Por motivos litúrgicos e seguindo, por exemplo, a cronologia
do livro dos Atos dos Apóstolos (cronologia de caráter teológico na medida em que o mesmo autor, Lucas,
no final do 3.º Evangelho já apresenta a Ascensão – cf Lc 50-53), separamos as diversas partes do
mesmo e único Mistério Pascal: Ceia, com a instituição da Eucaristia e o
mandamento novo do amor e serviço fraternos; Paixão e Morte; Ressurreição, com
as aparições às mulheres e aos discípulos; Ascensão; e Pentecostes.
O Mistério Pascal é único, para ele concorre toda a vida de Jesus,
que passou pelo mundo a fazer o bem e curando os oprimidos (cf At 10,38). E é isto que João evidencia ao
falar da Morte de Jesus já como glorificação: Ceia, Morte, Ressurreição,
Ascensão e dom do Espírito são realidades do mesmo mistério, momento e
processo. Por isso, João refere que Jesus, “inclinando a cabeça, entregou o espírito” (cf Jo 19,30). Não é expressão eufemista a indicar
a morte, mas é para dizer que Jesus, à hora da sua morte, inclinando a cabeça, nos
entregou o Espírito Santo.
João, ao escrever 60 anos depois dos factos, recorda que as
duas aparições do Ressuscitado que relata em Jo 20,19-31 se passaram na tarde no primeiro dia da semana, consagrado como o dia do
Senhor, ou seja, a hora em que os cristãos se reúnem para a celebração do Dia
do Senhor.
A ressurreição de Jesus não é mero acontecimento do passado;
é um acontecimento de ordem sobrenatural e presentificado que nos convoca e
compromete hoje como sempre.
O autor do 4.º Evangelho já tinha falado da ressurreição de
Lázaro como um sinal de que Jesus é a Ressurreição e a Vida. Mas a ressurreição
de Lázaro foi tornar a viver, voltar atrás à
vida natural para, mais tarde, voltar a morrer. Ora, a ressurreição de Jesus é
um passo para a frente: é vencer a morte para a vida que não mais acaba. Jesus,
tendo ultrapassado as barreiras naturais e físicas, é o mesmo, mas de modo
diferente. É isto que João diz ao apresentar Jesus, que surge no meio dos discípulos, estando as portas fechadas (vd Jo 20,19-31). Veio e pôs-se no meio deles. Agora, é capaz de se tornar presente para
os seus quando quer; e Ele quer estar com os seus em qualquer circunstância. A
Paz não é apenas saudação ou desejo, mas dom efetivo da paz, como tinha dito: “Deixo-os a paz, dou-vos a minha paz” (Jo 14,27). Depois, fez-se reconhecer pelos
elementos da crucifixão: os sinais da morte no lado, nas mãos e nos pés. O que
se apresenta aos discípulos não é apenas o Mestre, a personagem do passado, mas
o Senhor. Com a ressurreição, Jesus mostra ser verdadeiro Deus porque é senhor
da vida e da morte. Já tinha anunciado aos seus amigos, doravante irmãos, que,
com a sua visita após a paixão e morte, o seu coração seria inundado por uma
enorme alegria (Jo 16,22). Assim, não admira que os discípulos
se tenham alegrado ao verem o Senhor. É nesta postura de Senhor da vida e da
morte que Jesus, o Enviado por excelência, envia os seus discípulos: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”.
O conector ‘como’ não estabelece uma simples comparação entre dois atos de
envio, mas a continuidade intrínseca de uma missão única: o Filho estende aos
discípulos a missão que recebeu do Pai. E, para ela, comunica, soprando,
aos discípulos o sopro do Espírito Santo, evocando o ato da criação do homem,
em que Deus lhe insuflou nas narinas o sopro da vida, significando que Jesus
faz dos discípulos homens novos, animando-os com uma energia diferente, a força
de Deus, o Espírito Santo, e conferindo-lhes o poder de perdoar os pecados –
poder reservado a Deus e a seu Filho – porque se trata da mesma missão
salvífica.
***
João começa por relevar a situação da comunidade: anoitecer, portas
fechadas, medo – quadro que reproduz a situação da comunidade desamparada em
ambiente hostil, desorientada e insegura, uma comunidade que perdeu as suas
referências e a sua identidade e que não sabe a que se agarrar. Entretanto,
põe-se “no meio deles”. João indica, deste modo, que os discípulos,
experienciando o encontro com Jesus ressuscitado, redescobrem o seu ponto de
referência, em torno do qual a comunidade se constrói e toma consciência da sua
identidade. A comunidade cristã só existe de forma consistente se estiver
centrada no Ressuscitado.
Jesus saúda-os, desejando-lhes a paz (shalom, em
hebraico). A paz é um
dom messiânico, mas, aqui, significa a transmissão da serenidade, tranquilidade
e confiança, que permitirão aos discípulos superar o medo e a insegurança, de
modo que nem o sofrimento, nem a morte, nem a hostilidade do mundo os poderão
derrotar, pois o Ressuscitado está no meio deles. A seguir, Jesus mostra-lhes
as mãos e o lado – sinais evocadores da entrega de Jesus, do seu amor total
expresso na cruz (na
entrega da vida, no amor oferecido até à última gota de sangue), e em que os discípulos O
reconhecem. A permanência destes sinais no Ressuscitado indica que Jesus é em
permanência o Messias cujo amor se derrama sobre os discípulos e cuja entrega
alimenta a comunidade.
Vem depois a comunicação do Espírito. O gesto de soprar sobre os
discípulos reproduz o gesto de Deus ao comunicar a vida ao homem de argila (João utiliza o mesmo verbo do texto
grego de Gn 2,7). Com o
sopro genesíaco de Deus, o homem tornou-se um ser vivente; e, com este “sopro”
pascal, Jesus transmite aos discípulos a vida nova e faz nascer o Homem Novo.
Agora, os discípulos possuem a vida em plenitude e estão capacitados – como
Jesus – para fazerem da sua vida um dom de amor aos homens. Fortificados pelo
Espírito, formam a comunidade da nova aliança e são chamados a testemunhar, com
gestos e palavras, o amor de Jesus.
Por fim, Jesus explicita a missão dos discípulos: a eliminação do pecado (Não é ele o Cordeiro de Deus que tira
o pecado do mundo? – cf Jo 1,29). As suas palavras não significam que os discípulos podem ou
não (consoante os seus
interesses ou disposição)
perdoar os pecados. Significam, sim, que são chamados a testemunhar no mundo
essa vida que o Pai oferece a todos os homens. E quem aceitar esta proposta
será integrado na comunidade de Jesus; e quem não a aceitar continuará a percorrer
caminhos de egoísmo e morte, isto é, de pecado. A comunidade, animada pelo
Espírito, será a mediadora desta oferta de salvação.
***
À volta do Mistério Pascal, fonte de
reconciliação dos homens com Deus, surge o brado paulino, que Francisco assume
com vigor: “Em nome de Cristo, suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,20). E, considerando o “Mistério da morte e
ressurreição de Jesus, perene da vida cristã pessoal e comunitária, o Papa
pretende que voltemos continuamente a este Mistério com a mente e o coração, pois
o mistério não para de crescer em nós se “nos deixarmos envolver pelo seu
dinamismo espiritual e aderirmos a ele com uma resposta livre e generosa”.
O Mistério Pascal é fundamento da conversão, pois escutar e receber o
kérygma, ou seja, a Boa Nova da morte e
ressurreição de Jesus, enche de alegria o cristão. Com efeito, estamos perante “o
Mistério dum amor tão real, tão verdadeiro, tão concreto, que nos proporciona
uma relação cheia de diálogo sincero e fecundo” (cf Exort. ap. Christus vivit, 117). Crer neste anúncio conduz à rejeição da “mentira de
que a nossa vida teria origem em nós mesmos”, quando ela nasce, afinal, do amor
de Deus Pai, que dá a vida em abundância (cf Jo 10,10). Por isso, o
Papa estende a todos os cristãos o que escreveu aos jovens na Exortação
apostólica “Christus vivit” (n.º 123):
“Fixa os braços abertos de Cristo
crucificado, deixa-te salvar sempre de novo. E, quando te aproximares para
confessar os teus pecados, crê firmemente na sua misericórdia que te liberta de
toda a culpa. Contempla o seu sangue derramado pelo grande amor que te tem e
deixa-te purificar por Ele. Assim, poderás renascer sempre de novo.”.
Na verdade, a
Páscoa de Jesus não é acontecimento do passado, mas, pela força do Espírito
Santo, é atual e leva-nos a contemplar e tocar com fé a carne de Cristo nas
pessoas que sofrem.
Também a conversão, que é urgente, passa
pela contemplação aprofundada do Mistério pascal, que nos testemunha a concessão
da misericórdia de Deus, cuja experiência só é possível no contacto face a face
– diálogo de coração a coração, de amigo a amigo – com Cristo crucificado e
ressuscitado, que nos ama e Se entregou por nós (Gl 2,20). É este o
estilo de oração que se recomenda no tempo quaresmal. Na verdade, “o cristão
reza ciente da sua indignidade de ser amado”, mas deixando que a oração “escave
dentro de nós” e rompa “a dureza do nosso coração”, para o converter cada vez
mais a Deus e à sua vontade. E conseguiremos isso se nos deixarmos conduzir
como Israel no deserto (cf Os 2,16) fazendo ressoar em nós com maior profundidade e
disponibilidade a voz de Cristo, se modo que, envolvidos pela sua Palavra, consigamos
experimentar a sua misericórdia gratuita por nós.
Ao proporcionar-nos
mais uma vez este tempo favorável de conversão, que não podemos desperdiçar, mas
agradecer e permitir que nos sacuda do nosso torpor, Deus mostra a vontade
apaixonada que tem de dialogar com os seus filhos.
Face à presença
do mal, até dramática, na nossa vida e na vida da Igreja e do mundo, a Quaresma,
oferecida para a mudança de rumo manifesta a tenacidade de Deus em não
interromper o diálogo de salvação connosco. Essa tenacidade é tal que o Pai fez
recair sobre o seu Filho todos os nossos pecados. Este “fez-Se pecado por nós” (2 Cor 5,21). Foi como se Deus se tivesse virado contra Si próprio
(cf Enc. Deus caritas est, 12). De facto, Deus ama também os seus inimigos (cf Mt 5,43-48), não se limitando a recomendá-lo a nós. Por outro
lado, o diálogo que pretende entabular com cada homem por meio do Mistério Pascal
não é como o diálogo atribuído aos atenienses, que passavam o tempo a dizer ou
a escutar as últimas novidades, levados por uma curiosidade vazia e mundana (cf At 17,21), tentação também de hoje.
Segundo o
Papa, centrar a vida no Mistério Pascal significa sentir compaixão pelas chagas
do Crucificado presentes nas vítimas das guerras, das prepotências contra a
vida, das variadas formas de violência, dos desastres ambientais, da iníqua
distribuição dos bens da terra, do tráfico de seres humanos e da sede
desenfreada de lucro, que é uma forma de idolatria. E, se a oração é nevrálgica
no cristão e na comunidade, não o é menos o apelo à partilha dos bens com os
necessitados por parte dos homens e mulheres de boa vontade, como forma de
participação pessoal na edificação dum mundo mais justo. De facto, a partilha,
na caridade, torna o homem mais humano, ao passo que a acumulação comporta o
risco do embrutecimento no egoísmo. Por isso, diz o Papa, “podemos e devemos ir
mais além, considerando as dimensões estruturais da economia”. Assim, nesta
Quaresma (de 26 a 28
de março), decorrerá em Assis o encontro de jovens
economistas, empreendedores e transformativos, a contribuir para delinear uma
economia mais justa e inclusiva, na certeza de que “a política é uma forma
eminente de caridade” (cf Pio XI, Discurso à FUCI, 18/XII/1927) e “ocupar-se da economia com o mesmo espírito
evangélico, que é o espírito das Bem-aventuranças” também o será.
Enfim,
fixando o olhar do coração no Mistério Pascal, nos converteremos ao diálogo
aberto com Deus e nos tornaremos o que Jesus diz dos discípulos: sal da terra e
luz do mundo (cf Mt 5, 13.14). E isto decorre
do Mistério Pascal: batizados, celebramos a Eucaristia, vivemos em comunidade.
2020.02.26 –
Louro de Carvalho
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