segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Não sou o Messias, a Palavra, a Luz, mas o precursor, a voz e a candeia

 

Uma das figuras humanas de relevo no 3.º domingo do Advento, no Ano B, o Domingo Gaudete (porque o antigo introito da Missa começava com a exortação “Gaudete in Domino”: “Alegrai-vos no Senhor), é João Batista, a voz que vem preparar os homens para acolherem Jesus, Luz do Mundo. O objetivo do Batista não é centrar sobre si a atenção pública; apenas está interessado em levar os seus interlocutores ao acolhimento e ao conhecimento de Jesus, Aquele que o Pai enviou com um projeto de vida e de liberdade para os homens, que passarão, assim, das trevas para a luz. Uma Boa Nova que enche de alegria o coração de todos os filhos e filhas de Deus!

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O Evangelho de João (Jo 1,6-8.19-28) inicia-se com um prólogo (cf Jo 1,1-18), que é um hino cristão primitivo, conhecido da comunidade joânica, onde se expressa a fé da comunidade em Cristo, Palavra viva de Deus. Os primeiros três versículos do trecho ora proclamado (Jo 1,6-8) pertencem ao prólogo. Depois, o evangelista desenvolve, em várias etapas, a catequese sobre Jesus. Na secção introdutória, subsequente ao prólogo, diz quem é Jesus e define a sua missão, fazendo entrar sucessivamente em cena várias personagens cuja função é apresentar a pessoa de Jesus aos destinatários. De entre estas personagens, sobressai a figura de João Batista, o “apresentador” oficial de Jesus.

Os líderes religiosos judaicos não gostavam de ouvir falar na chegada do Messias. De facto, para a conceção corrente, um dos objetivos do Messias seria a reforma das instituições, o que afetaria a estrutura religiosa judaica e mexeria com os privilégios da hierarquia sacerdotal. Portanto, é normal que as autoridades se inquietassem diante da atividade de João.

Na primeira parte do trecho em causa (vv 6-8), surge João, de quem se diz que é um homem e que foi enviado por Deus. Foi Deus quem o escolheu e o enviou com uma missão concreta. Este é o método habitual de Deus: chama homens, confia-lhes uma missão e, através deles, intervém no Mundo. A missão de João, que não é a luz, é dar testemunho da luz, ser a sua candeia. A luz, no 4.º Evangelho, representa a realidade que vem de Deus e com a qual Deus se propõe construir para os homens um mundo novo de vida definitiva e de felicidade total. João não atua por sua iniciativa, mas em resposta à vocação divina e para concretizar a missão que Deus lhe confiou.

Assim, este enviado de Deus não é a luz, pois não tem capacidade para eliminar as trevas que escurecem e desfeiam a vida dos homens, porque não tem a capacidade de dar vida aos homens. João é a testemunha que prepara os homens para acolher Aquele que vai chegar e que será a luz.

Na 2.ª parte (vv 19-28), temos o testemunho de João, perante uma comissão, enviada de Jerusalém para o investigar, constituída por sacerdotes e levitas, encarregados de vigiar a ortodoxia e a fidelidade à ordem religiosa judaica. No ambiente de messianismo exacerbado da época, a figura de João e o seu testemunho são inquietantes para os líderes religiosos judeus.

Os inquiridores fazem a João uma pergunta aparentemente inócua: “Quem és tu?”. Não tomam posição. Limitam-se a esperar que João declare a sua posição e as suas intenções. João descarta totalmente a hipótese de ser o Messias, não aceita identificar-se com Elias (que devia vir preparar o “dia de Javé”, o dia da vinda do Messias libertador, enviado por Deus para construir um Mundo novo), nem aceita assumir o título de “o profeta” (título alusivo a Dt 18,15, significando, na época de Jesus, um segundo Moisés que deveria aparecer nos últimos tempos). Enfim, não aceita que lhe atribuam nenhuma função que possa centrar a atenção na sua própria pessoa. Ele é o precursor: o que vem à frente do verdadeiro Messias As suas três respostas são negativas categóricas. Não busca a sua glória ou a sua afirmação, nem vem em nome próprio; a sua missão é meramente dar testemunho da luz e é para a luz que devem ser apontados os holofotes.  

É neste enquadramento que se entende a resposta de João, com os interlocutores a convidá-lo a definir-se: “Eu sou uma voz”. Voz é termo relacional que supõe ouvintes a quem é comunicada uma mensagem. A voz não tem rosto, é anónima e passa despercebida; o importante é o conteúdo da mensagem, a palavra. E João não é a Palavra, mas simplesmente a voz, o eco, a ressonância. A Palavra (o Cristo, o Messias) virá a seguir e passará á frente do Batista, pois existia antes dele.

João é, pois, uma voz pela qual Deus passa aos homens uma mensagem. É à mensagem e não à voz que os homens devem dar atenção. A mensagem que a voz veicula é: “Endireitai o caminho do Senhor”. A expressão é tomada de Is 40,3, em versão livre. Em Isaías, a expressão é usada no contexto da intervenção salvadora de Deus para fazer regressar à Terra da Liberdade os Judeus cativos na Babilónia. Pedia que o Povo, acomodado, desanimado e frustrado, se esforçasse para acolher os desafios de Deus e aceitasse pôr-se a caminho com Deus rumo ao futuro novo de vida e de esperança. É essa realidade que João é chamado a acordar no coração do seu Povo.

As respostas negativas de João desconcertam a comissão. Se não reivindica nenhum dos títulos tradicionais – “Messias”, “Elias”, “o profeta” – a que título é que ele batiza? Porém, João evita responder diretamente à objeção que os fariseus lhe colocam. Prefere desvalorizar o seu batismo com água e apontar para Aquele que vem e a quem não é digno “de desatar as correias das sandálias”. Esse é que é a Luz, a Palavra, o Messias, que vai libertar o homem da escuridão, da cegueira, da mentira, do egoísmo, do pecado.

A indicação de que os líderes não conhecem Aquele que já chegou e de quem João apenas é a voz é a denúncia da situação da classe dirigente judaica, instalada nos seus privilégios, certezas e preconceitos e pouco aberta à novidade e aos desafios de Deus.

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Na segunda leitura (Is 61,1-2a.10-11), a Liturgia da Palavra, mostra-nos o profeta a identificar a vocação de Deus e a missão que Deus lhe confiou. Ele apresenta-se como o “ungido” do Senhor, sobre quem repousa o Espírito; e é esse Espírito que o move e o impele para a missão – como acontecia com os juízes e com os antigos profetas. Embora não se mencione o termo “profeta”, essa missão apresenta-se como eminentemente profética: esse ungido é enviado por Deus e a sua missão tem a ver com o serviço da Palavra. A missão do profeta consiste em anunciar uma “boa notícia” (“evangelho”), em curar os corações feridos, em proclamar a libertação aos prisioneiros, em promulgar “o ano da graça do Senhor” (cf Lc 4,17-19). O anúncio do “ano da graça” alude aos anos jubilares, celebrados de 50 em 50 anos (cf Lv 25,10-17), e aos anos sabáticos, de sete em sete anos). De acordo com a Lei de Deus, como eram anos destinados a restaurar a situação original de justiça, implicavam a libertação dos escravos, o perdão das dívidas e a restituição dos bens e propriedades alienados durante esse período.

Os destinatários dessa mensagem de esperança são os “pobres”. Os pobres são os carentes de bens, de dignidade, de liberdade e de direitos, mas que, pela sua especial situação de miséria e de necessidade, são considerados os preferidos de Deus e o objeto de especial proteção e ternura de Deus. Por isso, são olhados com simpatia e até, numa visão simplista e idealista, são retratados como pacíficos, humildes, simples, piedosos, cheios de “temor de Deus”, ou seja, estão diante de Javé com serena confiança, em total obediência e entrega. Representam a parte do Povo de Deus maltratada e oprimida pelos poderosos, mas que se entrega com fé, humildade e confiança nas mãos de Deus e que Deus ama de forma especial. Portanto, a missão do “profeta” de que fala o Tritoisaías é anunciar um tempo novo, de vida plena e de felicidade sem fim, um tempo de salvação que Deus vai oferecer aos “pobres”. É a missão de Jesus (cf Lc 4,17-19; 21).

Percebe-se, então, que o Batista não se assuma como o profeta, a luz, a palavra. O ungido – Messias, em Hebraico, Cristo, em Grego – de que fala Isaías é a figura veterotestamentária de Jesus, o Cristo, que há de vir. Este é o verdadeiro profeta, enviado, ungido; é a luz, é a palavra, por excelência.

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A este propósito, vem o comentário de Santo Agostinho, bispo de Hipona (Sermo 293, 3: PL 38, 1328-1329) (Séc. V), que se leu no Ofício das Leituras desta dominga.

João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra (Jo 1,1). João era a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde o princípio. Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.

“Entretanto, mesmo quando se trata de alimentar os nossos corações, vejamos a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer, a palavra já está no meu coração. Se quero, porém, falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o que já está no meu.

“Procurando então como fazer chegar a ti e penetrar no teu coração o que já está no meu, recorro à voz e, por ela, falo contigo. O som da voz faz-te entender a palavra; e, quando te fez entendê-la, o som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece no teu coração, sem haver deixado o meu. Não te parece que esse som, depois de haver transmitido minha palavra, está a dizer: ‘É necessário que ele cresça e eu diminua? (Jo 3,30). A voz ressoou, cumprindo a sua função, e desapareceu, como se dissesse: ‘Esta é a minha alegria, e ela é completa (Jo 3,29). Guardemos a palavra; não percamos a palavra concebida no nosso íntimo.

“Queres ver como a voz passa e a palavra divina permanece? Que foi feito do batismo de João? Cumpriu a sua missão e desapareceu; agora, é o batismo de Cristo que está em vigor. Todos cremos em Cristo e esperamos d’Ele a salvação: foi o que a voz anunciou.

“Porque é difícil não confundir a voz com a palavra, julgaram que João era o Cristo. Confundiram a voz com a palavra. Mas a voz reconheceu o que era, para não prejudicar a palavra. Eu não sou o Cristo(Jo 1,20), disse João, nem Elias nem o Profeta. Perguntaram-lhe então: ‘Quem és tu? Eu sou’, respondeu ele, a voz que grita no deserto: Aplainai o caminho do Senhor(Jo 1,19.23). É a voz do que grita no deserto, do que rompe o silêncio. Aplainai o caminho do Senhor, como se dissesse: “Sou a voz que se faz ouvir apenas para levar o Senhor aos vossos corações. Mas Ele não se dignará vir aonde o quero levar, se não preparardes o caminho”.

“O que significa: ‘Aplainai o caminho, senão: Orai como se deve orar? O que significa ainda: ‘Aplainai o caminho, senão: Tende pensamentos humildes? Imitai o exemplo de João. Julgam que é o Cristo e ele diz não ser o que julgam; não se aproveita do erro alheio para afirmação pessoal. Se tivesse dito: ‘Eu sou o Cristo’, facilmente teriam acreditado nele, pois já era considerado como tal antes que o dissesse. Mas não disse; ao invés, reconheceu o que era, disse o que não era, foi humilde. Viu de onde lhe vinha a salvação; compreendeu que era uma lâmpada e temeu que o vento do orgulho pudesse apagá-la.”

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A segunda parte do trecho de Isaías (vv 10-11) é a parte final de um oráculo. Após o anúncio de salvação, a cidade de Jerusalém manifesta o seu regozijo e contentamento, porque Deus a vai revestir de salvação e de justiça, como o noivo que cinge o diadema ou a noiva que se adorna com suas joias. A última imagem – “como a terra faz brotar os gérmenes e o jardim germinar as sementes” – sugere a vida e a fecundidade que resultarão da ação libertadora de Deus.

É, pois, com o hino do regozijo de Maria que respondemos à vocação do profeta e ao oráculo:

“A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque
pôs os olhos na humildade da sua serva: de hoje em diante todas as gerações Me chamarão bem-aventurada.

O Todo-poderoso fez, em Mim, maravilhas: Santo é o seu nome. A sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que O temem. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias. Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia.

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Por fim, é de anotar que a primeira leitura (1Ts 5,16-24) nos mostra Paulo sem grandes desenvolvimentos ou reflexões muito elaboradas acerca do modo como os cristãos devem viver o tempo da espera do Senhor. Não obstante, apresenta sugestões relevantes para a vida cristã e para a construção da comunidade.

O apóstolo pede aos Tessalonicenses que vivam alegres e que pautem a vida por intensa oração, sobretudo de ação de graças. O cristão é a pessoa livre e feliz, cônscia da presença salvadora e libertadora de Deus ao seu lado, que contempla permanentemente o horizonte último da vida eterna e da felicidade que Deus lhe reserva e que, por isso, agradece ao seu Senhor e O louva.

Depois, o apóstolo quer a abertura do coração ao Espírito e a valorização dos seus dons. De facto, as experiências carismáticas começavam a criar problemas na comunidade. Nem todos entendiam e estavam abertos às interpelações do Espírito através de alguns membros da comunidade. O novo, o criativo, chocava com o rotineiro, o pré-fixado. Paulo recomenda aos cristãos de Tessalónica que saibam analisar tudo com cuidado e discernimento, sem preconceitos, de coração aberto à novidade de Deus, guardando “o que é bom” e afastando-se de “toda a espécie de mal”.

Uma comunidade construída de acordo com estes princípios – que vive a sua existência histórica com alegria e serenidade, que louva o seu Senhor e que está permanentemente atenta para discernir e aceitar os dons do Espírito – é uma comunidade “santa” e irrepreensível, preparada para acolher, em qualquer momento, o Senhor que vem.

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Porém, é preciso centrar tudo em Cristo. Nenhum Papa, nenhum bispo, nenhum padre, nenhum diácono, nenhum religioso, nenhum leigo pode protagonizar o Evangelho. E muitos tentam fazer isso, retirando Cristo da cena, mas falando no seu nome! É preciso que Aquele que batiza, já não só na água, mas no Espírito Santo, no fogo e no sangue, cresça e cada um de nós diminua (cf Mt 3,11-12; Mc 10, 38-39; Jo 3,30). Só assim seremos profetas, luzeiros, palavra e, de certo modo, Messias, mas com Ele.

2023.12.17 – Louro de Carvalho

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