O livro de Habacuc,
que trata de questões que relacionam a religião com problemas ligados à
injustiça social e à implantação da justiça na sua época, mostra a conexão
existente entre o fenómeno religioso e o problema da injustiça social, presente
no mundo desde as primeiras civilizações conhecidas. Com efeito, o profeta
viveu no final do século VII a.C., de grave crise religiosa, moral e social no
reino de Judá, e a sua mensagem testemunha vivamente a ação mútua entre Deus e
os seres humanos na implantação da justiça sobre a terra.
Em Habacuc, os
oprimidos e explorados de todos os tempos e lugares encontram “um caminho que
esclarece o seu papel e ação na história, descobrindo a razão para a
resistência e para a esperança”, pois “é através do ser ação do justo que Deus
julga o opressor e liberta o oprimido” (cf Balancin & Storniolo, 1991). De facto, a teimosia do justo, a sua
conscientização e trabalho árduo são o único modo plausível da implantação duma
sociedade mais justa e mais equitativa. Para Bonora (1993) a mensagem do profeta assume “valor de paradigma
ou de esquema teológico interpretativo da história”, ou seja, cada geração encontra
no livro uma mensagem teológica para o seu tempo, que mantém plena atualidade.
Sigo em parte
J. Rodrigues dos Santos, “Uma leitura crítica do livro de
Habacuc na perspetiva da fenomenologia da religião” (Revista da Abordagem
Gestáltica. v. 14 n.º 2 Goiânia, dez. 2008), que cita os autores mencionados.
***
Fenómeno religioso, sua institucionalização e a profecia de Habacuc
Analisar o
âmago do fenómeno religioso implica abordar os seus elementos constituintes e o
seu processo de institucionalização a partir duma experiência religiosa
profunda com o sagrado.
Assim, a fenomenologia
da religião é a vertente do saber que se foca na experiência religiosa,
tentando compreendê-la como fenómeno da natureza humana. Parte do axioma
antropológico de que o homem vem munido da faculdade específica, o “sensus
numinis”, que
o predispõe para a sensação da presença do sagrado (cf Usarski, 2006).
Para Rudolf
Otto (1985), a experiência religiosa foge aos
padrões da racionalidade e entra na dimensão do não racional. Para ilustrar esta
asserção, Otto apresenta três conceitos que enformam a experiência religiosa:
o numinoso, o tremendo e o fascinante. Ao falar do numinoso, fixa-se
na experiência que não pode ser explicada intelectualmente e que aparece como elemento
vivo em todas as religiões, de que um dos sinais é o sentimento de nulidade ou
de perceber-se como simples criatura diante do tremendo e fascinante.
Por seu
turno, Mircea Eliade (1992), que discorre sobre a materialização
do sagrado, começa por definir o sagrado como o que se “opõe ao profano”,
afirmando que sagrado e profano constituem duas modalidades de “ser” no mundo,
duas situações existenciais assumidas pelo homem, homo religiosus,
no decorrer da sua história. Assim, o homem religioso
“Só pode viver num mundo sagrado porque só um
tal mundo participa do ser, existe realmente. Essa necessidade religiosa
exprime uma inextinguível sede ontológica. O homem religioso é sedento do ser.”.
A pessoa que
passa pela experiência religiosa é carismática, percebe o sagrado. A sua
experiência, permeada de interesses materiais e do próprio êthos, contagia
e inspira outras pessoas, que se tornam seus seguidores, que possuem, por sua
vez, interesses materiais e ideais (êthos), sistematizam os mitos, símbolos e ritos, a partir da
experiência fundante da pessoa que primeiro teve a experiência do sagrado.
Inicia-se assim a institucionalização do sagrado com o surgimento da teologia
que define o âmago da experiência, da doutrina (que normatiza a experiência) e da economia e burocracia que sustentam
o movimento. A este respeito, O’Dea (1969) afirma
que a religião, nas sociedades primitivas, foi um fenómeno difuso que se
desenvolveu gerando organizações cuja principal função era religiosa, que se originaram
a partir de experiências dos seus fundadores
e discípulos, experiências de que surge uma forma de associação religiosa que
termina numa organização religiosa “institucionalizada e permanente”. Tais
organizações iniciam-se com uma figura carismática, que inspira, antes de (ou ao) desaparecer, um grupo de discípulos, que ao
reinterpretar o carisma puro, formam uma comunidade estável.
Segundo, Eliade
(1972), que descreve
o papel dos mitos, símbolos e ritos na experiência do sagrado, para o homem
arcaico, o mundo é ao mesmo tempo ‘aberto’ e misterioso; comunica-se com o mundo
por símbolos; os mitos recordam-lhe os eventos grandiosos que tiveram lugar na
terra e lembram a recuperabilidade parcial do passado glorioso; e os ritos
forçam-no a transcender os seus limites, catapultando-o à parceria com os
deuses e os heróis míticos.
Com esses
elementos, surgem três classes, fruto da especialização do múnus
religioso: o sacerdote, capacitado pelo seu saber específico e pela
competência em apoderar-se do saber e sistematizá-lo para manter a instituição
a que está vinculado; o profeta, que questiona o status quo e
quer levar o povo de volta à experiência fundante, o que pode ocasionar
divisões e sectarismos; e, em alguns casos, o mago, que tem
como característica principal o trabalho individual e ocasional de forçar demónios
e deuses a agirem – capacitado pelo dom da magia e legitimado pelo êxito. E,
através da institucionalização do sagrado, surge o papel dos leigos, que se
tornam a clientela ou o alvo de disputas constantes entre o sacerdote, o
profeta e o mago – papel que o cristianismo ultrapassa e sublima constituindo o
leigo como membro do povo de Deus de pleno direito e com a côngrua
responsabilidades no incremento da fé, culto e ação.
Weber (1991) mostra a complexidade da distinção entre mago e sacerdote
e apresenta uma definição de profeta. E, partindo da distinção entre culto e
magia, diz que “é possível designar como ‘sacerdotes’ os funcionários profissionais
que, por meio de veneração, influenciam os deuses, em oposição aos magos, que
forçam os ‘demónios’ por meios mágicos”. A caraterística básica que
distingue profeta e sacerdote é a vocação pessoal. E Weber assevera:
“O profeta, quando a sua profecia tem êxito,
atrai acólitos permanentes [...], os quais, em oposição aos sacerdotes e
adivinhos que se encontram numa associativa estamental ou hierárquica de cargo,
se juntam a ele de modo puramente pessoal”.
Bourdieu (1998) descreve o processo da divisão do trabalho religioso
e o de moralização e de sistematização das práticas e crenças religiosas
pressupondo que a aparição e o desenvolvimento das religiões universais estão
associados à aparição e desenvolvimento das cidades, sendo que a oposição entre
a cidade e o campo marca uma rutura fundamental na história das religiões.
A narrativa do
livro de Habacuc descreve o exemplo típico duma experiência religiosa em que se
podem identificar os elementos constitutivos do fenómeno religioso e se pode perceber
o seu grau de institucionalização. O principal elemento que compõe este fenómeno
é o sagrado, que Rudolf Otto (1985) define como
um “elemento vivo e presente em todas as religiões” e que pode ser
percebido através da experiência religiosa. Em Habacuc, o sagrado é descrito
como sendo o “Senhor”, Jahwéh, (Hab 1,2), o Deus único e verdadeiro. É a ele que o profeta se dirige, o tempo
todo, em diálogo, nos dois primeiros capítulos do livro que descreve a sua
experiência com o sagrado. E neste profeta podem ser observados os mitos,
símbolos e ritos, sendo o papel dos mitos, na ótica de Eliade (1972), fundamentar e justificar o comportamento e atividade
humanos, bem como descrever as diversas, e até dramáticas, irrupções do sagrado
que fundamenta o mundo e o converte no que é. O registo do diálogo entre Habacuc
e Jahwéh, nos capítulos 2 e 3 (resposta do Senhor às queixas do profeta – maldiçoes e imprecações – e oração
de Habacuc), é uma irrupção
do sagrado, girando as questões levantadas por Habacuc em torno da injustiça
que permeia a sociedade e sendo um protesto contra tais atitudes. Assim se
queixa o profeta ao Senhor:
“Até
quando, Senhor, pedirei socorro, sem que tu escutes? Até quando clamarei: ‘Violência!’
sem que me salves? Porque me fazes ver a injustiça e contemplar a maldade? A
destruição e a violência estão diante de mim; há luta e conflito por todo o
lado. Por isso, a lei se enfraquece e a justiça não prevalece. O ímpio cerca o
justo e, assim, a justiça é pervertida. (Hab 1,2-4).
O uso de
simbolismo, em forma de figuras de linguagem, pode ser notado no livro de Habacuc,
quando o Senhor responde às indagações do profeta. Ao descrever os babilónios, como
instrumentos a utilizar por Jahwéh para aplicar o castigo ao reino de Judá, o
Senhor diz:
“Seus
cavalos são mais velozes que leopardos, mais ferozes que lobos no crepúsculo.
Seus cavaleiros precipitam-se, vêm de longe e voam como a águia que se lança
sobre a presa; todos vêm prontos para a violência. Suas hordas avançam como o
vento do deserto e fazem tantos prisioneiros como a areia da praia.” (Hab
1,8-9).
Cazenueve (s/d) afirma que os ritos são importantes para a
compreensão de um determinado contexto social, pois “constituem um terreno
de investigação privilegiado, mais ainda talvez que os mitos”. Define o
rito como sendo “um ato que pode ser individual ou coletivo, mas que sempre,
mesmo quando é bastante flexível para comportar uma margem de improvisação,
permanece fiel a certas regras que constituem precisamente o que há nele de
ritual”. Distingue o rito de outros costumes correntes numa determinada
cultura, asseverando que a essência deste se encontra na repetição. E, quanto à
sua natureza e funções, sustenta que, para o compreender, é necessário analisar
“as relações que “pode ter
com a necessidade do homem de assumir a condição humana, o que pode consistir
em tentar libertar-se o mais possível de tudo o que o condiciona ou, pelo
contrário, em aí encerrar-se”.
No livro de Habacuc,
pode notar-se a presença dum rito constituinte da religião judaica: a oração. No
cap. 3, temos a descrição da oração que o profeta faz a Jahwéh, oração de
confissão e declaração de fé na intervenção sobrenatural do Senhor. Essa oração
“sobre o tom das lamentações” mostra a necessidade do profeta e o seu anseio de
ver a justiça finalmente triunfar.
Além disso,
vemos traços duma religião institucionalizada. Assim, no versículo 1 do cap. 1
e no versículo 1 do cap. 3, ele é identificado como profeta: “Oráculo
revelado ao profeta Habacuc” (Hab 1,1); “Oração do profeta Habacuc sobre o tom das lamentações” (Hab 3,1). As funções de sacerdote, principal
figura do cenário religioso, e de profeta eram bem conhecidas no contexto
histórico de Habacuc, sendo que, para Weber (1991),
o profeta é “o portador dum carisma pessoal, o qual, em virtude da sua
missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino”, sendo a vocação
pessoal a caraterística que o distingue do sacerdote.
Ora, Habacuc
apresenta-se como aquele que recebeu uma mensagem do Senhor. O seu protesto contra
a injustiça social é um grito contra a sociedade opressora que legitimava a
corrupção e a injustiça social.
***
Função social da religião e a
profecia de Habacuc
Pode analisar-se
a religião como fornecedora de sentido, fator de coesão e de nomia social.
Assim, Peter Berger (1985) sustenta que a sociedade humana é
empreendimento de construção do mundo e que a religião ocupa aí um lugar de
destaque. E afirma que o processo de construção da sociedade humana é dialético,
isto é, a sociedade é produto do homem e o homem é produto da sociedade. Por
sua vez, esse processo desenrola-se em três momentos: pela exteriorização a sociedade é produto humano;
pela objetivação a sociedade torna-se
uma realidade sui generis; e pela interiorização o homem é produto da
sociedade.
Outros
defendem que a função da religião é promover a expiação e a reintegração
social. Neste sentido, Girard (1990) sustenta
que o papel da religião é o de instrumento de prevenção da violência. A seu ver,
são inseparáveis violência e sagrado, donde a necessidade que a religião tem de
oferecer sacrifícios para a expiação da culpa. Neste aspeto, as condutas
religiosas e morais visam a não violência duma forma imediata na vida quotidiana
e, muitas vezes, de forma mediata na vida ritual, paradoxalmente por intermédio
da própria violência.
A religião também
é vista como legitimadora ou questionadora do status sócio-político-económico nas relações de classes. Bourdieu (1998) teoriza essa perspetiva, enquanto Löwy (2000) a exemplifica ao analisar os efeitos da teologia da
libertação na América Latina. Para Bourdieu a religião é fenómeno social ligado
a interesses políticos camuflados nas crenças e na eficácia simbólica das
práticas ou ideologias religiosas. Por isso, afirma:
“Os especialistas religiosos devem
forçosamente ocultar a si mesmos e aos outros que a razão de suas lutas são
interesses políticos”.
Já a relação
entre a religião e a política na teologia da libertação latino-americana,
segundo Löwy, baseia-se numa matriz comum de crenças políticas e religiosas,
enquanto corpo de convicções individuais e coletivas que estão fora do domínio
da verificação e experimentação empírica, mas que dão sentido e coerência à
experiência subjetiva daqueles que a possuem. Isto significa que existe uma fé,
uma certa atitude total comum às religiões e às utopias sociais, que se refere
aos valores transindividuais e se baseia num desafio. Não sendo movimento
político, a teologia da libertação limita-se criticar social e moralmente a
injustiça, a aumentar a consciência da população, a espalhar esperanças utópicas
e a promover iniciativas de baixo para cima.
Para Derrida (2000), a religião tem como função social oferecer salvação
no contexto da razão moderna. A proposta de salvação está vinculada à
possibilidade de identificação concreta do mal no nosso tempo e a religião
encontra-se numa situação de aporia, ou seja, mantém-se ao mesmo tempo no
antagonismo reativo e na supervalorização reafirmadora entre a fé e a razão. É
a partir desse ponto de vista que Derrida avalia o retorno das religiões na
pós-modernidade.
Por fim, na
ótica de Terrin (1998), a religião é garantia de saúde. E
Terrin não analisa a metafísica do porquê da
existência do mal, mas discute uma questão antropológica de máxima importância que
é o verdadeiro drama da existência humana: o que as religiões e a religião
cristã podem fazer para curar as doenças. Este autor parte do pressuposto de
que as religiões sempre associaram o conceito de salvação ao de saúde e
bem-estar e, muitas vezes, usaram os dois termos indiscriminadamente com um
único significado e para indicar uma única realidade geral, de que o homem tem
necessidade num mundo no qual está constantemente ameaçado.
Ao analisar a
religião no contexto social de Habacuc e contrastá-la com os teóricos acima
referidos, podem identificar-se duas funções sociais específicas na sua narrativa.
Antes de
mais, pode afirmar-se que a religião, na época de Habacuc, fornecia sentido,
coesão e nomia social. Ao descrever a situação caótica da sociedade de sua
época (“A destruição e a violência estão diante de
mim; há luta e conflito por todo o lado. Por isso a lei se enfraquece e a
justiça nunca prevalece. Os ímpios prejudicam os justos, e assim a justiça é
pervertida.” – Hab 1,3-4), Habacuc questiona o verdadeiro papel da religião do seu
tempo que, na sua conceção, deveria servir de instrumento fornecedor de
sentido, de coesão social e de nomia para o povo de Jahwéh. E, quando menciona a
lei (“Torah”) e a justiça (“Mispat”), alude à vontade e à promessa de Deus,
expressas no Antigo Testamento. Ao afirmar que a lei se enfraqueceu e que a
justiça já não prevalece, mostra que a religião deixou de cumprir o seu papel
social de normatizar a vida das pessoas. O resultado do abandono às leis de
Deus foi a anomia ou corrupção social.
Berger (1985), descrevendo o processo de legitimação coesão e nomia
social, mostra o papel da religião aí. Para ele, a parte historicamente
decisiva da religião no processo de legitimação é explicável em termos da singular
capacidade da religião de situar os fenómenos humanos num quadro cósmico de
referência, relacionando a realidade humana com a realidade última, universal e
sagrada. E os nomoi ganham um status cósmico.
As
legitimações religiosas, originárias da atividade humana, cristalizadas em complexos
de significados que integram uma tradição religiosa, podem atingir certo grau
de autonomia em relação a essa atividade. Tal premissa é aplicável em Habacuc.
O seu brado contra a injustiça fundamenta-se na experiência com o sagrado e é
legitimado pela “Torah”, que estabelece os princípios de juízo e justiça
em todas as esferas da vida do povo de Jahwéh.
***
A religião na Atualidade e sua
relação com a mensagem de Habacuc
São
recorrentemente levantadas questões atinentes à legitimidade da religião, às
quais têm sido dadas respostas diversas.
Os defensores
do secularismo, definível como a racionalização da religião, sustentam que, com
o processo de racionalização do ocidente, a religião, que servia como fator de
nomia social, foi desvalorizada, perdendo o papel de instrumento normativo, ou
seja, perdeu o seu papel social. Berger (1985)
teoriza os efeitos do secularismo na religião ocidental, enquanto Souza &
Martino (2004) ilustram essa teoria analisando o
contexto religioso no Brasil.
Para Bauman (1998), um dos questionadores da plausibilidade da religião
na “era pós-moderna”, a religião não responde à maior parte dos questionamentos
e anseios do homem pós-moderno. Porém, defende a ideia de que a religião é
plausível só na forma de fundamentalismo, pois, desse modo, auxilia o indivíduo
na tarefa de fazer as suas escolhas. Com efeito, mercê da agonia de solidão e
abandono induzida pelo mercado como única alternativa, o fundamentalismo,
religioso ou outro, conta com crescente clientela. Seja qual for a qualidade
das respostas que forneça, as perguntas a que responde são genuínas. O problema
não é desprezar a gravidade das perguntas, mas topar respostas livres dos genes
totalitários.
Ao invés, Vattimo
(2004) sustenta que, com a morte da
metafísica e da metanarrativa, a religião plausível em nosso tempo é a religião
do “ser como evento”, capaz de ser vista e vivida por diferentes ângulos. Afirma
que a religião que se redescobre na pós-modernidade não tem nada em comum com a
religião dogmática, disciplinar e antimoderna que se expressa em várias formas
de fundamentalismo. E, em vez de incentivar fundamentalismos religiosos na
sociedade pós-moderna do Ocidente, Vattimo defende que é preciso favorecer uma
presença conjunta livre e intensa de múltiplos universos simbólicos, segundo o
espírito de hospitalidade que expressaria tanto a natureza laica da cultura
ocidental, como a sua profunda origem cristã. Entretanto, para se chegar a este
ponto, importa que as religiões, e o cristianismo em especial, vivam não sob a
forma dogmática e tendencialmente fundamentalista que as vem caraterizando.
Assim, pode dizer-se, contra a expectativa laica, que a renovação da vida civil
no Ocidente, em época pluricultural, é sobretudo uma questão de renovação da
vida religiosa.
Kepel (1995) traça o perfil histórico de duas grandes religiões, o
Islamismo e o Catolicismo, que têm, a partir da década de 60, experimentado
transformações que culminaram em reafirmações fundamentalistas de dogmas com a
finalidade de nortear a vida da sociedade pós-moderna.
E, enquanto
retornam ao cenário atual movimentos fundamentalistas, Siqueira & Lima (2003) apresentam o perfil histórico da religiosidade no
mundo pós-moderno e mostram como as tendências religiosas do nosso tempo
caminham mais em direção a uma sensibilidade espiritual individual do que em
direção a um movimento espiritual estruturado ou fundamentalista. Surge, assim,
uma nova conceção de religião, à medida que a nova espiritualidade em
construção não será tanto a religião institucionalizada, mas a experiência que
recorre ao âmbito da secularidade do nosso tempo e às vias religiosas
tradicionais. Esta postura dá maior ênfase à espiritualidade, entendida como
busca de autoconhecimento e autoaperfeiçoamento, que não se restringe ao campo
religioso, mas que se remete também a outros campos como a psicologia e a
medicina. De acordo com um teórico citado por Deis, “assistimos a uma
passagem do antropocentrismo moderno para o cosmocentrismo pós-moderno”. Mas
é trunca a religião a perda do sentido de comunidade e de peregrinação
solidária.
Em suma, a
questão da atualidade da religião para o nosso tempo é apresentada a partir de
duas vertentes tendenciais: o fundamentalismo; e a religião subjetiva, não
estruturada. Importa insuflar-lhe a componente objetiva e comunitária da “ecclesía” e os dogmas basilares.
A mensagem de
Habacuc encaixa numa perspetiva não fundamentalista, mas fundante, pois
pressupõe um único Deus, que revelou a sua vontade que se espelha através de
livros sagrados e que exige dos seguidores completa obediência. Habacuc
depara-se com uma sociedade que, abandonara a obediência a Deus e se perdia no
emaranhado das injustiças e desigualdades, exploração e corrupção, a par da
miséria e da fome de sua época. Na perspetiva do profeta, a única maneira de
organizar a sociedade caótica do seu tempo, marcada por opressão, violência e
toda sorte de injustiças sociais, era a interiorização do ver de obediência
incondicional a Jahwéh e viver de acordo com os princípios éticos e morais
expressos na sua Palavra.
***
Concluindo
Expostas
algumas das caraterísticas do fenómeno religioso, a religião como instrumento
de legitimação social e as perspetivas para o futuro da religião na
pós-modernidade, na ótica de diferentes antropólogos, e, confrontando alguns aspetos
apresentados com a narrativa do livro de Habacuc, conclui-se que os
pressupostos fenomenológicos referentes à religião se aplicam a qualquer
manifestação religiosa, em qualquer tempo, e podem servir de instrumento
importante para a compreensão de como essa religião surgiu e se
institucionalizou. No caso do livro de Habacuc, temos a religião altamente
organizada em torno de um único Deus, Jahwéh, religião comummente denominada
javista e manifestamente monoteísta.
Em todo o
caso, há que dizer que os antropólogos, ao faltar-lhes a reflexão teológica, se
esquecem da dimensão fundante da religião bíblica e da religião cristã: a fé no
Deus próximo e Pai misericordioso que veio habitar em nós e nos catapultou à
dignidade de filhos de Deus e à comunhão trinitária que se expressa na comunhão
eclesial – tudo por sua iniciativa.
2020.02.20 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário