quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Ordem dos Médicos age além das suas competências

 

Que a Ordem dos Médicos (OM) exagera no exercício das suas atribuições já todos os sabíamos. Estão no caso, por exemplo, a obstaculização ao alargamento dos cursos de Medicina, o óbice à criação de novas especialidades e o seu papel preponderante na formação médica, nem sempre condicente com o pensar das academias. E o recente veto presidencial ao diploma que altera o Estatuto da Ordem dos Médicos é tido como muito justo pelo bastonário, Carlos Cortes, que foi ouvido pelo Presidente da República (PR) antes do veto. Com efeito, o PR atendeu às pretensões da OM, alegadamente por estar em causa o interesse público.   

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Entretanto, surgiram dois factos a mostrar que a OM age fora do âmbito das suas competências.

A Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, que gere o Lar de Reguengos de Monsaraz, onde morreram 18 pessoas durante a pandemia, acusa a OM de mentir e de inventar factos, pelo que intentou, a 24 de julho, ação em tribunal em conjunto com mais 23 pessoas a exigir a indemnização de 2,25 milhões de euros. A OM, que nega tudo, ainda não foi notificada, segundo o bastonário Carlos Cortes. A OM é acusada de ter orquestrado um plano para impedir os médicos de prestarem auxílio no Lar e para mobilizar a opinião pública através de um relatório que afirmasse a falta de condições na residência para pessoas idosas por culpa da Fundação e do Estado. “De acordo com vasta prova, recolhida de diferentes origens para que fosse bem fundamentada, incluindo documentos internos da Ordem dos Médicos, esta Ordem quis encontrar uma forma de recusar a indicação da ARS [Administração Regional de Saúde] para que os médicos fossem ordenados a prestar serviço no Lar, tendo desenvolvido um plano para esse efeito”, diz José Gabriel Calixto, presidente do conselho de administração da Fundação.

O plano, segundo José Gabriel Calixto, foi mobilizar a opinião pública através de relatório que atestasse a falta de condições por culpa da Fundação e do Estado, “o que fez, com sucesso, criando danos irrecuperáveis nas pessoas dos seus trabalhadores e dirigentes e na imagem da Fundação, enganando deliberadamente a sociedade portuguesa com factos inventados, conclusões sem premissas, omissão e censura de provas e testemunhas”.

Os factos remontam a 2020, em plena pandemia, após a morte de 17 utentes e de uma funcionária do Lar por covid-19. As denúncias de médicos que trabalharam no Lar levaram a OM a abrir uma comissão de inquérito, que viria a revelar falta de condições.

O relatório final foi enviado a diversas entidades oficiais, entre elas a Direcção-Geral de Saúde (DGS) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), e levou o Ministério Público (MP) a instaurar um inquérito, que foi arquivado em junho deste ano. De acordo com a procuradora Ana Margarida Sebastião, quando o surto eclodiu na instituição, a pandemia de covid-19 estava em fase inicial e as medidas preconizadas pelas autoridades para o controlo da doença “eram ainda muito exíguas e estavam em constante mutação”, o que terá condicionado as melhores decisões, o que se deve dizer em relação às dúvidas sobre a atuação das entidades públicas e dos profissionais de saúde. Terá havido “alguma desorganização na implementação das medidas de controlo da infeção”, mas os envolvidos apesar da “impreparação de todas as entidades”, “conjugaram esforços” para encontrar soluções. E, sobre as acusações de maus-tratos no Lar, o MP concluiu que os indícios da prática de crime não eram suficientes, ainda que tenha havido falhas com reflexo na qualidade dos cuidados prestados aos utentes.

José Calixto diz que a lista de erros é longa, mas os erros intencionais mais graves são oito.

A OM sustenta que não morreram só de covid, quando não tinha indicação de outro quadro e os relatórios oficiais referiam que todas as mortes se deveram a covid.

A OM sabia que havia plano de contingência desde março de 2020, delineado com a Segurança Social (SS) e com uma equipa médica de um estabelecimento de saúde e recebeu-o por e-mail da Fundação, a 6 de agosto de 2020, antes de ter divulgado a sua inexistência à comunicação social.

A OM diz ter criado uma comissão para investigar queixas de médicos de falta de condições. Ora, o que a motivou foi a necessidade de encontrar razão para os médicos se recusarem a cumprir a ordem da ARS que os ordenava a ir para a ERPI [Estrutura Residencial para Pessoas Idosas].

A OM tinha em seu poder um relatório exaustivo da SS, do início da pandemia, onde se verifica a existência de todas as condições de qualidade como ERPI, cumprindo toda a regulamentação e todos os critérios de qualidade.

A Fundação não permitiu que a falta de recursos humanos se prolongasse. A falta de pessoal deveu-se a doença e a recusas, sabendo a OM e os 24 autores desta ação que há provas de que a Fundação, desde o início do surto, antecipou que haveria quebra de pessoal e que a única forma de ultrapassar essa falha seria retirar os idosos do Lar para uma estrutura de retaguarda ou de saúde, nunca deixá-los num estabelecimento de apoio social que não está pensado para um cenário de surto generalizado. A instituição fez tudo “para conseguir trazer mais profissionais para dentro, desde a primeira hora, ativando protocolos institucionais, as forças armadas e até estruturas de voluntários, amigos, familiares e outras entidades privadas. Assim que a OM anunciou a mentira da falta de condições, para além dos médicos que se recusavam desde o início, começaram a recusar-se outros médicos e pessoas, agravando o problema.

A Fundação não foi responsável por testes lentos. A entidade responsável pela testagem foi o Agrupamento de Centros de Saúde, que não tinha testes suficientes.

A primeira pessoa afetada não foi uma trabalhadora, mas uma utente, o que está documentado. Porém, a OM quis criar a imagem de que o surto se iniciou por descuido da Fundação, através de uma funcionária, dando mesmo duas datas diferentes para esse facto inventado.

A OM chega a referir a existência de sangue no chão do equipamento de retaguarda, tirando fotografia, quando todos sabiam tratar-se de uma falha no pavimento”.

Para a Fundação, a OM tem de ser responsabilizada. “Basta ler as provas do relatório da Ordem dos Médicos para perceber: a história não está a ser relatada, está a ser inventada. O que está fora desse relatório, e é a novidade desta ação, é a prova do plano da Ordem dos Médicos, a intenção que levou às mentiras que relatou e divulgou, os danos que causou e o exemplo heroico de um grupo de pessoas que enfrentaram o primeiro grande surto em Portugal, com a adversidade do julgamento público e das recusas que a Ordem dos Médicos egoisticamente causou.”

Face às acusações descritas, Filipa Lança, a médica que coordenou o relatório, reitera que “tudo o que lá está escrito é verdade” e tem por base a recolha de “testemunhos gravados”, de médicos e não médicos, e a ida de especialistas ao local.

O bastonário da OM diz que, até ao momento, a OM não recebeu nenhuma notificação do tribunal sobre o caso. E Filipa Lança garante que, na altura certa, “responderemos de acordo”.

À data dos factos, o bastonário da OM era Miguel Guimarães, que garante que foram cumpridos todos os procedimentos normais para a situação e que nada moveu a Ordem contra a instituição, a não ser o bem-estar e saúde dos utentes e funcionários do Lar.

A Lar de Reguengos de Monsaraz, gerido pela Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, está atualmente com lotação esgotada e tem ainda uma vasta lista de intenções.

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Outro caso em que a OM está a interferir indevidamente, segundo alguns, é o episódio atinente às gémeas luso-brasileiras tratadas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

O ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales considera o inquérito aberto pela OM ao caso das gémeas luso-brasileiras como “inqualificável intromissão na atividade de um órgão de soberania”. Em declarações à Rádio Renascença (RR), o médico e ex-governante garantiu que não marcou a consulta no Serviço Nacional de Saúde (SNS) para as gémeas luso-brasileiras que receberam no Hospital de Santa Maria um tratamento com um medicamento inovador no valor de quatro milhões de euros. Garantiu que “nunca falou do assunto” com o PR nem com o primeiro-ministro (PM). E disse não se recordar, pelo que aguarda documentação para se pronunciar sobre a alegada reunião que terá tido com Nuno Rebelo de Sousa, filho do PR, que terá, alegadamente, metido uma cunha para o tratamento das crianças.

O bastonário da OM disse à Lusa que pediu ao Conselho Disciplinar da Região Sul da Ordem dos Médicos que avalie o comportamento dos médicos envolvidos no caso das gémeas luso-brasileiras, para perceber se há matéria disciplinar em que possa ter intervenção.

“Ontem [11 de dezembro], perante toda a informação que nos tem chegado pedi ao Conselho Disciplinar para avaliar este caso e para avaliar, obviamente, os médicos”, inclusive o ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales, disse Carlos Cortes.

O bastonário diz que a OM tem capacidade para avaliar todos os médicos, “os seus comportamentos, as suas decisões, ao obrigo de parâmetros éticos e deontológicos, ao abrigo das boas práticas da medicina, ao abrigo do comportamento médico, independentemente do seu nível de decisão”.

Em resposta a tais declarações, Lacerda Sales disse à RR que “tem a consciência tranquila”. E, quanto ao processo de inquérito promovido pela OM, em que o bastonário pretende que seja apurada, entre outros, a sua atuação como secretário de Estado, diz que mais lhe parece uma oportunidade para o bastonário “usufruir dos seus cinco minutos de atenção e fama por parte da comunicação social”. Além disso, não se depreende outro alcance do processo de inquérito, pois, à data qualquer que tenha sido a atuação do ex-governante não o foi enquanto médico, mas enquanto secretário de Estado. “Por isso, estamos perante uma sindicância da Ordem dos Médicos a um órgão de soberania do qual fiz parte, com muito orgulho, e que me parece uma inqualificável intromissão na atividade do órgão de soberania por parte da Ordem dos Médicos.”

Lacerda Sales, que manifestou à RR a disponibilidade para responder perante qualquer órgão e que integrou a equipa de Marta Temido, reiterou que “nenhum secretário de Estado, nem ninguém tem o poder para marcar uma consulta no SNS, nem para poder influenciar ou violar a consciência ou a autonomia de um médico”.

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O constitucionalista Vital Moreira (blogue “Causa nossa”) reconhece toda a razão a Lacerda Sales. Com efeito, a OM “só tem poder disciplinar sobre os seus membros nessa qualidade, por atos da profissão médica”, o que não é “o caso dos atos natureza político-administrativa de um secretário de Estado da Saúde”, que é médico. Por isso, o ex-governante deve “recusar-se a este inaceitável abuso de poder”. “A ter havido conduta censurável do governante no referido processo, ela só pode dar lugar a responsabilidade política, nunca a responsabilidade disciplinar perante a OM”, diz o renomado académico e constitucionalista. É, pois, mais um caso de usurpação de funções por parte da OM, na obsessão de se “intrometer na política de saúde e na gestão dos serviços de saúde e de cobrar responsabilidade política pela gestão do SNS, substituindo-se à Assembleia da República (AR) e à oposição, o que lhe não cabe”.

A quem sugere que Sales pode continuar inscrito na OM e que esta “não sabe distinguir entre os atos profissionais e os outros”, Vital Moreira contrapõe: estar inscrito na Ordem não a autoriza a submetê-lo ao seu poder disciplinar por factos alheios ao exercício da profissão; a distinção entre os atos do médico nessa qualidade e os da mesma pessoa noutra qualidade é óbvia e intuitiva e, “se a direção da OM não percebe tal diferença, um assessor jurídico ajuda”. 

Quanto ao inquérito ao Lar de Reguengos, Vital Moreira sustenta que é “outro caso de flagrante abuso de poder da OM”, que não tinha competência, por não ter base legal, e que tirou conclusões lesivas para a instituição, que vieram a ser infirmadas pelo MP. E a OM deve ser responsabilizada.

Livre-nos Deus de quem abusa do poder com intentos de protagonismo ou com excesso de zelo!

2023.12.13 – Louro de Carvalho

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