terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

As refeições em família são tempos de comunicação por excelência


Sara R. Oliveira tem, “no educare.pt”, um artigo, de 5 de fevereiro, sob o título “Telemóveis à mesa? O alerta ‘oportuno’ do Papa” em que chama – e bem – a atenção para a necessidade de respeitar certos momentos de convívio que merecem não ser perturbados. E esses ocorrem sobretudo em família e na escola, nas refeições e em outros momentos em que a comunicação é essencial, nada legitimando que em momentos desses cada um se isole na comunicação com outrem estranho ao momento que o grupo familiar ou o grupo escolar deve privilegiar.
É certo que este é o mundo das novas tecnologias em que os dispositivos móveis fazem parte do cérebro dos nativos digitais. Porém, há momentos de convívio que não se compadecem com o uso do telemóvel, do jornal do tablet, do rádio ou da televisão. Entre estes, sobressaem as refeições em família como tempos de comunicação por excelência.
A predita articulista menciona o que diz ser a homilia da missa do Papa no último domingo de 2019 (dia 29 de dezembro), festa da Sagrada Família, que terá saído ligeiramente do seu discurso “para lançar uma pergunta incómoda na era da globalização e do mundo tecnológico e digital”. Ora, não se trata de homilia de missa nem doutra celebração litúrgica, mas da alocução usual em domingos e outros dias especiais antes da recitação do Angelus (a homilia é reflexão sobre a Palavra de Deus proclamada na liturgia da Palavra duma celebração litúrgica). O Pontífice, fazendo ressonância da liturgia da festa, falou do papel de cada um dos elementos da Sagrada Família: Maria, José e Jesus. E, sublinhando que estes três elementos dão “uma resposta coral à vontade do Pai” e que rezavam, trabalhavam, comunicavam”, interrogava a propósito:
Tu, na tua família, sabes comunicar, ou és como aqueles jovens à mesa, cada qual com o telemóvel, enquanto conversam no chat? Naquela mesa parece que há um silêncio como se estivessem na Missa... Mas não comunicam entre si.”.
E concluiu:
Temos que retomar o diálogo em família: pais, filhos, avós e irmãos devem comunicar entre si... Eis o dever de hoje, precisamente no dia da Sagrada Família. Que a Sagrada Família possa ser modelo das nossas famílias, a fim de que pais e filhos se ajudem mutuamente na adesão ao Evangelho, fundamento da santidade da família.”.
Não obstante, Sara Oliveira reteve o essencial do discurso papal: os telemóveis não devem fazer parte das refeições, pelo que “devemos reanimar a comunicação na família”.
Também a articulista cita Daniel Sampaio, psiquiatra e professor catedrático, que recentemente publicou o livro “Do Telemóvel para o Mundo. Pais e Adolescentes no Tempo da Internet”, reconhece que “o apelo do Papa é oportuno, mas não se deve criticar o uso dos telemóveis, que são muito importantes para comunicar com o mundo”. E, como sustenta no livro, “ninguém deve ter telemóveis à mesa (filhos e pais)”, sustentando que “os telemóveis devem ser desligados antes da hora de dormir”. Depois, retomando a expressão “galáxia internet”, do sociólogo espanhol Manuel Castells, para sublinhar a impossibilidade de hoje se viver sem internet e o aumento diário do número de utilizadores, admite:
Os jovens são os habitantes mais ativos desta nova galáxia e por vezes até a glorificam em excesso. A realidade é que os adolescentes não são capazes de viver sem internet e é bom que pais e professores se convençam disso.”.
De facto, segundo Sampaio, o telemóvel já faz parte do cérebro e do corpo dos jovens, nada adianta afirmar o contrário. É uma constatação não necessariamente uma coisa má, pois trata-se dum pequeno objeto que, permitindo contactar muita gente, marcar uma viagem, um jantar, um encontro, uma festa, “é uma porta aberta para o mundo”. E o autor do livro escreve:
Tudo isto deve ser aproveitado. Estamos num mundo novo e é fundamental que pais e filhos se encontrem nesse mundo e que o telemóvel não seja apenas um motivo de conflito.”.
***
E Sara oliveira dá voz a outros especialistas, que têm em conta a preocupação de Francisco.
Assim, Tito de Morais, fundador do projeto MiudosSegurosNa.Net, que ajuda famílias, escolas e comunidade a promover a segurança online, considerando a declaração do Papa sobre os telemóveis “extremamente oportuna”, refere que a utilização de dispositivos móveis às horas das refeições “está a destruir a comunicação familiar e o próprio tempo de refeição”. E, a propósito, lembra o relato duma pediatra que, ao explicar a uma mãe que às refeições não devia haver intromissão de aparelhos tecnológicos, a senhora perguntou o que era isso de refeições, pois, em sua casa, cada um se servia do tacho na cozinha, indo ela “para a sala ver televisão enquanto comia e o filho para o quarto comer enquanto jogava”.
Tito de Morais, secundando a preocupação do Papa, aponta que, em restaurante, “rara será a mesa com crianças em que estas não estejam hipnotizadas pelo telemóvel ou pelo tablet” e os pais “provavelmente grudados à televisão”. E, observando que o problema é os pais não terem noção de que se estão a retirar de um tempo único, cada vez mais raro, de convívio e diálogo com os filhos, adverte:
Quando se aperceberem do erro que cometeram e procurarem repor esse tempo, já irão tarde demais e dificilmente o conseguirão fazer, por duas razões: o tempo que se perdeu, está perdido, não volta para trás, e já desenvolveram nos filhos, ao longo de anos, um hábito e uma rotina e, como sabemos, hábitos e comportamentos são das coisas mais difíceis de alterar”.
Assim, para o autor do MiudosSegurosNa.Net, há que dizer não aos smartphones, tablets ou televisões ligadas durante as refeições, pois tais momentos devem ser espaços de interação pessoal, para falar, ouvir, conversar. Para tanto, o papel da escola e dos educadores deve centrar-se na educação parental, “mostrando, com exemplos, a importância da preservação do tempo da refeição como um tempo de diálogo familiar e dos benefícios que daí se tiram ao nível do acompanhamento parental da vida dos nossos filhos”. E Tito de Morais conclui:
Pais, famílias, escolas, professores e educadores devem promover o ensino da gestão do tempo e das prioridades como uma competência essencial para os dias de hoje e para o futuro”.
Por seu turno, Luís Fernandes, psicólogo, mestre em Observação e Análise da Relação Educativa, frisando que os telemóveis e as novas tecnologias constituem um enorme desafio para as comunidades e um constrangimento para as famílias em todo o mundo (realidades demasiado evidentes), entende que o alerta do Papa Francisco “faz todo o sentido” e, vindo de quem vem, alcança mais gente, em diversos contextos, fazendo-o com um grande impacto social. Contudo, propõe-se analisar vários fatores e olhar para o mundo digital como um aliado, não como um inimigo. Com efeito, a geração “always on(sempre ligada) vive agarrada à tecnologia. Os nativos digitais não conhecem outro mundo. E os pais, mais velhos, que entraram nessa realidade, sentem que têm de estar sempre ligados, onde estiverem, a que horas for, seja por motivos pessoais, seja por razões profissionais. Por outro lado, sentem que ter-se dado a tecnologia muito cedo aos miúdos acaba por afetar a comunicação. Além disso, os telemóveis nas mãos dos mais novos tornam-se, muitas vezes, momentos de descanso para os mais velhos.
Verificando que “os filhos perdem-se em casa pelas navegações que fazem” e “o tempo de brincar na rua já se encontra em vias de extinção”, o psicólogo vinca:
Na adolescência, os jovens afastam-se um bocadinho, não comunicam tanto com os pais, e as novas tecnologias amplificam a falta de comunicação”.
Sendo assim, é preciso adotar algumas restrições e, se não há telemóveis à mesa, não há para todos, filhos e pais, pais e filhos. E Luís Fernandes aduz que há famílias que, sobretudo ao fim de semana, estabelecem um horário sem telemóveis para passear, fazer jogos, brincar. Pais e filhos, juntos, sem toques e interferências por perto.
E, considerando que a tecnologia também mudou a forma de ensinar, a forma de preparar e dar aulas, com novas ferramentas que prendem a atenção dos alunos, Luís Fernandes avisa:
Temos de ver como usar essas ferramentas a nosso favor e isso passa muito por dialogar e envolver esses dispositivos na aprendizagem. (…) Não faz sentido querer que a tecnologia não faça parte da vida dos nativos digitais.”.
Para o psicólogo, já que proibir não ajuda, nem resulta, o melhor é limitar e consciencializar os mais novos. E o professor pode dar aulas de outro modo, explorar abordagens mais atrativas.
Do seu lado, Sónia Seixas, psicóloga e professora universitária, licenciada em Antropologia Social e em Psicologia Educacional, doutorada em Psicologia Pedagógica, entende que o facto de alguém duma geração anterior comentar ou avaliar comportamentos da geração seguinte, nomeadamente quanto à introdução de elementos de inovação que interferem na vivência quotidiana das duas gerações, é complexo, difícil e possivelmente tendencioso. E, com esta ressalva, fala do assunto e comenta a declaração do Papa Francisco, sobretudo enquanto mãe e membro de uma sociedade em acelerada transformação:
É inevitável que esta nova geração se habitue, desde cedo, a contactar, interagir e comunicar à distância, através dos ecrãs, utilizando habilmente todos os dispositivos e aplicações que se encontram disponíveis e acessíveis à sua exploração e utilização”.
Porém, sublinha que estas novas maneiras de comunicação “não se substituem às formas presenciais de interação que a geração dos seus pais avós não só prefere, como utiliza de sobremaneira”. Por causa destas preferências não coincidentes instalam-se alguns “desencontros comunicacionais” que “não deveriam ser obrigatoriamente entendidos nem como opostos nem como obstáculos”, apesar de a tecnologia, sempre presente, poder dificultar a partilha de alguns momentos em família, como a refeição feita em conjunto. E a psicóloga antropóloga observa:
Nos dias de hoje, em que vivemos o nosso dia a dia de forma acelerada, apressados para conseguirmos responder simultaneamente a todas as demandas profissionais, pessoais e familiares, torna-se difícil garantir momentos em família, onde a comunicação tenha um espaço devidamente assegurado. É, por isso, fundamental criar oportunidades em que todos os elementos da família possam comunicar presencialmente, olharem-se nos olhos, ler e interpretar emoções e estados de espírito através da linguagem não verbal (corporal e facial), escutar, expressar-se verbalmente, sem a mediação de ecrãs.”.
Não obstante a utilização das tecnologias ser muito atrativa, são de ter em conta outros fatores, entre os quais se destaca a vivência em família. Assim, quando a família está reunida, sobretudo à roda da mesa de refeição, devem encontrar-se mecanismos para que se desenvolva a familiaridade, a intimidade, a cumplicidade, a partilha, o auto e heteroconhecimento, ou seja, “pais e filhos devem estar distantes, por momentos, dos alertas de mensagens, do e-mail, daquela necessidade de consultar, de mil informações que passam pelo ecrã”.
A haver, nesta matéria, um papel a atribuir, será à família e não à escola. E esses momentos familiares, a serem ‘regulamentados’ ou negociados, devem sê-lo nesse contexto, com esses interlocutores e tendo como referência a sua própria rotina e dinâmica relacional. Pode não ser eventualmente necessário reestabelecer ou retomar a comunicação na família, mas tem sempre de “haver um esforço consciente e voluntário, para que se mantenha nos termos daquilo que possamos considerar como menos digital e mais presencial, menos online e mais offline”, como refere a psicóloga antropóloga. Neste aspeto, a escola pode prestar um inestimável serviço à família se ajudar a consciencializar os alunos para a importância do ato de comunicar sem ruído.
2020.02.11 – Louro de Carvalho

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