Acreditam
os sequazes de Rosseau que os homens nascem bons, livres e iguais, mas depois,
inseridos no ambiente social, se tornam perversos dando largas à liberdade que
não tem em conta a bondade de meios para se expandir. A livre concorrência sem
limites tem consequências nefastas que a arbitragem estatal não consegue
travar, muito menos contrariar, ficando antes capturada por interesses
poderosos que discretamente se instalam no ordenamento social.
Assim,
por exemplo, para vitimar letalmente um cidadão numa guerra, gasta-se à volta
de meio milhão de euros e para colocar um homem no espaço, gastam-se cerca de 50
milhões, enquanto, para evitar que um indivíduo morra de fome, bastam cerca de
10 euros. Não obstante, os Estados mais poderosos disputam a conquista do
espaço e as guerras pululam um pouco por toda a parte. O mundo passou por duas
terríveis guerras mundiais em que se experimentaram inéditos meios terríveis de
mortandade. E não parece que os países ditos mais poderosos tenham desistido
das ações bélicas sendo-lhes plausíveis os mais diversos pretextos. Quanto ao
combate à pobreza, dificilmente os decisores encaram a sério essa cruzada. Ao
invés, erigem-se como causa da pobreza as mais diversas situações: a guerra, o
trabalho escravo, a migração forçada, o esbulhamento dos bens dos seus legítimos
possuidores, a ocupação selvagem de propriedades, o abandono de familiares, o
desemprego forçado, a tolerância à situação de sem-abrigo… Baseia-se a
produtividade nos salários baixos, na exploração do trabalhador, no trabalho
excessivo, na falta de condições higiénicas, na falta de garantias de
estabilidade no emprego, no estabelecimento de turnos onde a real motivação é o
lucro excessivo, no despedimento forçado, no não reconhecimento de direitos, na
falta de articulação entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar, na
negligência na formação contínua dos trabalhadores e valorização profissional. Estabelecem-se
pensões de reforma e aposentação miseráveis e descura-se a saúde das populações,
ficando obviamente em situação desconfortável os mais pobres. Esvazia-se o
poder económico da classe média, fazendo crescer o número dos que vivem mal e
dando azo a que os que vivem bem sejam cada vez menos, mas tenham cada vez
mais, até que a desgraça lhes bata à porta, valendo-lhes então a inércia do
poder judicial tão lesto e eficaz quando se trata dos pobres. E tudo em nome da
inevitabilidade!
Também
as relações interpessoais e as relações comerciais privilegiam as pessoas
bafejadas pelo sucesso, ainda que tal bafejamento resulte da utilização de
meios ilícitos como o espezinhamento do próximo, a exploração e o latrocínio. Desde
logo a forma de tratamento e outras atitudes mais que reverenciais que humanas em
que os pobres se habituaram a alinhar servilmente, só porque tem de ser.
A nível
das relações comerciais, é ilustrativo o exemplo da aquisição dum televisor. Se
é um pobre a querer adquiri-lo, compra-o a prestações, vindo a pagar muito mais
que o seu preço real; se é um indivíduo da classe média ou um pouco acima,
tê-lo-á pelo preço indicado ou com um desconto simbólico; se se trata dum rico,
certamente que terá um amigo bem colocado na empresa que lho conseguirá com um desconto
de 30 a 40%; e se o adquirente for uma pessoa muito rica ou colocada num patamar
social muito alto, o fabricante oferecer-lho-á.
Depois,
a atitude dos grandes decisores é abstrusa: como se disse, para matar um homem
na guerra, gasta-se cerca de meio milhão de euros, a pôr um homem em órbita,
gasta-se cerca de 50 milhões e, para matar a fome a um homem, gastam-se cerca
de 10 euros. Não obstante, a guerra faz-se pelas mais diversas razões e sob os mais
diversos pretextos, ainda que seja para experimentar novos equipamentos bélicos,
e as investigações espaciais continuam, pois não pode esperar, mas o pobre que
espere, pois bem pode. O progresso civilizacional e o propalado futuro da
humanidade, estribados nas descobertas científicas e técnicas e na conquista do
espaço não se importam de deixar para trás os pobres, esquecendo que são
pessoas.
Perante o
homem com fome, o burocrata de serviço, aconselha-o a apresentar candidatura,
que terá de passar pelo crivo da análise com vista à aprovação; e, se o pobre
se aproxima dum centro de distribuição, o funcionário e os companheiros de
infortúnio mandam-no tomar lugar na fila e aguardar a sua vez, pouco importando
a intensidade e o grau da fome.
Face a significativa
situação de pobreza, o iluminado decisor político cria uma comissão e dota-a
dos grupos de trabalho necessários que farão com rigorosos critérios técnicos a
caraterização do panorama, podendo muito bem as medidas esperar. É óbvio que,
para o amante do progresso e da civilização, o pobre espera, mas o envio da
sonda para Marte não pode esperar, pois está em causa o futuro da humanidade. O
burocrata conformado face ao pobre e à pobreza não tem pejo em dizer: “É a vida!”. E o pobre fica reduzido à
sua insignificância.
Um
cristão nada comprometido com Evangelho, esquecido do contexto em que Jesus
Cristo pronunciou a célebre frase, desculpa-se: “Pobres sempre os tereis convosco!”. Um cristão mais piedoso dirá ao
pobre: “Deus te ajude!”. E um cristão
mais escrupuloso agradece a Deus o ter-lhe dado o pobres para assim poder
exercer a caridade para com o próximo dando-lhe por caridade o que lhe era
devido por justiça e que o dito crente bem lhe pode ter subtraído, por exemplo,
para construir um portentoso empreendimento turístico.
O empregador
dirá ao pobre que lhe pede trabalho: “Já não
admitimos pessoas com a sua idade” ou “Vá
ao Centro de Emprego”. E o indivíduo confiante na tecnologia saberá dizer que
a máquina substitui o homem com vantagem. Aquele a quem nunca faltou dinheiro
sugere ao pobre que vá trabalhar, mas não lhe da emprego, pois o mal do pobre é
não saber orientar-se. E aquele que não quer ver a pobreza reage: “Isso não é possível!”.
***
E corre
o risco de ficar no esquecimento o capítulo 25 do Evangelho de Mateus, que diz:
“O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai!
Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque
tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e
recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me,
estive na prisão e fostes ter comigo’.
“Então, os justos perguntar-lhe-ão: ‘Senhor,
quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de
beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando
te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ E o Rei vai dizer-lhes, em
resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus
irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes’.” (Mt 25,34-40).
Quer
dizer: o Evangelho tem de ser mais lido, proclamado, meditado e levado à
prática.
2020.02.03 –
Louro de Carvalho
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