”.
A situação é insustentável e “já
compromete o cumprimento de algumas missões atribuídas”.
- As alterações ao estatuto dos
militares das FFAA penalizaram os fatores influenciadores da carreira, nomeadamente
na passagem à reserva e à reforma, no condicionamento das promoções e na consequente
progressão na carreira.
- O conceito de condição militar,
definido na lei desde 1989, tem vindo a ser descaraterizado de tal forma que
hoje não passa de um slogan que objetivamente penaliza os
militares.
- O sistema remuneratório dos
militares das FFAA “tem sofrido um progressivo desajustamento em relação a
outros setores da administração pública equiparáveis, quer no leque salarial,
quer nas condições de reforma, quer na remuneração dos cargos de topo na
carreira”.
- Tem-se
acentuado a “tendência para
desvalorizar as qualificações dos militares em relação a funcionários civis”,
com “o progressivo afastamento de militares dos cargos superiores do Ministério
da Defesa”.
- Há vários problemas
de vulto no sistema de saúde militar. Por exemplo, o Hospital das
Forças Armadas “continua a ser afetado por insuficiência de recursos humanos,
de valências e de infraestruturas que o impedem de garantir com eficácia a suas
finalidades” (não acolheu todos os casos do curso de comandos em que morreram dois
instruendos). A reforma realizada “piorou as condições de assistência dos militares e das
suas famílias, sem qualquer poupança de recursos materiais e humanos”. E, no
atinente ao IASFA (Instituto de Ação Social das Forças Armadas), ressalta a “dívida
acumulada de várias dezenas de milhões de euros”, por lhe ter sido
atribuída a responsabilidade pelos custos da ADM (assistência na doença aos militares) sem a correspondente contrapartida.
- Indica-se
como ponto negativo para a situação das FFAA o facto de – pelas alterações no
processo da justiça e da disciplina militar, “bem como medidas avulsas que limitam
a liberdade e a manobra das chefias militares no domínio administrativo e
financeiro” – existirem reflexos negativos a nível do comando da hierarquia
e da disciplina e na eficácia e eficiência militares.
- Tudo isto
deu azo ao fomento da utilização crescente de redes paralelas e horizontais
de associação e de informação no espaço digital. Daí “o enfraquecimento da
cadeia hierárquica e a emergência de condições favoráveis ao aparecimento de
fenómenos inorgânicos”.
Alguns
partidos já reagiram: PCP, CDS e PS. Até ao momento não conheço comentários do
PSD e do BE. Mas, por exemplo, o PCP entende que o aviso dos generais
“tem razão de ser”, mas sem “novidade nas situações descritas, em relação às
quais as associações profissionais têm vindo a alertar”. E o deputado António Filipe, responsável pela
defesa no grupo parlamentar do PCP, lembra que estas situações não nasceram
hoje e que “já eram denunciadas pelas associações quando alguns dos generais
que subscrevem a carta eram chefes dos ramos”. Por isso, sublinha que não podem
isentar-se de “alguma quota de responsabilidade”. O deputado reconhece que são “problemas reais” e que, para serem
solucionados “exigem vontade política muito forte”. Com efeito, para “criar
condições de atratividade é preciso rever as condições salariais e de saídas
profissionais”. Considera o atual Ministro da Defesa Nacional “melhor do que os
antecessores” e a “querer resolver os problemas”, só que o problema são “as
‘contas certas’ – a margem de manobra é zero e quaisquer outras medidas além da
Lei de Programação Militar têm obstáculos enormes”.
Por seu
turno, o presidente do CDS salienta que “as Forças Armadas desempenham um papel
fundamental no exercício da soberania e na defesa da independência nacional, do
território, dos cidadãos e do Estado de direito democrático”. Por isso, vinca:
“A sustentação das Forças Armadas, a preservação do interesse nacional e
o reforço do prestígio externo de Portugal recomendam um diálogo
político-militar construtivo e um amplo consenso político entre os principais partidos”.
Francisco
Rodrigues dos Santos, mostrando-se apreensivo “com o facto de o número de
efetivos se encontrar abaixo do exigível, com a fraca atratividade da carreira
militar, especialmente para os mais jovens, e com os baixos níveis de
investimento na segurança cooperativa no exterior”, diz que devem ter as FFAA todas
as condições de eficácia, operacionalidade e adaptabilidade “às mudanças que se
verificam em termos internacionais – nomeadamente o terrorismo, o cibercrime e
a segurança na gestão dos recursos”. E, contra a precariedade nas FFAA,
observa:
“Com vista a resolver estas dificuldades, é necessária convergência
política e militar nas seguintes respostas: rever o estatuto remuneratório das Forças Armadas; criar um quadro
permanente de praças no Exército e na Força Aérea; implementar modelos
alternativos de recrutamento voluntário nas Forças Armadas; apostar na
segurança cooperativa no quadro das alianças internacionais em que Portugal
está inserido, uma vez que segurança afastada de Portugal é também a nossa
própria defesa”.
Já o PS não
tem dúvidas de que o Governo tem vindo a priorizar o investimento nas FFAA e na
LPM (duvido), que resultou de consenso alargado no Parlamento.
Diogo Leão, membro da Comissão de Defesa Nacional, diz que, em relação às
dificuldades de recrutamento, “os problemas não são novos e têm vindo a
degradar-se na última década”. E julga “extremamente redutor” que “só melhores
salários e carreira” possam determinar a atratividade para o ingresso nas FFAA,
pois, “para muita gente, as Forças Armadas são uma vocação e não apenas uma
profissão”. O deputado não comenta em concreto a iniciativa dos generais, por desconhecer
o teor da carta e, quanto à oportunidade
da mesma, responde:
“Nada a censurar. Tendo muito respeito pelos quatro oficiais-generais
que subscrevem a carta, devemos valorizar todo o debate que se faça na
sociedade e que contará com a experiência destes generais que ocuparam cargos
relevantes.”.
***
Um
Estado tem de ter FFAA sólidas, mesmo que a sua soberania seja apenas
simbólica. E o país é mais que um símbolo e os seus compromissos com a
população e o mundo são prementes.
2020.02.25 –
Louro de Carvalho
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