segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Declaração doutrinária possibilita bênçãos para casais “irregulares”

 

Com a declaração “Fiducia supplicans”, do Dicastério para a Doutrina da Fé, aprovada pelo Papa, a 18 de dezembro, até será possível abençoar casais formados por pessoas do mesmo sexo, mas fora de qualquer ritualização e imitação do matrimónio, pois não se muda a doutrina sobre o matrimónio e a bênção não significa aprovação da união. O Vatican News, portal da Santa Sé, presta o devido esclarecimento.

Ante o pedido de duas pessoas para serem abençoadas, mesmo que a sua condição de casal seja “irregular”, será possível o ministro ordenado consentir, embora tal gesto de proximidade pastoral não possa conter elementos minimamente semelhantes a um rito matrimonial.

O documento aprofunda o tema das bênçãos, distinguindo entre as bênçãos rituais e litúrgicas e as bênçãos espontâneas, que se assemelham mais a gestos de devoção popular. É nesta segunda categoria que se enquadra a possibilidade de acolher também aqueles que não vivem de acordo com as normas da doutrina moral cristã, mas pedem humildemente para serem abençoados. Desde agosto, de há 23 anos, o antigo Santo Ofício não publicava uma declaração (a última foi “Dominus Jesus”, em 2000), um documento de alto valor doutrinário.

A “Fiducia supplicans” começa com uma introdução do prefeito, cardeal Victor Fernandez, que explica que a declaração aprofunda o “significado pastoral das bênçãos”, permitindo que a “sua compreensão clássica seja ampliada e enriquecida” por uma reflexão teológica “baseada na visão pastoral do Papa Francisco”, uma reflexão que “implica um verdadeiro desenvolvimento em relação ao que foi dito sobre as bênçãos” até agora, incluindo a possibilidade “de abençoar casais em situação irregular e casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente o seu status ou, de qualquer forma, modificar o ensino perene da Igreja sobre o casamento”. 

Após os primeiros parágrafos (1-3), em que é lembrado e agora ampliado o pronunciamento anterior de 2021, a declaração apresenta a bênção no sacramento do matrimónio (parágrafos 4-6), declarando “inadmissíveis ritos e orações que possam criar confusão entre o que é constitutivo do matrimónio” e “o que o contradiz”, para evitar reconhecer, de alguma forma, “como matrimónio algo que o não é”. Reitera-se que, de acordo com a “doutrina católica perene”, somente as relações sexuais dentro do casamento entre um homem e uma mulher são consideradas lícitas.

Um segundo capítulo (parágrafos 7-30) analisa o significado das várias bênçãos, que têm como destino pessoas, objetos de devoção, lugares de vida. Do ponto de vista “estritamente litúrgico”, a bênção exige que o que é abençoado “esteja em conformidade com a vontade de Deus expressa nos ensinamentos da Igreja”. Assim, quando, com um rito litúrgico específico, “se invoca uma bênção sobre certas relações humanas”, é necessário que “o que é abençoado possa corresponder aos desígnios de Deus inscritos na Criação”. Por isso, a Igreja não tem o poder de conferir uma bênção litúrgica a casais irregulares ou do mesmo sexo. Contudo, é preciso evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a esse ponto de vista, exigindo, para a simples bênção, “as mesmas condições morais que são exigidas para a receção dos sacramentos”. Depois de analisar as bênçãos nas Escrituras, a declaração oferece um entendimento teológico-pastoral. Quem pede uma bênção “mostra-se necessitado da presença salvadora de Deus na sua história”, porque expressa “um pedido de ajuda de Deus, uma súplica por uma vida melhor”. Por isso, o pedido deve ser acolhido e valorizado “fora de uma estrutura litúrgica”, quando se encontra “numa esfera de maior espontaneidade e liberdade”. Olhando para elas da perspetiva da piedade popular, “as bênçãos devem ser valorizadas como atos de devoção”. Assim, para as conferir, não há necessidade de exigir “perfeição moral prévia” como pré-condição.

Aprofundando essa distinção, com base na resposta do Papa às dubia dos cardeais, publicada em outubro passado, que pedia um discernimento sobre a possibilidade de “formas de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam uma conceção errónea do matrimónio”, o documento afirma que esse tipo de bênção “é oferecido a todos, sem pedir nada, fazendo com que as pessoas sintam que continuam abençoadas, apesar dos seus erros”, e que “o Pai celeste continua a querer o seu bem e a esperar que elas, finalmente, se abram ao bem”.

Há várias ocasiões em que as pessoas pedem, espontaneamente, a bênção, seja em peregrinações, em santuários, ou mesmo na rua, quando encontram um sacerdote”. Ora, tais bênçãos “são dirigidas a todos, ninguém pode ser excluído”. Portanto, permanecendo proibido ativar “procedimentos ou ritos” para esses casos, o ministro ordenado pode unir-se à oração daquelas pessoas que, “embora numa união que, de modo nenhum pode ser comparada ao matrimónio, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda, ser guiadas para uma maior compreensão do seu plano de amor e de verdade”.

O terceiro capítulo (parágrafos 31-41) abre a possibilidade dessas bênçãos, que representam um gesto para aqueles que, “reconhecendo-se indigentes e necessitados da sua ajuda, não reivindicam a legitimidade do seu próprio status, mas imploram que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente válido em suas vidas e relacionamentos seja investido, curado e elevado pela presença do Espírito Santo”.

Essas bênçãos não devem ser normalizadas, mas confiadas ao “discernimento prático numa situação particular”. Embora o casal seja abençoado, mas não a união, a declaração inclui, entre o que é abençoado, o relacionamento legítimo entre as duas pessoas: na “breve oração que pode preceder essa bênção espontânea, o ministro ordenado pode pedir paz, saúde, espírito de paciência, diálogo e ajuda mútua, bem como a luz e a força de Deus para poder cumprir plenamente a sua vontade”. Também é esclarecido que, para evitar “qualquer forma de confusão e escândalo”, quando um casal irregular ou do mesmo sexo pede uma bênção, “ela nunca será realizada ao mesmo tempo que os ritos civis de união ou mesmo em conexão com eles […], nem mesmo com as roupas, os gestos ou as palavras próprias de casamento”. Esse tipo de bênção “pode encontrar o seu lugar em outros contextos, como a visita a um santuário, um encontro com o sacerdote, uma oração recitada num grupo ou durante uma peregrinação”.

Por fim, o quarto capítulo (parágrafos 42-45) lembra que, “mesmo quando o relacionamento com Deus está obscurecido pelo pecado, sempre é possível pedir uma bênção, estendendo-Lhe a mão”. E desejá-la “pode ser o melhor possível em algumas situações”.

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No mesmo dia, Andrea Tornielli, jornalista e escritor italiano, relaciona o documento com o magistério de Francisco.

“Nemo venit nisi tractus”, ninguém se aproxima de Jesus se não for atraído, escreveu Santo Agostinho, bispo de Hipona, parafraseando as palavras do Nazareno: “Ninguém vem a mim se meu Pai não o atrai”. Na origem da atração por Jesus – de que falava Bento XVI, lembrando como a fé se difunde – está sempre a ação da graça. Deus sempre nos precede, nos chama, nos atrai, nos faz dar um passo em direção a Ele ou, pelo menos, acende em nós o desejo de dar esse passo, ainda que pareçamos não ter forças e nos sintamos paralisados.

O coração de pastor não pode ficar indiferente às pessoas que se aproximam pedindo para serem abençoadas, seja qual for sua condição, história ou trajetória de vida. Não apaga o brilho ardente daqueles que sentem a sua própria incompletude, cônscios que precisam de misericórdia e ajuda do Alto. Antes, vislumbra, no pedido de bênção, uma brecha no muro, uma pequena fenda pela qual a graça já poderia estar agindo. Assim, a sua primeira preocupação não é fechar a pequena fenda, mas acolher e implorar bênçãos e misericórdia, para que as pessoas possam começar a entender o plano de Deus para as suas vidas.

Essa consciência básica transparece na “Fiducia supplicans”, sobre o significado das bênçãos, que abre a possibilidade de abençoar casais irregulares, mesmo casais do mesmo sexo, esclarecendo que a bênção, nesse caso, não significa aprovar as suas escolhas de vida e reiterando a necessidade de evitar ritualização ou outros elementos que possam, mesmo remotamente, imitar um casamento. Aprofunda-se a doutrina sobre as bênçãos, distinguindo entre as rituais e litúrgicas e as espontâneas, que se caraterizam mais como atos de devoção ligados à piedade popular. O texto concretiza, dez anos depois, as palavras de Francisco na “Evangelii gaudium”: “A Igreja não é uma alfândega, é a casa paterna onde há lugar para cada pessoa com a sua própria vida fadigosa.”

A origem da Declaração é evangélica. Em quase todas as páginas do Evangelho, Jesus quebra as tradições e prescrições religiosas, conformismos e convenções sociais. E faz gestos que escandalizam os bem-pensantes, os autodenominados “puros”, os que se fazem escudo de normas e regras para afastar, fechar portas. Os doutores da Lei tentam pôr o Mestre em xeque com perguntas tendenciosas, para murmurarem indignados diante da sua liberdade transbordante de misericórdia: “Ele acolhe os pecadores e come com eles!”

Jesus estava pronto para correr até à casa do centurião de Cafarnaum, para curar o seu amado servo, sem a preocupação de se contaminar ao entrar em casa de pagão. Deixou que a pecadora lhe lavasse os pés, ante os olhares de julgamento e de desprezo dos convidados, incapazes de entender por que Ele não a rejeitou. Observou e chamou o publicano Zaqueu enquanto ele se agarrava aos galhos do sicómoro, sem esperar que se convertesse e mudasse de vida antes de receber aquele olhar misericordioso. Não condenou a adúltera que estava sujeita a ser apedrejada, segundo a lei, mas desarmou as mãos dos seus carrascos, recordando-lhes que eles – como toda a gente – eram pecadores. Disse que viera para os doentes e não para os saudáveis, e comparou-se à figura singular do pastor disposto a deixar 99 ovelhas sem vigilância, para ir em busca da que se havia perdido. Tocou o leproso, curando-o da doença e do estigma de ser um pária “intocável”. Os rejeitados encontraram o seu olhar e sentiram-se amados, destinatários do abraço de misericórdia que lhes foi dado, sem qualquer condição prévia. Ao descobrirem-se amados e perdoados, perceberam o que eram: pobres pecadores como toda a gente, necessitados de conversão, mendicantes de tudo.

Francisco disse aos novos cardeais, em fevereiro de 2015: “Para Jesus, o que conta, acima de tudo, é alcançar e salvar os distantes, curar as feridas dos doentes, reintegrar todos na família de Deus. Isso escandaliza alguns, mas Jesus não tem medo desse tipo de escândalo, não pensa em pessoas fechadas que se escandalizam até com uma cura, que se escandalizam com qualquer abertura, com qualquer passo que não se encaixe nos seus esquemas mentais e espirituais, com qualquer carícia ou ternura que não corresponda aos seus hábitos de pensamento e à sua pureza ritualística.” A “perene doutrina católica sobre o matrimónio”, vinca a Declaração, não muda: somente no contexto do casamento entre um homem e uma mulher é que “as relações sexuais encontram o seu significado natural, adequado e plenamente humano”. Porém, numa perspetiva pastoral e missionária, não é hora de fechar a porta para um casal “irregular” que peça uma simples bênção, por exemplo numa visita a um santuário ou durante uma peregrinação.

O estudioso judeu Claude Montefiore identificou o diferencial do cristianismo exatamente nisto: “Enquanto outras religiões descrevem o homem buscando Deus, o cristianismo proclama um Deus que busca o homem. Jesus ensinou que Deus não espera pelo arrependimento do pecador, mas vai à sua procura para o chamar para si.” A porta aberta de uma oração e de uma pequena bênção podem ser começo, oportunidade, ajuda.

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Sem escândalo, sem renúncia à doutrina, concretiza-se o desígnio: “Igreja para todos, todos, todos”, embora não para tudo. “Não podemos transformar-nos em juízes que apenas negam, recusam, excluem”, dizia o Papa, a 1 de outubro.

2023.12.18 – Louro de Carvalho

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