Sara
R. Oliveira tem, “no educare.pt”, um
artigo, de 5 de fevereiro, sob o título “Telemóveis
à mesa? O alerta ‘oportuno’ do Papa” em que chama – e bem – a atenção para
a necessidade de respeitar certos momentos de convívio que merecem não ser
perturbados. E esses ocorrem sobretudo em família e na escola, nas refeições e
em outros momentos em que a comunicação é essencial, nada legitimando que em
momentos desses cada um se isole na comunicação com outrem estranho ao momento
que o grupo familiar ou o grupo escolar deve privilegiar.
É certo que este é o mundo das novas tecnologias em
que os dispositivos móveis fazem parte do cérebro dos nativos digitais. Porém, há
momentos de convívio que não se compadecem com o uso do telemóvel, do jornal do
tablet, do rádio ou da televisão.
Entre estes, sobressaem as refeições em família como tempos de comunicação por
excelência.
A predita articulista
menciona o que diz ser a homilia da missa do Papa no último domingo de 2019 (dia 29 de
dezembro), festa da Sagrada Família, que terá
saído ligeiramente do seu discurso “para lançar uma pergunta incómoda na era da
globalização e do mundo tecnológico e digital”. Ora, não se trata de homilia de
missa nem doutra celebração litúrgica, mas da alocução usual em domingos e
outros dias especiais antes da recitação do Angelus (a homilia é
reflexão sobre a Palavra de Deus proclamada na liturgia da Palavra duma
celebração litúrgica). O
Pontífice, fazendo ressonância da liturgia da festa, falou do papel de cada um
dos elementos da Sagrada Família: Maria, José e Jesus. E, sublinhando que estes
três elementos dão “uma resposta
coral à vontade do Pai” e que “rezavam, trabalhavam, comunicavam”,
interrogava a propósito:
“Tu, na tua família,
sabes comunicar, ou és como aqueles jovens à mesa, cada qual com o telemóvel,
enquanto conversam no chat? Naquela mesa parece que há um silêncio como se
estivessem na Missa... Mas não comunicam entre si.”.
E concluiu:
“Temos que retomar o
diálogo em família: pais, filhos, avós e irmãos devem comunicar entre si... Eis
o dever de hoje, precisamente no dia da Sagrada Família. Que a Sagrada Família
possa ser modelo das nossas famílias, a fim de que pais e filhos se ajudem
mutuamente na adesão ao Evangelho, fundamento da santidade da família.”.
Não obstante, Sara Oliveira reteve o essencial do
discurso papal: os telemóveis não devem fazer parte das refeições, pelo que “devemos
reanimar a comunicação na família”.
Também a articulista cita Daniel Sampaio, psiquiatra e
professor catedrático, que recentemente publicou o livro “Do Telemóvel para o Mundo. Pais e Adolescentes no Tempo da Internet”,
reconhece que “o apelo do Papa é oportuno, mas não se deve criticar o uso dos
telemóveis, que são muito importantes para comunicar com o mundo”. E, como
sustenta no livro, “ninguém deve ter telemóveis à mesa (filhos e
pais)”, sustentando que “os telemóveis
devem ser desligados antes da hora de dormir”. Depois, retomando a expressão
“galáxia internet”, do sociólogo espanhol Manuel Castells, para sublinhar a
impossibilidade de hoje se viver sem internet e o aumento diário do número de
utilizadores, admite:
“Os jovens são os habitantes mais ativos
desta nova galáxia e por vezes até a glorificam em excesso. A realidade é que
os adolescentes não são capazes de viver sem internet e é bom que pais e
professores se convençam disso.”.
De facto, segundo Sampaio, o telemóvel já faz parte do
cérebro e do corpo dos jovens, nada adianta afirmar o contrário. É uma constatação
não necessariamente uma coisa má, pois trata-se dum pequeno objeto que,
permitindo contactar muita gente, marcar uma viagem, um jantar, um encontro,
uma festa, “é uma porta aberta para o mundo”. E o autor do livro escreve:
“Tudo isto deve ser aproveitado. Estamos num
mundo novo e é fundamental que pais e filhos se encontrem nesse mundo e que o
telemóvel não seja apenas um motivo de conflito.”.
***
E Sara oliveira dá voz a outros especialistas, que têm
em conta a preocupação de Francisco.
Assim, Tito de Morais, fundador do projeto MiudosSegurosNa.Net, que ajuda famílias,
escolas e comunidade a promover a segurança online, considerando a declaração
do Papa sobre os telemóveis “extremamente oportuna”, refere que a utilização de
dispositivos móveis às horas das refeições “está a destruir a comunicação
familiar e o próprio tempo de refeição”. E, a propósito, lembra o relato duma
pediatra que, ao explicar a uma mãe que às refeições não devia haver
intromissão de aparelhos tecnológicos, a senhora perguntou o que era isso de
refeições, pois, em sua casa, cada um se servia do tacho na cozinha, indo ela “para
a sala ver televisão enquanto comia e o filho para o quarto comer enquanto
jogava”.
Tito de Morais, secundando a preocupação do Papa,
aponta que, em restaurante, “rara será a mesa com crianças em que estas não
estejam hipnotizadas pelo telemóvel ou pelo tablet” e os pais “provavelmente
grudados à televisão”. E, observando que o problema é os pais não terem noção
de que se estão a retirar de um tempo único, cada vez mais raro, de convívio e
diálogo com os filhos, adverte:
“Quando se aperceberem do erro que cometeram
e procurarem repor esse tempo, já irão tarde demais e dificilmente o
conseguirão fazer, por duas razões: o tempo que se perdeu, está perdido, não
volta para trás, e já desenvolveram nos filhos, ao longo de anos, um hábito e
uma rotina e, como sabemos, hábitos e comportamentos são das coisas mais
difíceis de alterar”.
Assim, para o autor do MiudosSegurosNa.Net, há que dizer não aos smartphones, tablets ou
televisões ligadas durante as refeições, pois tais momentos devem ser espaços
de interação pessoal, para falar, ouvir, conversar. Para tanto, o papel da
escola e dos educadores deve centrar-se na educação parental, “mostrando, com
exemplos, a importância da preservação do tempo da refeição como um tempo de
diálogo familiar e dos benefícios que daí se tiram ao nível do acompanhamento
parental da vida dos nossos filhos”. E Tito de Morais conclui:
“Pais, famílias, escolas, professores e
educadores devem promover o ensino da gestão do tempo e das prioridades como
uma competência essencial para os dias de hoje e para o futuro”.
Por seu turno, Luís Fernandes, psicólogo, mestre em Observação e
Análise da Relação Educativa, frisando que os telemóveis
e as novas tecnologias constituem um enorme desafio para as comunidades e um
constrangimento para as famílias em todo o mundo (realidades demasiado evidentes), entende que o alerta do Papa Francisco “faz todo o
sentido” e, vindo de quem vem, alcança mais gente, em diversos contextos,
fazendo-o com um grande impacto social. Contudo, propõe-se analisar vários
fatores e olhar para o mundo digital como um aliado, não como um inimigo. Com efeito, a geração “always on” (sempre
ligada) vive agarrada à tecnologia. Os
nativos digitais não conhecem outro mundo. E os pais, mais velhos, que entraram
nessa realidade, sentem que têm de estar sempre ligados, onde estiverem, a que
horas for, seja por motivos pessoais, seja por razões profissionais. Por outro
lado, sentem que ter-se dado a tecnologia muito cedo aos miúdos acaba por afetar
a comunicação. Além disso, os telemóveis nas mãos dos mais novos tornam-se,
muitas vezes, momentos de descanso para os mais velhos.
Verificando que “os filhos perdem-se em casa pelas navegações
que fazem” e “o tempo de brincar na rua já se encontra em vias de extinção”, o psicólogo
vinca:
“Na adolescência, os jovens afastam-se um
bocadinho, não comunicam tanto com os pais, e as novas tecnologias amplificam a
falta de comunicação”.
Sendo assim, é preciso adotar algumas restrições e, se
não há telemóveis à mesa, não há para todos, filhos e pais, pais e filhos. E
Luís Fernandes aduz que há famílias que, sobretudo ao fim de semana,
estabelecem um horário sem telemóveis para passear, fazer jogos, brincar. Pais
e filhos, juntos, sem toques e interferências por perto.
E, considerando que a tecnologia também mudou a forma
de ensinar, a forma de preparar e dar aulas, com novas ferramentas que prendem
a atenção dos alunos, Luís Fernandes avisa:
“Temos de ver como usar essas ferramentas a
nosso favor e isso passa muito por dialogar e envolver esses dispositivos na
aprendizagem. (…) Não faz sentido querer que a tecnologia não faça parte da
vida dos nativos digitais.”.
Para o psicólogo, já que proibir não ajuda, nem
resulta, o melhor é limitar e consciencializar os mais novos. E o professor
pode dar aulas de outro modo, explorar abordagens mais atrativas.
Do seu lado, Sónia Seixas, psicóloga e professora
universitária, licenciada em Antropologia Social e em Psicologia Educacional,
doutorada em Psicologia Pedagógica, entende que o facto de alguém duma geração
anterior comentar ou avaliar comportamentos da geração seguinte, nomeadamente
quanto à introdução de elementos de inovação que interferem na vivência
quotidiana das duas gerações, é complexo, difícil e possivelmente tendencioso.
E, com esta ressalva, fala do assunto e comenta a declaração do Papa Francisco,
sobretudo enquanto mãe e membro de uma sociedade em acelerada transformação:
“É inevitável que esta nova geração se
habitue, desde cedo, a contactar, interagir e comunicar à distância, através
dos ecrãs, utilizando habilmente todos os dispositivos e aplicações que se
encontram disponíveis e acessíveis à sua exploração e utilização”.
Porém, sublinha que estas novas maneiras de
comunicação “não se substituem às formas presenciais de interação que a geração
dos seus pais avós não só prefere, como utiliza de sobremaneira”. Por causa
destas preferências não coincidentes instalam-se alguns “desencontros
comunicacionais” que “não deveriam ser obrigatoriamente entendidos nem como
opostos nem como obstáculos”, apesar de a tecnologia, sempre presente, poder
dificultar a partilha de alguns momentos em família, como a refeição feita em
conjunto. E a psicóloga antropóloga observa:
“Nos dias de hoje, em que vivemos o nosso
dia a dia de forma acelerada, apressados para conseguirmos responder
simultaneamente a todas as demandas profissionais, pessoais e familiares,
torna-se difícil garantir momentos em família, onde a comunicação tenha um
espaço devidamente assegurado. É, por isso, fundamental criar oportunidades em
que todos os elementos da família possam comunicar presencialmente, olharem-se
nos olhos, ler e interpretar emoções e estados de espírito através da linguagem
não verbal (corporal e facial), escutar, expressar-se verbalmente, sem a
mediação de ecrãs.”.
Não obstante a utilização das tecnologias ser muito
atrativa, são de ter em conta outros fatores, entre os quais se destaca a
vivência em família. Assim, quando a família está reunida, sobretudo à roda da
mesa de refeição, devem encontrar-se mecanismos para que se desenvolva a
familiaridade, a intimidade, a cumplicidade, a partilha, o auto e
heteroconhecimento, ou seja, “pais e filhos devem estar distantes, por
momentos, dos alertas de mensagens, do e-mail, daquela necessidade de
consultar, de mil informações que passam pelo ecrã”.
A haver, nesta matéria, um papel a atribuir, será à
família e não à escola. E esses momentos familiares, a serem ‘regulamentados’
ou negociados, devem sê-lo nesse contexto, com esses interlocutores e tendo
como referência a sua própria rotina e dinâmica relacional. Pode não ser eventualmente
necessário reestabelecer ou retomar a comunicação na família, mas tem sempre de
“haver um esforço consciente e voluntário, para que se mantenha nos termos
daquilo que possamos considerar como menos digital e mais presencial, menos
online e mais offline”, como refere a psicóloga antropóloga. Neste aspeto, a
escola pode prestar um inestimável serviço à família se ajudar a
consciencializar os alunos para a importância do ato de comunicar sem ruído.
2020.02.11 – Louro de Carvalho
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