quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Não obstaculiza PRR, mas vetou diplomas que o dificultam

 

O Presidente da República (PR) vetou, nos últimos dias, sete decretos da Assembleia da República (AR) com reflexos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR): a 7 de dezembro, o Decreto n.º 103/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem dos Engenheiros) e o Decreto n.º 112/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem dos Arquitetos); a 11 de dezembro, o Decreto n.º 111/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem dos Enfermeiros) e o Decreto n.º 107/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem dos Advogados); a 12 de dezembro, o Decreto n.º 97/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem dos Médicos); a 13 de dezembro, o Decreto n.º 105/XV (Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores) e o Decreto n.º 102/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e à Lei n.º 77/2013, de 21 de novembro).

Esta série de vetos, por discordância relativamente à definição dos atos próprios de cada profissão, é tida, por alguns, como o último braço de ferro do PR com o Partido Socialista (PS), podendo atrasar a execução do PRR. O PS ainda não decidiu, mas admite reconfirmar os diplomas, o que levará o Presidente à promulgação obrigatória dos mesmos (se a AR os alterar, o PR pode-os vetar novamente), para que as verbas do PRR não sejam postas em causa, apenas atrasadas.

Efetivamente, o chefe de Estado, que garantiu ter dado tempo à AR para ultimar todos os processos legislativos de que estivessem pendentes verbas do PRR, que prometeu avaliar se cada ato do governo de gestão era mesmo necessário para assegurar os negócios do Estado e que promulgou alguns estatutos de ordens profissionais, ouvido o respetivo bastonário, embora chamando à atenção do legislador para, em sede de revisão, prevista no respetivo diploma, limar as arestas necessárias, podia, do meu ponto de vista, ter feito o mesmo em relação aos diplomas ora vetados, não dando razão a quem o acusasse de força de bloqueio ao governo e à AR.

Aliás, segundo a lei, o legislador ouve as entidades representativas dos destinatários (ordens, sindicatos, autarquias, etc.) a que respeita determinadas leis. É estranho que o PR ouça as Ordens, na pessoa do respetivo bastonário, para efeitos de promulgação ou de veto.   

Enfim, as alterações, algumas profundas, nas profissões reguladas deixam de costas voltadas algumas ordens e o PS, choque apadrinhado pelo PR, que vetou as alterações aos estatutos de sete ordens profissionais. Além disso, os vetos e promulgações dos 21 diplomas em análise têm saído a conta-gotas e marcam um choque político: Marcelo posiciona-se nas alterações estatutárias nas ordens profissionais; o PS não quer deixar cair uma reforma inscrita no seu programa eleitoral e contratualizada com Bruxelas, para que Portugal receba as verbas do PRR.

O PR atrasou a dissolução para 15 de Janeiro, a dar tempo para o PS reconfirmar os diplomas e deverá ser isso que o PS se prepara para fazer, apesar de a dimensão do veto contar para essa avaliação. A dimensão do veto ficou maior, pois o Presidente, dentro da data-limite para a pronúncia, fez cair o Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores e, por conseguinte, caiu também o diploma da Ordem dos Solicitadores.

Já com dois vetos presidenciais em cima da mesa (Ordem dos Arquitetos e Engenheiros) e a horas de mais três (Advogados, Enfermeiros e Médicos), o primeiro-ministro (PM) admitia que os atrasos nos fundos europeus, neste caso do PRR, se devem a atrasos nas ordens e criticou o Partido Social Democrata (PSD) por ter sempre votado contra. No debate preparatório do Conselho Europeu, a 11 de dezembro, o PM dizia que os sociais-democratas continuam “a querer travar” os diplomas, “subservientes a uma visão corporativa da sociedade portuguesa”.

A mexida nas ordens já fazia parte do memorando de entendimento com a troika, que identificou a necessidade de agilização da entrada em várias profissões, tem sido exigência de Bruxelas, desde 2018, nas recomendações específicas direcionadas a Portugal, e foi incluída nas reformas que Portugal tem de cumprir para assegurar as tranches do PRR; por outro é uma vontade política inscrita no programa eleitoral do PS, que defendia “a liberdade de escolha e acesso à profissão” e se comprometia a evitar as “restrições desproporcionais que impeçam o seu exercício”.

Contudo, a vontade de maior liberalização das profissões reguladas encalhou, primeiro, nas Ordens e, agora, no PR. Em alguns dos vetos conhecidos, o Presidente da República escreveu que os diplomas põem em xeque “o interesse público”, cada um à sua maneira.

No veto ao estatuto da Ordem dos Advogados (OA), o PR argumenta contra a redução do estágio de 18 para 12 meses e contra o facto de o diploma não prever o cofinanciamento público da remuneração dos advogados estagiários. Contudo, o ponto mais importante em que o chefe de Estado colide com o governo e com a bancada do PS é o novo regime dos atos próprios. Escreveu o PR que a possibilidade de outros profissionais praticarem alguns atos que eram possíveis de fazer, por exemplo, só por advogados, “parece introduzir uma possibilidade de concorrência desleal”, por não estarem sujeitos aos “deveres disciplinares, a ter de pagar quotas para a Ordem e às obrigações de independência, de proibição de conflitos de interesses e de publicidade que impendem sobre os advogados”. Esta frase antecipava que podia cair o Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores, que foi acoplado aos estatutos das ordens, e os consequentes estatutos da Ordem dos Solicitadores, aumentando a dimensão do veto presidencial.

No caso dos médicos, o PR alerta para a definição do “ato médico”, dado que “parecem existir sobreposições de competências dos vários profissionais de saúde, com inerente risco para a prestação dos cuidados de saúde aos doentes”. Por outro lado, o PS na AR retirava poder de iniciativa à Ordem dos Médicos (OM) para definir a formação da especialidade, mudança contrária ao que teria ficado acordado com entre o governo e a Ordem. E Marcelo aceita os argumentos da OM e escreve no veto que, ao afastar a OM de “uma intervenção essencial no que respeita ao reconhecimento de idoneidade e respetiva capacidade formativa dos serviços, bem como à definição dos conteúdos formativos para cada especialidade, aspetos de natureza puramente técnica médica, se compromete a qualidade da formação destes profissionais no futuro e, consequentemente, a qualidade dos cuidados médicos e a segurança dos doentes, bem como a própria organização e estabilidade do SNS [Serviço Nacional de Saúde]”.

No caso dos arquitetos, o PR diz que o “regime conjugado dos atos próprios da profissão e dos atos partilhados (com outras profissões) gera ambiguidades e revela-se pouco consentâneo com a prática profissional da arquitetura”. A mesma leitura repete-se na apreciação ao estatuto da Ordem dos Engenheiros (OE), em que o Presidente assinala a forma como são definidos “os atos de engenharia e respetiva graduação”, escrevendo: “Não basta ser-se licenciado em engenharia para se estar habilitado a assumir a direção técnica de uma obra de maior complexidade, pelo que a graduação de atos de engenharia, de acordo com a experiência profissional, é fundamental para a confiança dos destinatários dos serviços de engenharia.

Já no veto do estatuto da Ordem dos Enfermeiros, o PR não se foca neste aspeto, mas refere que o diploma “não assegura a desejável complementaridade funcional das profissões de saúde” e, por isso, “não parece salvaguardar o interesse público, nem contribuir para o bom funcionamento das instituições e, de forma particular, do Serviço Nacional de Saúde”.

Na nota sobre o decreto que altera o Estatuto da Ordem dos Arquitetos, o chefe de Estado afirma que decidiu vetá-lo, depois de ouvido o respetivo bastonário, por considerar que “o regime conjugado dos atos próprios da profissão e dos atos partilhados (com outras profissões) gera ambiguidades e revela-se pouco consentâneo com a prática profissional da arquitetura”. A redação do decreto deixa “dúvidas sobre se os atos próprios da profissão (elaboração e apreciação de projetos, estudos e planos de arquitetura) poderão vir a ser praticados por pessoas sem prévio estágio profissional e que não estão sujeitas à jurisdição disciplinar da Ordem”. “Mais grave, algumas das normas parecem contradizer as políticas públicas mais recentes que valorizam a prática arquitetónica enquanto transformadora do património público e capaz de satisfazer as necessidades crescentes da nossa sociedade”, critica Marcelo Rebelo de Sousa, na carta dirigida ao presidente da Assembleia da República.

Para o chefe de Estado, “esta solução parece configurar uma intromissão excessiva da tutela na autonomia das ordens e ser menos compaginável com o interesse público”.

Na fundamentação de alguns vetos, o PR ressalva que decidiu “sem prejuízo do cumprimento das obrigações do Estado português perante a União Europeia (UE), no quadro do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), as quais não são postas em causa, e tendo em conta as dificuldades inerentes ao processo legislativo” que levou à aprovação destes decretos.

***

Com a próxima tranche do PRR à porta, o PS entra, de novo, em contrarrelógio para confirmar os diplomas das ordens profissionais até que a AR seja dissolvida, a 15 de janeiro. Para garantir que o dossiê fica fechado e o dinheiro recebido, o PS confirmará os diplomas vetados. Porém, o caudal de vetos pode engrossar e tornar essa reconfirmação mais complexa. Em risco estão ainda os estatutos da OA e da OM, que criou problemas entre a bancada do PS e o governo. O grupo parlamentar decidiu, por exemplo, dar mais poderes ao governo para decidir sobre a formação dos médicos e a alteração apanhou de surpresa a OM que tinha um acordo com o ministro da Saúde, Manuel Pizarro.

Entretanto, o PR promulgou, nos últimos dias, vários diplomas de estatutos como os das ordens dos farmacêuticos, economistas, biólogos, fisioterapeutas, engenheiros técnicos, médicos dentistas, psicólogos, despachantes oficiais, contabilistas e notários.

Apesar da dimensão do veto, foi o próprio PR a afirmar que, mesmo que vetasse, dava tempo até à dissolução da AR, a 15 de janeiro, para que os diplomas sejam aprovados pelos deputados e assim não ficasse em causa a verba do PRR. Contudo, ao PS colocam-se vários problemas, mas sobretudo se o tempo até à dissolução dá para fazer alterações cirúrgicas ou se, dada a urgência de enviar para Bruxelas o cumprimento desta meta do PRR, se faz a confirmação direta. A direção do PS estuda as opções, mas tudo depende do que vier a concluir da fundamentação do Presidente para os vetos e da necessidade de o país receber as verbas do PRR.

Com efeito se o PS, que tem maioria na AR, confirmar os decretos, o PR é obrigado a promulgá-los, mas, se houver alterações, o Presidente pode vetá-los de novo ou enviá-los para o Tribunal Constitucional. Certo é que nenhum dos intervenientes quer ficar com o ónus de pôr em causa verbas do PRR. Aliás, foi também por isso que o Presidente adiou a dissolução da AR, ficando sujeito a críticas da direita. Porém, sujeita a AR a contrarrelógio exclusivo para estas matérias, como se não pudesse haver outras matérias relevantes a debater.  

Enfim, o Presidente da República, regra geral, alinhou com os interesses corporativistas das diferentes ordens, designadamente em termos do monopólio da prática de determinados atos, ditos próprios, mas pretensamente exclusivos. Não há motivo científico e técnico para impedir alguns profissionais de praticar determinados atos que algumas Ordens querem exclusivas dos seus membros, longe de qualquer concorrência. Embora as Ordens não devam ser excluídas da formação dos seus membros, não lhes deve caber nem o exclusivo, nem a direção dessa formação. O acesso às profissões não deve ser tão dificultado que impeça a existência suficiente de profissionais para responder às necessidades da sociedade. E é de duvidosa legalidade ser o erário público a pagar os estágios (os não integrados na formação académica) dos profissionais de uma profissão liberal.  

Porém, sobrepõem-se os interesses ao poder político e talvez ao interesse geral.

2023.12.13 – Louro de Carvalho

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