sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

António Guterres acionou o artigo 99.º da Carta das Nações Unidas

 

O português António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), fazendo uso da sua autoridade ao abrigo da Carta das Nações Unidas, pela primeira vez, durante o seu mandato, enviou uma carta ao Conselho de Segurança, a 6 de dezembro, para que este órgão tome medidas conducentes a evitar a catástrofe humanitária em Gaza.

Em documento enviado ao presidente do Conselho de Segurança da ONU, José Javier de la Gasca Lopez-Domínguez, declarou que a Faixa de Gaza enfrenta “um grave risco de colapso do sistema humanitário” e reforçou o apelo por um cessar-fogo humanitário total.

O porta-voz do secretário-geral, Stéphane Dujarric, partilhou a carta na conferência de imprensa diária, lembrando que o artigo 99.º da Carta das Nações Unidas, raramente acionado, autoriza o secretário-geral a levar ao conhecimento dos membros do Conselho de Segurança qualquer assunto que considere ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais.

Na carta, o secretário-geral, referindo-se ao artigo 99.º da Carta das Nações Unidas, afirma que “mais de 8 semanas de hostilidades entre Israel e o Hamas causaram um terrível sofrimento humanitário”. Sublinhou que os civis, em Gaza, estão em grave perigo, devido às operações militares de Israel, não havendo um local seguro para proteger os civis e tendo o sistema de saúde entrado em colapso. E apontou a crueza dos relatos de violência sexual durante os ataques.

Além disso, a situação atual, em Gaza, impossibilita a realização de operações humanitárias de relevo, pois o território está sob bombardeamento constante das forças de defesa israelitas.

António Guterres frisou que a população de Gaza não tem abrigo para sobreviver, não pode satisfazer as suas necessidades essenciais, a ajuda humanitária, ainda que limitada, à região tornou-se impossível e, por conseguinte, prevê-se que a ordem pública entre em colapso total muito em breve: “A situação pode piorar com o surgimento de epidemias e [com] o aumento da pressão para migrações em massa para os países vizinhos”, considerou.

Referiu as pessoas que foram “mortas de forma brutal”, desde 7 de outubro, e as que são mantidas em cativeiro e exigiu que estas sejam “libertadas imediata e incondicionalmente”. Cerca de 80% dos habitantes estão deslocados, sendo que mais de 1,1 milhão procuram refúgio em abrigos da UNRWA (sigla inglesa para Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina).

Neste contexto, a comunidade internacional tem a responsabilidade de usar a sua influência para evitar uma nova escalada de violência, em Gaza, e para pôr termo à crise. Por isso, Guterres apelou “aos membros do Conselho de Segurança para que exerçam pressão no sentido de evitar uma catástrofe humanitária” e reiterou o “pedido de declaração de um cessar-fogo humanitário, que é urgente”. E, salientando a necessidade de proteger a população civil de mais danos, defendeu que um cessar-fogo humanitário pode salvar vidas, em Gaza, e garantir a entrega atempada e segura da ajuda humanitária.

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Depois de o secretário-geral da ONU acionar o artigo 99.º, o ministro das Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen, e o embaixador do país na ONU, Gilad Erdan, voltaram a criticá-lo, aumentando a tensão entre Israel e as Nações Unidas.

Nas redes sociais, Eli Cohen disse que a carta de António Guterres ao Conselho de Segurança da ONU constitui “um apoio à organização terrorista Hamas”. “Qualquer pessoa que apoie a paz mundial deve apoiar a libertação de Gaza do Hamas”, escreveu.

Por seu turno, Gilad Erdan disse que acionar o artigo 99 é uma prova da “da distorção moral” de António Guterres e do seu “preconceito contra Israel”. “As posições distorcidas do secretário-geral apenas prolongam os combates, em Gaza, porque dão esperança aos terroristas do Hamas de que a guerra será interrompida e de que serão capazes de sobreviver. Apelo, mais uma vez, ao secretário-geral para que se demita imediatamente – a ONU precisa de um secretário-geral que apoie a guerra contra o terrorismo, e não de um secretário-geral que atue de acordo com o roteiro escrito pelo Hamas”, escreveu, acusando ainda António Guterres de não “apontar explicitamente a responsabilidade do Hamas pela situação” e de não “apelar aos líderes terroristas para que se entreguem e devolvam os reféns”.

Todavia, ao invés do que dizem as autoridades israelitas, na carta ao Conselho de Segurança, o secretário-geral da ONU condena os ataques do Hamas e pede pela libertação dos reféns. “Mais de 1.200 pessoas foram brutalmente mortas, incluindo 33 crianças, e milhares ficaram feridas nos abomináveis ​​atos de terror perpetrados pelo Hamas e outros grupos armados palestinos em 7 de outubro de 2023, que condenei repetidamente. Cerca de 250 pessoas foram raptadas, incluindo 34 crianças, mais de 130 das quais ainda estão em cativeiro. Elas devem ser libertadas imediata e incondicionalmente. Os relatos de violência sexual durante os ataques são terríveis”, diz a carta de António Guterres. No entanto, já muitas mais pessoas morreram sob ataques israelitas. “O povo de Gaza está no meio de uma catástrofe humanitária épica perante os olhos do Mundo”, afirmou António Guterres, referindo-se às negociações intensivas que decorreram para prolongar a “pausa humanitária” alcançada entre Israel e o Hamas. “Não podemos virar as costas a esta situação. Acreditamos que precisamos de um verdadeiro cessar-fogo humanitário”, disse.

O secretário-geral recordou que foram mortas mais de 14 mil pessoas e ficaram feridas dezenas de milhares na Palestina, desde o início dos ataques israelitas (7 de outubro), e vincou que mais de dois terços dos mortos, em Gaza, são crianças e mulheres.

António Guterres assegurou que, nos últimos dias, os Palestinianos puderam respirar, devido ao compromisso de “pausa humanitária” e acrescentou: “Nestas poucas semanas, foram mortas mais crianças nas operações militares de Israel, em Gaza, do que o número total de crianças mortas em qualquer conflito, em qualquer ano, desde que me tornei secretário-geral.” Salientou ainda que, embora a “pausa humanitária” e as entregas de ajuda para Gaza tenham aumentado, são muito insuficientes e que é fundamental garantir a entrega segura e ininterrupta de ajuda humanitária a dois milhões de pessoas e a reconstrução das instalações civis. E, afirmando que o posto fronteiriço de Rafah, por si só, não tem capacidade suficiente para a ajuda humanitária, apelou à abertura de outros postos de passagem, incluindo Kerem Shalom.

Depois, esclareceu que o sucesso, em Gaza, não se pode medir pelo número de camiões enviados e pelas toneladas de fornecimentos: “O êxito será medido pelas vidas salvas, pelo fim do sofrimento e pelo restabelecimento da esperança e da dignidade.”

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O Conselho de Segurança da ONU aprovou, a 15 de novembro, uma resolução para a guerra entre Israel e o Hamas. A proposta, apresentada por Malta, recebeu 12 votos a favor e nenhum contrário. Os Estados Unidos da América (EUA), a Rússia e o Reino Unido, que são integrantes permanentes do grupo e, portanto, têm poder de veto, abstiveram-se. O texto pede a “libertação imediata e incondicional de todos os reféns” mantidos pelo grupo extremista e a implementação de “pausas e corredores humanitários urgentes e prolongados, em toda a Faixa de Gaza, por um número suficiente de dias”. Essa foi a primeira resolução sobre a guerra no Oriente Médio a ser aprovada pelo Conselho de Segurança. Em outubro, a proposta brasileira foi vetada pelos EUA.

Entretanto, sabe-se que Israel montou um sistema de bombeamento de água do mar que pode ser usado para inundar os  túneis usados pelo Hamas, na Faixa de Gaza, na tentativa de expulsar os integrantes do grupo extremista islâmico da região. A operação foi revelada pelo jornal norte-americano Wall Street Journal.

O exército de Israel completou a instalação de, ao menos, cinco bombas de água perto do campo de refugiados de Al-Shati, em novembro. O mecanismo move milhares de metros cúbicos de água por hora, inundando os túneis em poucas semanas. Porém, não há informações se Israel considera usar esse sistema de água, antes que  todos os reféns sejam libertados. Anteriormente, o Hamas divulgara que escondeu os prisoneiros em “lugares seguros e em túneis”.

À agência de notícias Reuters, integrantes do governo dos EUA, disseram que fazia sentido para Israel deixar os túneis do Hamas inabitáveis e que o país estava a explorar formas de o fazer.

O Ministério da Defesa de Israel, porém, não se manifestou sobre a divulgação das informações. 

Entretanto, o movimento de resistência palestiniano Hamas apelou aos jornalistas e aos meios de comunicação social para que intensifiquem a sua presença na Faixa de Gaza, a fim de verem a dimensão da destruição causada pelos ataques de Israel contra Gaza, desde 7 de outubro. “Apelamos aos jornalistas internacionais e às organizações de comunicação social a que intensifiquem a sua presença na Faixa de Gaza, a fim de verem a extensão da destruição e os indicadores de genocídio que o exército de ocupação e o exército nazi infligiram às crianças, aos civis indefesos e a todas as infraestruturas”, escreveu, no Telegram, a plataforma de comunicação social do Hamas. A declaração refere que a descoberta de corpos de dezenas de civis palestinianos sob os escombros, na zona de Sabra e noutras partes da cidade de Gaza, e a extensão da destruição da Universidade Islâmica, uma das mais importantes instituições de investigação científica, confirmam o horror a que a população de Gaza está exposta e que o objetivo destas ações é destruir, deliberadamente, todas as instalações e infraestruturas e forçar a população de Gaza a migrar. Neste contexto, Osama Hamdan, um dos líderes do Hamas, apelou ao bilionário americano Elon Musk a que visitasse a Faixa de Gaza sob bloqueio, para ver a destruição causada pelos ataques israelitas.

Hamdan disse: “Convidamo-lo a visitar Gaza, para ver a extensão dos massacres e da destruição do povo de Gaza, de acordo com os padrões de objetividade e credibilidade.”

Porém, Musk, em resposta, a partir da sua conta na plataforma X, rejeitou o convite, dizendo: “De momento, isto parece um pouco perigoso. Mas acredito que a prosperidade de Gaza a longo prazo beneficiará todas as partes.”

Elon Musk visitou Israel e encontrou-se com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para inspecionar a cidade de Kfar Aza, atacada por membros das Brigadas Ezzedine Al Qassam, a ala militar do Hamas, a 7 de outubro. E também se encontrou com o Presidente israelita Isaac Herzog.

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Também consta que o Papa Francisco usou o termo “terror” para os ataques de Israel a Gaza numa conversa telefónica privada com o presidente israelita, Isaac Herzog.

A reportagem do Washington Post, com base no relato de um alto representante israelita que não quis ser identificado, forneceu informações sobre a chamada telefónica entre o Papa e Herzog, no final de outubro, cujo conteúdo não foi partilhado com o público.

Herzog alegou que “Israel fez o que era necessário para se defenderem”, em Gaza, enquanto o Papa disse que os civis não deviam ser responsabilizados pelo que aconteceu.

Nesta reunião, que Israel terá considerado demasiado “má” para ser tornada pública, o Papa terá dito a Herzog que “é proibido responder ao terrorismo com terrorismo” e avisou Israel sobre “o que fizeram em Gaza”. Numa declaração ao Washington Post, o Vaticano reconheceu que houve uma conversa telefónica entre o Papa e Herzog, mas não forneceu informações sobre se o Papa descreveu explicitamente os ataques de Israel em Gaza como “terrorismo”, pois a dita chamada telefónica, tal como outras conversas que tiveram lugar nos mesmos dias, ocorreu no contexto dos esforços para conter “a gravidade e o alcance da situação na região”. Um porta-voz do presidente israelita recusou-se a comentar, dizendo: “Não falamos sobre reuniões privadas.”

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A situação é extremamente grave e tem de ser resolvida por via diplomática. Não é justo matar pessoas com o escopo de eliminar um povo qualquer. Guterres é censurado por ter compaixão. Com efeito, os homens da guerra não sabem a linguagem da solidariedade, só disputam território!

2023.12.07 – Louro de Carvalho

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