sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Cardeal Tolentino de Mendonça galardoado com o Prémio Pessoa 2023

 

O 37.º Prémio Pessoa, ou seja, o Prémio Pessoa 2023, vai ser entregue a José Tolentino de Mendonça, o cardeal ainda com “muito caminho a percorrer”, como reza a ata do galardão, anunciado a 14 de dezembro.

Na véspera, à noite, o telefone tocou várias vezes no bolso do purpurado. Presente no Palácio de São Bento, em Lisboa, para a inauguração da exposição “Os caminhos da liberdade religiosa em Portugal”, o prefeito do Dicastério para a Educação e a Cultura debateu com o presidente da Assembleia da República sobre as religiões como património da Humanidade”.

Foi só mais tarde, quando entrou no carro que o ilustre membro da Cúria Romana conseguiu atender a chamada de Francisco Pinto Balsemão, a anunciar que fora escolhido como o Prémio Pessoa de 2023 o padre Tolentino – designativo por que era conhecido o cardeal antes de ser feito arcebispo titular de Suava, para ocupar os cargos de Arquivista e Bibliotecário da Santa Sé. 

Tímido, agradeceu, recordando a “longa relação de amizade e de vida” com o Expresso. “Antes de conhecer qualquer pessoa [na redação], conheci o jornal, com quem aprendi a me fazer leitor”, afirmou, em breve conversa, em reação à premiação, na manhã do dia 14.

A relação aprofundou-se, com o tempo, como cronista e com a aceitação em participar em múltiplas iniciativas marcantes, com destaque para o debate, em 2009, com José Saramago, sobre o livro “Caim”, de autoria do Prémio Nobel da Literatura, mediado por José Pedro Castanheira.

O cardeal Tolentino de Mendonça revelou que a totalidade do prémio, 60 mil euros, será entregue a uma instituição de solidariedade social portuguesa, cujo anonimato preferiu manter.

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José Tolentino de Mendonça, o mais novo de cinco irmãos, nasceu na ilha da Madeira (Portugal), a 15 de dezembro de 1965. Viveu os primeiros anos da infância em Angola, em zonas costeiras onde o pai era pescador. Deixou África aos 9 anos, aquando da independência das colónias portuguesas. Em 1989, licenciou-se em Teologia na Universidade Católica Portuguesa (UCP). Em 1990, foi ordenado sacerdote para a Diocese do Funchal e publicou a sua primeira recolha de poemas, Os Dias Contados. Em 1992, recebeu o título de Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico e, em 2004, o de Doutor em Teologia Bíblica pela UCP.

Como padre, exerceu as suas funções pastorais na Paróquia de Nossa Senhora do Livramento, no Funchal, entre 1992 e 1995; depois, em Lisboa, foi capelão, durante cinco anos, na UCP; serviu pastoralmente na paróquia de Santa Isabel; e, desde 2010, foi reitor da Capela de Nossa Senhora da Bonanza, mais conhecida por Capela do Rato.

A 4 de Agosto de 2021, o Cardeal D. José Tolentino de Mendonça ingressou como membro das Fraternidades Sacerdotais de São Domingos, em cerimónia que ocorreu no Convento de São Domingos, em Lisboa.

Os primeiros anos da sua vida sacerdotal foram também académicos. Foi professor no Seminário do Funchal, reitor do Pontifício Colégio Português, em Roma, docente na UCP e professor convidado no Brasil, pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Faculdade de Filosofia e Teologia (FAJE) em Belo Horizonte. Em Lisboa, integrou a UCP como assistente (1996-1999), professor auxiliar (2005-2015) e professor associado. Em 2012, a UCP nomeou-o vice-reitor e, em 2018, diretor da Faculdade de Teologia. Foi Straus Fellow na Universidade de Nova Iorque, durante um ano, fazendo parte de uma equipa de investigadores convidados, empenhados no estudo do tema “Religião e Espaço Público”.

Próximo do mundo cultural, pela sua vasta obra, pelas publicações e intervenções frequentes nos meios de comunicação social, Tolentino de Mendonça foi nomeado, em 2004, o primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), então criado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para promover o diálogo entre a Igreja e o meio cultural nacional, cargo que assumiu durante 10 anos. A 21 de novembro de 2009, depois de ter assistido a uma reunião do Papa Bento XVI com uma assembleia de artistas, confidenciou que o gesto de hospitalidade do Papa foi bastante apreciado e que o Papa assinala que, “no seio da Igreja, no seio do espaço cristão, [os artistas] têm uma casa, podem sentir-se como se estivessem em casa”. Em 2011, Bento XVI  nomeou-o consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, cargo para que foi reconduzido pelo Papa Francisco, em 2016.

Em 2018, José Tolentino de Mendonça foi convidado por Francisco para orientar os Exercícios Espirituais do retiro da Quaresma do Papa e dos membros da Cúria Romana, entre 18 e 23 de fevereiro. Para lá da Bíblia, recorreu a escritos de Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Françoise Dolto, Etty Hillessum ou Blaise Pascal, pois “os escritores são muitas vezes importantes guias espirituais”. As suas reflexões, sob o título Elogio da Sede, são prefaciadas pelo Papa.

Ainda em 2018 foi nomeado arcebispo e, como tal, indicado para os cargos de Arquivista e Bibliotecário da Santa Sé. Em 2019, foi elevado a cardeal, tendo-lhe sido atribuída a igreja romana dos Santos Domingos e Sisto. Em 2022, o Papa escolheu-o como o primeiro Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação.

Em janeiro de 2020, integrou comissão científica dos 700 anos da morte de Dante Alighieri (1265-1321) presidida pelo cardeal Gianfranco Ravasi, uma iniciativa do Pontifício Conselho para a Cultura. E, em junho desse ano, Francisco nomeou-o membro do Pontifício Conselho para a Cultura, presidido pelo cardeal Gianfranco Ravasi, tendo sido seu consultor entre 2011 e 2018.

Ainda em junho de 2020, recebeu o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, devido à “capacidade que demonstra, ao divulgar a beleza e a poesia como parte do património cultural intangível da Europa e do Mundo”. E, sob a sua liderança, no âmbito do 50.º aniversário da inauguração da Coleção de Arte Moderna dos Museus do Vaticano, o Dicastério da Cultura e Educação foi o principal organizador de um encontro entre o Papa e cerca de duzentos representantes do mundo cultural, artistas, escritores, compositores, músicos, acores, arquitetos, etc. de todo o Mundo. Este evento teve lugar a 23 de junho de 2023, na Capela Sistina.

Considerado uma das vozes do catolicismo contemporâneo, Tolentino de Mendonça, poeta e especialista em Estudos Bíblicos, tem publicados ensaios, textos espirituais, poemas e sermões, onde aborda os temas maiores do cânone cristão, relacionando-os e fazendo-os dialogar com a vida e com o quotidiano. A relação entre o cristianismo e a cultura constitui o foco central dos seus textos, procurando, enquanto teólogo e pensador religioso, descobrir a vida espiritual nos locais mais esquecidos, incentivando, ao mesmo tempo, a Igreja a ser mais presente e mais pertinente. As suas obras são muito bem-sucedidas em Portugal e cada vez mais traduzidas e publicadas no estrangeiro. Recebeu já inúmeros prémios literários, que contribuem para enaltecer a sua carreira enquanto escritor e sublinham o seu papel no mundo cultural.

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Mais do que “que coisa são as nuvens”, importa saber o que é uma Pessoa, não só quem foi o poeta Fernando Pessoa, mas quem é o ser humano. E é a esta peregrinação para o outro que Tolentino de Mendonça tem dedicado a vida: a pescar identidades, como em África, quando via o pai pescar. Quem como este sacerdote poeta se pergunta “Que coisa são as nuvens” – título das crónicas que, durante anos, escreveu para o Expresso – gostará de saber sobre o que é uma pessoa.

Criado para homenagear, em vida, Portugueses com contributos relevantes para o país, tendo como referência Fernando Pessoa, o prémio é atribuído pelo Expresso e pela Caixa Geral de Depósitos a individualidades com percursos marcantes. É o maior e mais prestigiado galardão nacional, que destaca, para a sociedade, uma obra que, no ano em causa, tenha alcançado particular destaque nos campos da Arte, da Cultura, da Literatura, das Ciências ou da Arquitetura.

Desta vez, é atribuído ao padre, escritor e poeta, académico, mas, sobretudo, jovem madeirense, que chegou a arcebispo e a cardeal, que se tornou romano, sem deixar de ser português

É de recordar que, em 2020, na pandemia, em cerimónia simbólica no Mosteiro dos Jerónimos, fez ver aos Portugueses, no Dia de Portugal, que era no diálogo geracional que encontrariam a saída para a angústia daquele contexto.

Em 2009, em entrevista ao Expresso, disse que, antes de ser padre, queria ser jornalista. Afinal, a propensão para a escrita esteve sempre com ele. Foi com a vertente de escritor e de poeta que se fez próximo de muitos Portugueses, mesmo de não crentes, encantados com a sua narrativa poética, mesmo quando o registo era, por exemplo, de crónicas. Nessa conversa, confessou uma oração iluminada pelas palavras de Pessoa: “Gosto muito de um poema do Fernando Pessoa, que para mim é uma oração. É um bocado heterodoxo, mas eu rezo muito: ‘Ave, passa, e ensina-me a passar.’ Essa passagem silenciosa ensina-me a não deixar rasto.”

As jornalistas da entrevista provocaram-no: “No entanto, escreve. Vai deixar rasto.” Tolentino de Mendonça resistiu: “Tudo isso vai ser esquecido.”

“Na sua vida, ainda com muito caminho a percorrer, Tolentino de Mendonça tem-se mantido fiel ao lema contido no título do seu mais recente livro. Tem sido um humilde e generoso Peregrino da Esperança”, lê-se na ata do júri, citada pelo comunicado emitido, no dia 14, pela organização.

Sentado entre o crítico de arte, José Luís Porfírio, e o musicólogo Rui Vieira Nery, o fundador do Expresso, Francisco Pinto Balsemão, presidente do júri, anunciou o vencedor, destacando ser José Tolentino de Mendonça “uma das vozes fundamentais da poesia portuguesa” e vincando o “banho de cultura” que marca o debate que caracteriza o processo de seleção.

Para os jurados, “em todos os domínios da notável e diversificada atividade intelectual, José Tolentino de Mendonça projeta uma visão do Mundo norteada por uma espiritualidade que pretende acolher, compreender e transcender as dilacerações, conflitos e sofrimentos da Humanidade”. Alguém que, pode ler-se, “protagoniza uma conceção integradora, unificadora e universal da força espiritual da literatura, que lhe serve de guia desde sempre”. Sublinha-se ainda, no comunicado, que, “foi neste sentido que introduziu a poesia de Fernando Pessoa, entre outros escritores, nos Exercícios Espirituais do Retiro de Quaresma do Papa e da Cúria Romana”.

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José Tolentino de Mendonça é o segundo cardeal a receber este prémio. O primeiro foi D. Manuel Clemente, então bispo do Porto, premiado em 2009. O 37.º galardoado com o Prémio Pessoa é escolhido no ano em que o Expresso decidiu, em escolha coletiva, que o título de Personalidade do Ano de 2023 deveria ser atribuído às vítimas de abusos sexuais da Igreja católica em Portugal, o mesmo ano em que se realizou em Lisboa a Jornada Mundial para a Juventude.

A CEP congratula-se pela atribuição do Prémio Pessoa 2023 ao cardeal José Tolentino de Mendonça e elogia a sua “cultura de busca de sentido e de convergência”. “Bem haja, D. José Tolentino, pelo seu precioso contributo para uma cultura de busca de sentido e de convergência, no Mundo complexo e diversificado em que vivemos, alimentando o sonho de um futuro de dignidade, justiça e paz para toda a Humanidade, próprias do tempo de Natal que estamos a preparar”, referem os bispos, em comunicado enviado à Rádio Renascença.

A CEP destaca a forma como Tolentino de Mendonça comunica, com o “rigor académico” e a “veia poética que caraterizam as suas obras literárias e a sua atuação”. “Revela um pensamento claro, interrogante e desafiador dos grandes temas da contemporaneidade, à luz de um humanismo celebrativo e inquieto, onde se reflete a sapiência do Evangelho”, assinalam os bispos.

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Uma voz escutada e acolhida merece ser celebrada e ecoar pelos corações de boa vontade!

2023.12.14 – Louro de Carvalho

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