quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O Papa centrou no Mistério Pascal a mensagem quaresmal de 2020


Por motivos litúrgicos e seguindo, por exemplo, a cronologia do livro dos Atos dos Apóstolos (cronologia de caráter teológico na medida em que o mesmo autor, Lucas, no final do 3.º Evangelho já apresenta a Ascensão – cf Lc 50-53), separamos as diversas partes do mesmo e único Mistério Pascal: Ceia, com a instituição da Eucaristia e o mandamento novo do amor e serviço fraternos; Paixão e Morte; Ressurreição, com as aparições às mulheres e aos discípulos; Ascensão; e Pentecostes.
O Mistério Pascal é único, para ele concorre toda a vida de Jesus, que passou pelo mundo a fazer o bem e curando os oprimidos (cf At 10,38). E é isto que João evidencia ao falar da Morte de Jesus já como glorificação: Ceia, Morte, Ressurreição, Ascensão e dom do Espírito são realidades do mesmo mistério, momento e processo. Por isso, João refere que Jesus, “inclinando a cabeçaentregou o espírito(cf Jo 19,30). Não é expressão eufemista a indicar a morte, mas é para dizer que Jesus, à hora da sua morte, inclinando a cabeça, nos entregou o Espírito Santo.
João, ao escrever 60 anos depois dos factos, recorda que as duas aparições do Ressuscitado que relata em Jo 20,19-31 se passaram na tarde no primeiro dia da semana, consagrado como o dia do Senhor, ou seja, a hora em que os cristãos se reúnem para a celebração do Dia do Senhor.
A ressurreição de Jesus não é mero acontecimento do passado; é um acontecimento de ordem sobrenatural e presentificado que nos convoca e compromete hoje como sempre.
O autor do 4.º Evangelho já tinha falado da ressurreição de Lázaro como um sinal de que Jesus é a Ressurreição e a Vida. Mas a ressurreição de Lázaro foi tornar a viver, voltar atrás à vida natural para, mais tarde, voltar a morrer. Ora, a ressurreição de Jesus é um passo para a frente: é vencer a morte para a vida que não mais acaba. Jesus, tendo ultrapassado as barreiras naturais e físicas, é o mesmo, mas de modo diferente. É isto que João diz ao apresentar Jesus, que surge no meio dos discípulos, estando as portas fechadas (vd Jo 20,19-31). Veio e pôs-se no meio deles. Agora, é capaz de se tornar presente para os seus quando quer; e Ele quer estar com os seus em qualquer circunstância. A Paz não é apenas saudação ou desejo, mas dom efetivo da paz, como tinha dito: “Deixo-os a paz, dou-vos a minha paz(Jo 14,27). Depois, fez-se reconhecer pelos elementos da crucifixão: os sinais da morte no lado, nas mãos e nos pés. O que se apresenta aos discípulos não é apenas o Mestre, a personagem do passado, mas o Senhor. Com a ressurreição, Jesus mostra ser verdadeiro Deus porque é senhor da vida e da morte. Já tinha anunciado aos seus amigos, doravante irmãos, que, com a sua visita após a paixão e morte, o seu coração seria inundado por uma enorme alegria (Jo 16,22). Assim, não admira que os discípulos se tenham alegrado ao verem o Senhor. É nesta postura de Senhor da vida e da morte que Jesus, o Enviado por excelência, envia os seus discípulos: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. O conector ‘como’ não estabelece uma simples comparação entre dois atos de envio, mas a continuidade intrínseca de uma missão única: o Filho estende aos discípulos a missão que recebeu do Pai. E, para ela, comunica, soprando, aos discípulos o sopro do Espírito Santo, evocando o ato da criação do homem, em que Deus lhe insuflou nas narinas o sopro da vida, significando que Jesus faz dos discípulos homens novos, animando-os com uma energia diferente, a força de Deus, o Espírito Santo, e conferindo-lhes o poder de perdoar os pecados – poder reservado a Deus e a seu Filho – porque se trata da mesma missão salvífica.
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João começa por relevar a situação da comunidade: anoitecer, portas fechadas, medo – quadro que reproduz a situação da comunidade desamparada em ambiente hostil, desorientada e insegura, uma comunidade que perdeu as suas referências e a sua identidade e que não sabe a que se agarrar. Entretanto, põe-se “no meio deles”. João indica, deste modo, que os discípulos, experienciando o encontro com Jesus ressuscitado, redescobrem o seu ponto de referência, em torno do qual a comunidade se constrói e toma consciência da sua identidade. A comunidade cristã só existe de forma consistente se estiver centrada no Ressuscitado.
Jesus saúda-os, desejando-lhes a paz (shalom, em hebraico). A paz é um dom messiânico, mas, aqui, significa a transmissão da serenidade, tranquilidade e confiança, que permitirão aos discípulos superar o medo e a insegurança, de modo que nem o sofrimento, nem a morte, nem a hostilidade do mundo os poderão derrotar, pois o Ressuscitado está no meio deles. A seguir, Jesus mostra-lhes as mãos e o lado – sinais evocadores da entrega de Jesus, do seu amor total expresso na cruz (na entrega da vida, no amor oferecido até à última gota de sangue), e em que os discípulos O reconhecem. A permanência destes sinais no Ressuscitado indica que Jesus é em permanência o Messias cujo amor se derrama sobre os discípulos e cuja entrega alimenta a comunidade.
Vem depois a comunicação do Espírito. O gesto de soprar sobre os discípulos reproduz o gesto de Deus ao comunicar a vida ao homem de argila (João utiliza o mesmo verbo do texto grego de Gn 2,7). Com o sopro genesíaco de Deus, o homem tornou-se um ser vivente; e, com este “sopro” pascal, Jesus transmite aos discípulos a vida nova e faz nascer o Homem Novo. Agora, os discípulos possuem a vida em plenitude e estão capacitados – como Jesus – para fazerem da sua vida um dom de amor aos homens. Fortificados pelo Espírito, formam a comunidade da nova aliança e são chamados a testemunhar, com gestos e palavras, o amor de Jesus.
Por fim, Jesus explicita a missão dos discípulos: a eliminação do pecado (Não é ele o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo? – cf Jo 1,29). As suas palavras não significam que os discípulos podem ou não (consoante os seus interesses ou disposição) perdoar os pecados. Significam, sim, que são chamados a testemunhar no mundo essa vida que o Pai oferece a todos os homens. E quem aceitar esta proposta será integrado na comunidade de Jesus; e quem não a aceitar continuará a percorrer caminhos de egoísmo e morte, isto é, de pecado. A comunidade, animada pelo Espírito, será a mediadora desta oferta de salvação. 
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À volta do Mistério Pascal, fonte de reconciliação dos homens com Deus, surge o brado paulino, que Francisco assume com vigor: “Em nome de Cristo, suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus (2Cor 5,20). E, considerando o “Mistério da morte e ressurreição de Jesus, perene da vida cristã pessoal e comunitária, o Papa pretende que voltemos continuamente a este Mistério com a mente e o coração, pois o mistério não para de crescer em nós se “nos deixarmos envolver pelo seu dinamismo espiritual e aderirmos a ele com uma resposta livre e generosa”.
O Mistério Pascal é fundamento da conversão, pois escutar e receber o kérygma, ou seja, a Boa Nova da morte e ressurreição de Jesus, enche de alegria o cristão. Com efeito, estamos perante “o Mistério dum amor tão real, tão verdadeiro, tão concreto, que nos proporciona uma relação cheia de diálogo sincero e fecundo” (cf Exort. ap. Christus vivit, 117). Crer neste anúncio conduz à rejeição da “mentira de que a nossa vida teria origem em nós mesmos”, quando ela nasce, afinal, do amor de Deus Pai, que dá a vida em abundância (cf Jo 10,10). Por isso, o Papa estende a todos os cristãos o que escreveu aos jovens na Exortação apostólica “Christus vivit(n.º 123):
Fixa os braços abertos de Cristo crucificado, deixa-te salvar sempre de novo. E, quando te aproximares para confessar os teus pecados, crê firmemente na sua misericórdia que te liberta de toda a culpa. Contempla o seu sangue derramado pelo grande amor que te tem e deixa-te purificar por Ele. Assim, poderás renascer sempre de novo.”.
Na verdade, a Páscoa de Jesus não é acontecimento do passado, mas, pela força do Espírito Santo, é atual e leva-nos a contemplar e tocar com fé a carne de Cristo nas pessoas que sofrem.
Também a conversão, que é urgente, passa pela contemplação aprofundada do Mistério pascal, que nos testemunha a concessão da misericórdia de Deus, cuja experiência só é possível no contacto face a face – diálogo de coração a coração, de amigo a amigo – com Cristo crucificado e ressuscitado, que nos ama e Se entregou por nós (Gl 2,20). É este o estilo de oração que se recomenda no tempo quaresmal. Na verdade, “o cristão reza ciente da sua indignidade de ser amado”, mas deixando que a oração “escave dentro de nós” e rompa “a dureza do nosso coração”, para o converter cada vez mais a Deus e à sua vontade. E conseguiremos isso se nos deixarmos conduzir como Israel no deserto (cf Os 2,16) fazendo ressoar em nós com maior profundidade e disponibilidade a voz de Cristo, se modo que, envolvidos pela sua Palavra, consigamos experimentar a sua misericórdia gratuita por nós.
Ao proporcionar-nos mais uma vez este tempo favorável de conversão, que não podemos desperdiçar, mas agradecer e permitir que nos sacuda do nosso torpor, Deus mostra a vontade apaixonada que tem de dialogar com os seus filhos.
Face à presença do mal, até dramática, na nossa vida e na vida da Igreja e do mundo, a Quaresma, oferecida para a mudança de rumo manifesta a tenacidade de Deus em não interromper o diálogo de salvação connosco. Essa tenacidade é tal que o Pai fez recair sobre o seu Filho todos os nossos pecados. Este “fez-Se pecado por nós” (2 Cor 5,21). Foi como se Deus se tivesse virado contra Si próprio (cf Enc. Deus caritas est, 12). De facto, Deus ama também os seus inimigos (cf Mt 5,43-48), não se limitando a recomendá-lo a nós. Por outro lado, o diálogo que pretende entabular com cada homem por meio do Mistério Pascal não é como o diálogo atribuído aos atenienses, que passavam o tempo a dizer ou a escutar as últimas novidades, levados por uma curiosidade vazia e mundana (cf At 17,21), tentação também de hoje.
Segundo o Papa, centrar a vida no Mistério Pascal significa sentir compaixão pelas chagas do Crucificado presentes nas vítimas das guerras, das prepotências contra a vida, das variadas formas de violência, dos desastres ambientais, da iníqua distribuição dos bens da terra, do tráfico de seres humanos e da sede desenfreada de lucro, que é uma forma de idolatria. E, se a oração é nevrálgica no cristão e na comunidade, não o é menos o apelo à partilha dos bens com os necessitados por parte dos homens e mulheres de boa vontade, como forma de participação pessoal na edificação dum mundo mais justo. De facto, a partilha, na caridade, torna o homem mais humano, ao passo que a acumulação comporta o risco do embrutecimento no egoísmo. Por isso, diz o Papa, “podemos e devemos ir mais além, considerando as dimensões estruturais da economia”. Assim, nesta Quaresma (de 26 a 28 de março), decorrerá em Assis o encontro de jovens economistas, empreendedores e transformativos, a contribuir para delinear uma economia mais justa e inclusiva, na certeza de que “a política é uma forma eminente de caridade” (cf Pio XI, Discurso à FUCI, 18/XII/1927) e “ocupar-se da economia com o mesmo espírito evangélico, que é o espírito das Bem-aventuranças” também o será.
Enfim, fixando o olhar do coração no Mistério Pascal, nos converteremos ao diálogo aberto com Deus e nos tornaremos o que Jesus diz dos discípulos: sal da terra e luz do mundo (cf Mt 5, 13.14). E isto decorre do Mistério Pascal: batizados, celebramos a Eucaristia, vivemos em comunidade.
2020.02.26 – Louro de Carvalho

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