terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Generais alertam Marcelo para a “pré-falência” das Forças Armadas


Nos últimos quatro anos o Comandante Supremo das Forças Armadas tem recorrentemente apelado para o reconhecimento do papel dos militares na sociedade portuguesa e no mundo por parte do Governo e das populações e tem encarecido a capacidade e o aprumo com que têm desempenhado as mais diversas missões que lhes têm sido confiadas. Todavia, o desrespeito pela instituição militar tem sido palmar por parte dos sucessivos governos – e este não é exceção – quer na falta de investimento nas infraestruturas, quer na valorização das condições de prestação do serviço, o que leva muita gente a concluir pela inutilidade das Forças Armadas (FFAA) num pequeno país como o nosso.
Por outro lado, surgem casos que nada abonam em favor dos servidores militares, de que se destacam: a suposta discriminação de orientação sexual no Colégio Militar; a morte de dois instruendos num curso de comandos; e o furto e recuperação de material de guerra dos PNT (Paióis Nacionais de Tancos). Nestes casos, sobrepôs-se à disciplina e à justiça militares a vertente civil da disciplina e da justiça (esta mais complacente, morosa e ineficaz) por via da desconfiança na capacidade de a instituição militar ministrar a disciplina (que tem sido inconclusiva e passível de recuos) e pelo facto de terem acabado os tribunais militares para os crimes estritamente militares em tempos de paz. E, por fim, regista-se o abandono em barda das fileiras por parte das praças e, recentemente, também dos oficiais (15111 militares saíram das FFAA em 5 anos) e é difícil preencher as vagas nas academias militares e na Escola Naval, bem como as abertas para oficiais contratados. 
A culpa deste estado de degradação é, sem dúvida, dos governos e dos chefes militares.
Entretanto, como noticiava o Expresso, do passado sábado, dia 22 de fevereiro, e refere o DN, de hoje, dia 25, quatro oficiais-generais assinaram uma carta de alerta dirigida ao Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas. Desses, três são ex-chefes do Estado-Maior: o general Manuel Taveira Martins, ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea, o general José Pinto Ramalho, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, e o almirante Fernando Melo Gomes, ex-chefe do Estado-Maior da Armada. O quarto oficial-general é o major-general Luís Sequeira, ex-secretário-geral do Ministério de Defesa Nacional (MDN). São todos presidentes dos órgãos dirigentes do Grupo de Reflexão Estratégica Independente (GREI), que integra um vasto conjunto de oficiais-generais dos três ramos, na reserva e na reforma, que desempenharam cargos de alta responsabilidade na hierarquia das FFAA e na GNR. E foi em nome do GREI que tomaram a iniciativa de escrever àquele que é o garante constitucional do funcionamento das instituições democráticas.
Os subscritores dizem estar a assistir “com preocupação ao contínuo processo de degradação das Forças Armadas e ao consequente aumento das vulnerabilidades do sistema de defesa nacional e da posição do país no quadro das alianças que integra”.
E os generais apresentam dez razões para o “estado da arte”:
- A reforma estrutural iniciada em 2013 designada “Defesa 2020” teve resultados muito aquém dos objetivos, do que resultaram consequências gravosas que urge reverter. O Governo de então pretendia “obter ganhos de eficiência, economias de escala e vetores de inovação” e, sobretudo, “racionalizar a despesa”. Porém, as reformas passaram a privilegiar a redução de despesa como um fim, quase sempre com prejuízo dos critérios de racionalidade económica e militar. Assistiu-se a cortes aleatórios nos orçamentos e nos efetivos, à alienação e abandono de infraestruturas, ao cancelamento de programas de reequipamento e à venda de equipamentos sem se proceder à indispensável substituição.
- As despesas com pessoal, operação e manutenção “têm estado abaixo dos montantes” necessários para “garantir a prontidão operacional”, pelo que “têm crescido as dificuldades de manutenção e a sustentação no âmbito geral das FFAA, com maior incidência na Marinha e na Força Aérea, pelas caraterísticas dos meios que operam”. O calendário e fluxos financeiros da LPM (Lei de Programação Militar) sofrem frequentes descontinuidades por via de cativações, deduções, transferência de saldos e, em certos casos, dificuldades associadas à complexidade técnica e administrativa dos processos; a “conservação, manutenção, segurança, modernização e edificação de infraestruturas” têm sido “insuficientemente realizadas”; há “graves deficiências a nível da habitabilidade e funcionalidade de muitas infraestruturas”; e a Marinha, perdido o navio reabastecedor, limita a sua capacidade operacional às águas nacionais.
- Na reforma “Defesa 2020”, previa-se um efetivo nas FFAA de 30 a 35 mil. Porém, no final da década passada (2018-2019), o número estava 30% abaixo desse valor e, no Exército, era de 50% – mínimos nunca verificados nas FFAA. Quanto à falta de efetivos, o estado das FFAA é grave, mas no caso do Exército é de “emergência institucional”, pois “uma unidade do Exército só é passível de emprego operacional quando o seu potencial de combate, em pessoal e material, se encontra acima dos 75%”. A situação é insustentável e “já compromete o cumprimento de algumas missões atribuídas”.
- As alterações ao estatuto dos militares das FFAA penalizaram os fatores influenciadores da carreira, nomeadamente na passagem à reserva e à reforma, no condicionamento das promoções e na consequente progressão na carreira.
- O conceito de condição militar, definido na lei desde 1989, tem vindo a ser descaraterizado de tal forma que hoje não passa de um slogan que objetivamente penaliza os militares.
- O sistema remuneratório dos militares das FFAA “tem sofrido um progressivo desajustamento em relação a outros setores da administração pública equiparáveis, quer no leque salarial, quer nas condições de reforma, quer na remuneração dos cargos de topo na carreira”.
- Tem-se acentuado a “tendência para desvalorizar as qualificações dos militares em relação a funcionários civis”, com “o progressivo afastamento de militares dos cargos superiores do Ministério da Defesa”.
- Há vários problemas de vulto no sistema de saúde militar. Por exemplo, o Hospital das Forças Armadas “continua a ser afetado por insuficiência de recursos humanos, de valências e de infraestruturas que o impedem de garantir com eficácia a suas finalidades” (não acolheu todos os casos do curso de comandos em que morreram dois instruendos). A reforma realizada “piorou as condições de assistência dos militares e das suas famílias, sem qualquer poupança de recursos materiais e humanos”. E, no atinente ao IASFA (Instituto de Ação Social das Forças Armadas), ressalta a “dívida acumulada de várias dezenas de milhões de euros”, por lhe ter sido atribuída a responsabilidade pelos custos da ADM (assistência na doença aos militares) sem a correspondente contrapartida.
- Indica-se como ponto negativo para a situação das FFAA o facto de – pelas alterações no processo da justiça e da disciplina militar, “bem como medidas avulsas que limitam a liberdade e a manobra das chefias militares no domínio administrativo e financeiro” – existirem reflexos negativos a nível do comando da hierarquia e da disciplina e na eficácia e eficiência militares.
- Tudo isto deu azo ao fomento da utilização crescente de redes paralelas e horizontais de associação e de informação no espaço digital. Daí “o enfraquecimento da cadeia hierárquica e a emergência de condições favoráveis ao aparecimento de fenómenos inorgânicos”.
Alguns partidos já reagiram: PCP, CDS e PS. Até ao momento não conheço comentários do PSD e do BE. Mas, por exemplo, o PCP entende que o aviso dos generais “tem razão de ser”, mas sem “novidade nas situações descritas, em relação às quais as associações profissionais têm vindo a alertar”. E o deputado António Filipe, responsável pela defesa no grupo parlamentar do PCP, lembra que estas situações não nasceram hoje e que “já eram denunciadas pelas associações quando alguns dos generais que subscrevem a carta eram chefes dos ramos”. Por isso, sublinha que não podem isentar-se de “alguma quota de responsabilidade”. O deputado reconhece que são “problemas reais” e que, para serem solucionados “exigem vontade política muito forte”. Com efeito, para “criar condições de atratividade é preciso rever as condições salariais e de saídas profissionais”. Considera o atual Ministro da Defesa Nacional “melhor do que os antecessores” e a “querer resolver os problemas”, só que o problema são “as ‘contas certas’ – a margem de manobra é zero e quaisquer outras medidas além da Lei de Programação Militar têm obstáculos enormes”.
Por seu turno, o presidente do CDS salienta que “as Forças Armadas desempenham um papel fundamental no exercício da soberania e na defesa da independência nacional, do território, dos cidadãos e do Estado de direito democrático”. Por isso, vinca:
A sustentação das Forças Armadas, a preservação do interesse nacional e o reforço do prestígio externo de Portugal recomendam um diálogo político-militar construtivo e um amplo consenso político entre os principais partidos”.
Francisco Rodrigues dos Santos, mostrando-se apreensivo “com o facto de o número de efetivos se encontrar abaixo do exigível, com a fraca atratividade da carreira militar, especialmente para os mais jovens, e com os baixos níveis de investimento na segurança cooperativa no exterior”, diz que devem ter as FFAA todas as condições de eficácia, operacionalidade e adaptabilidade “às mudanças que se verificam em termos internacionais – nomeadamente o terrorismo, o cibercrime e a segurança na gestão dos recursos”. E, contra a precariedade nas FFAA, observa:
Com vista a resolver estas dificuldades, é necessária convergência política e militar nas seguintes respostas: rever o estatuto remuneratório das Forças Armadas; criar um quadro permanente de praças no Exército e na Força Aérea; implementar modelos alternativos de recrutamento voluntário nas Forças Armadas; apostar na segurança cooperativa no quadro das alianças internacionais em que Portugal está inserido, uma vez que segurança afastada de Portugal é também a nossa própria defesa.
Já o PS não tem dúvidas de que o Governo tem vindo a priorizar o investimento nas FFAA e na LPM (duvido), que resultou de consenso alargado no Parlamento. Diogo Leão, membro da Comissão de Defesa Nacional, diz que, em relação às dificuldades de recrutamento, “os problemas não são novos e têm vindo a degradar-se na última década”. E julga “extremamente redutor” que “só melhores salários e carreira” possam determinar a atratividade para o ingresso nas FFAA, pois, “para muita gente, as Forças Armadas são uma vocação e não apenas uma profissão”. O deputado não comenta em concreto a iniciativa dos generais, por desconhecer o teor da carta e, quanto à oportunidade da mesma, responde:
Nada a censurar. Tendo muito respeito pelos quatro oficiais-generais que subscrevem a carta, devemos valorizar todo o debate que se faça na sociedade e que contará com a experiência destes generais que ocuparam cargos relevantes.”.
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Um Estado tem de ter FFAA sólidas, mesmo que a sua soberania seja apenas simbólica. E o país é mais que um símbolo e os seus compromissos com a população e o mundo são prementes.
2020.02.25 – Louro de Carvalho

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