sábado, 2 de dezembro de 2023

Francisco Cruz, o sacerdote que recusou honrarias eclesiásticas

 

O padre Francisco Rodrigues da Cruz – o popular Santo Padre Cruz, cujo processo de canonização está em curso – é uma das figuras mais populares do catolicismo português do século XX.

A 17 de dezembro de 2020, pelas 15 horas, o Cardeal D. Manuel Clemente, então patriarca de Lisboa, presidiu à sessão de clausura do processo diocesano para a causa de canonização do jesuíta Francisco Rodrigues da Cruz, conhecido como o Santo Padre Cruz, pela sua dedicação aos mais frágeis da sociedade. “Apesar dos problemas de saúde que teve, a vontade de servir o próximo nunca atenuou o fulgor do seu apostolado, caraterizado pela entrega aos mais pobres”, anotava, na ocasião, o Ponto SJ, portal dos jesuítas em Portugal.

A cerimónia, que pôde ser acompanhada em direto na página oficial e nas redes sociais do Patriarcado de Lisboa e dos Jesuítas em Portugal, decorreu na igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa, aberta à participação dos interessados, apenas na condição do respeito pelas medidas sanitárias em vigor, por força da pandemia de covid-19.

Decidido pelo cardeal-patriarca, após a audição do Tribunal constituído para a causa e do vice-postulador, padre Dário Pedroso, SJ, o encerramento do processo fora anunciado a 19 de novembro daquele ano,

Iniciado em 1951, o processo teve a fase diocesana, que decorreu até 1965. Contudo, mais tarde, foi necessário completar o processo com elementos requeridos pelas novas normas para a instrução dos processos de canonização. Depois de, entre outros elementos, terem sido ouvidas várias testemunhas acerca das “virtudes heroicas” do já reconhecido como “servo de Deus”, a terceira Comissão Histórica do processo, nomeada por D. Manuel Clemente, a 11 de dezembro de 2018, entregou, a 1 de outubro de 2019, os documentos, com a sua análise crítica.

Entretanto, o processo seguiu para a Congregação para as Causas dos Santos, o atual Dicastério para as Causas dos Santos, onde foi apresentado pelo postulador da Companhia de Jesus, padre Pascual Cebollada. O postulador e o vice-postulador redigiram, depois, a Positio, que resume a vida do Padre Cruz, e apresentaram os documentos e testemunhos que pretendem atestar a sua vida de santidade.

Francisco Rodrigues da Cruz nasceu a 29 de julho de 1859 e faleceu a 1 de outubro de 1948. Foi admitido na Companhia de Jesus (SI), a 2 de Setembro de 1940, e proferiu, a 3 de dezembro do mesmo ano, os seus últimos votos. “Num tempo como aquele que vivemos, a vida do padre Cruz pode e deve servir-nos de inspiração”, escrevia o padre Miguel Almeida, provincial dos jesuítas portugueses, quando o patriarca anunciou a conclusão da fase diocesana do processo.

“Aprofundar e divulgar o conhecimento que dela temos é um contributo importante para que a sua ‘santidade’ possa tocar um maior número de pessoas.”

Rapaz frágil nascido em Alcochete, tornou-se sacerdote jesuíta e dedicou a vida aos pobres, aos presos e aos doentes, percorrendo dezenas de quilómetros para pregar, confessar e ajudar quem dele precisava, aceitando as esmolas dos mais ricos para entregar a quem nada tinha e batendo à porta de pessoas influentes e poderosas, como o presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, e o Presidente da República, Óscar Carmona, a interceder pelos desprotegidos. 

Por esse seu ministério da mendicidade em prol dos mais pobres, cedo ganhou a fama de santo. A par desse ministério caritativo, teve papel decisivo na credibilização dos acontecimentos de Fátima e foi confessor da Irmã Lúcia, uma das videntes. São muitos os milagres que lhe são atribuídos. Mais de sete décadas passadas sobre a sua morte, fiéis de todo o país continuam a acorrer ao seu túmulo, em Lisboa, onde fazem fila para rezar.

É o retrato dessa figura que é feito no livro “Padre Cruz. O Santo do Povo”, de Ana Catarina André e Sara Capelo (Oficina do Livro, 2023, 240 pp.), que chegou às livrarias em abril. 

Ana Catarina André é jornalista da Rádio Renascença (RR), depois de ter trabalhado em vários órgãos de comunicação social. Venceu, em 2022, um prémio do Observatório de Ciberjornalismo e é autora de “Os Pombos da Senhora Alice – Envelhecer em Portugal” (2020) e “Confrarias de Portugal” (2019). Sara Capelo é consultora de comunicação, depois de ter estagiado no Público e trabalhado numa rádio universitária, num jornal local e na revista Sábado. Ganhou, em 2013, o Prémio de Jornalismo Económico Santander/Nova, é autora de “Os Estrangeiros que Mandaram em Portugal” (2014). Ambas escreveram, também em coautoria, “Peregrinos” (2017).

Um excerto do livro que o 7Margens publicou relata as vicissitudes do Padre Cruz com Afonso Costa, o líder republicano e ministro da Justiça. Daí se respigam alguns dados interessantes.

Padre Cruz, apesar de querido e muito protegido, nem sempre escapou incólume.

Estando a pregar perto de Torres Novas e o regedor da freguesia intimou o pároco a suspender, de imediato, o sermão e a mandá-lo embora. Os protestos da população não surtiram efeito e o pregador foi preso e enviado para Lisboa, escoltado por um guarda. Chegados à capital, de noite, dormiu no governo civil, mas garantiu que o polícia que o trouxera o “tratou muito bem”. 

O patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, que dizia que o Padre Cruz era “o para-raios de Portugal”, informado do que se passava, mandou um advogado da sua família falar com o ministro da Justiça. Na conversa, o jurista assegurou ao governante que o Padre Cruz “fora àquela paróquia ao serviço da Igreja, por mandato [do bispo]” e que o prelado garantia “que tudo quanto [o sacerdote] houvesse de sofrer o tomava como se a si próprio fosse feito”. 

Na manhã seguinte, o Padre Cruz foi recebido por Afonso Costa, que tinha prometido acabar com a religião católica em duas ou três gerações e que tinha sido um dos impulsionadores da “Lei da Separação do Estado das Igrejas”, de 20 de abril de 1911, que ditou o fim do catolicismo como religião do Estado – medidas salutares em si, mas tomadas em clima de hostilidade à Igreja. 

Quando o ministro lhe perguntou se era doutor de Coimbra ou de Roma e percebeu que ambos se tinham formado na cidade dos estudantes, em Portugal, deixou-o inesperadamente ir-se embora, mas não sem lhe deixar um aviso: “Não volta àquela freguesia sem minha ordem.” 

Numa das visitas à cadeia do Limoeiro, bateu à porta da cela onde estava o seu amigo Fiel Viterbo, matemático, arquiteto e decorador que, por ser considerado monárquico e capitalista, fora detido. “Doutor, precisa de alguma coisa?”, perguntou-lhe, como fazia às vezes. Um carbonário, vendo que Francisco da Cruz se aproximara do recluso, denunciou-o ao Ministério da Justiça, “que repreendeu o diretor [da prisão] por permitir andar um padre a falar com os conspiradores”. 

Da vez seguinte em que ali esteve, o Padre Cruz foi avisado de que não poderia regressar à rua, sem antes falar com o responsável do estabelecimento. Assim, teve de esperar até à noite, continuando no dia seguinte e por mais oito noites. Ficou tão isolado numa cela imunda, de modo que, excetuando as irmãs do Convento do Desagravo, que lhe mandaram alguma comida, ninguém sabia onde estava. A família, nomeadamente a irmã Isabel, que regularmente contactava com ele, através de postais, chegou a temer que o identificassem entre os corpos dos padres que, entretanto, tinham aparecido mortos no Tejo. 

Também o patriarca, D. António Mendes Belo, sabendo que o Padre Cruz estava desaparecido, pediu a um advogado que averiguasse, junto do Ministério da Justiça, se ele tinha sido preso, como sucedia a tantos sacerdotes. Quando foi informado, Afonso Costa mandou procurá-lo. 

Ao fim de nove noites, o Padre Cruz foi libertado. Mais tarde, revelou que, no dia em que saiu da cadeia, fora chamado à secretaria da instituição. Contou a pergunta que tinha feito a Fiel Viterbo e que faria a qualquer pessoa, muito mais a um amigo. O diretor mandou-o embora, dizendo que não pagava carceragem, nem ficava lá o seu nome. O advogado que o acompanhava, Mário Monteiro, quis abrir um processo judicial, pois, legalmente, nada justificava que o sacerdote tivesse sido preso, mas este não lho permitiu. Só lamentava não ter estado, durante aquele período, com outros reclusos, para “fazer propaganda religiosa”. E, com a família, partilhou a inquietação de não ter celebrado missa todos os dias, ainda mais coincidindo o tempo com três festas importantes: Sagrado Coração de Jesus, São João Baptista e o aniversário da Missa Nova. 

Para se certificar de que o episódio não se repetiria, o ministro da Justiça, que já o tinha ilibado anteriormente, escreveu com o próprio punho um “salvo-conduto”, que o autorizava a circular livremente. A partir de então, mostrava-o a polícias e a carbonários, dizendo: “Deixem-me passar, deixem-me passar! Tenho ordem do Sr. Afonso Costa. Leiam!” Com os mais próximos, chegou a comentar o episódio, afirmando com assertividade: “Há males que acontecem para bem.”

O Padre Cruz não queria ser nada mais do que um simples clérigo. A 27 de março, escreveu ao patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, pedindo-lhe que o dispensasse da nomeação de cónego da Sé, a que tinha procedido, para continuar a dedicar-se aos mais frágeis. E explicava: “Há muitos anos que me sinto atraído […] para ajudar espiritualmente os presos das cadeias, os doentes dos hospitais, os pobrezinhos e abandonados e tantos pecadores e almas desamparadas. Tenho também grande consolação em ajudar os reverendos párocos nos exercícios de piedade e [em] mais encargos.” Invocando estes motivos, sublinhava que, no seu entendimento, seria “mais da glória de Deus e bem das almas a vida de missionário do que a de cónego da Sé”. Agradecia “a desmerecida honra” que o patriarca lhe queria atribuir. Entendendo o seu desejo e o serviço que já prestava à Igreja, D. António Mendes Belo acedeu ao pedido e o Padre Cruz não chegou a fazer parte do cabido da sé patriarcal.

Consta que, um dia, depois de ter cumprido um programa de pregação numa paróquia, no percurso que fez, a pé, para apanhar o comboio, lhe saíra ao encontro um pobre a pedir uma esmola. Sem mais, pegou no envelope com o dinheiro com que o compensaram do serviço prestado na missão paroquial e deu-o ao pobre. Por conseguinte, ao pegar o comboio, não tinha dinheiro para a viagem. Instado a abandonar o comboio, obedeceu sem reclamação.  

Por mais que fizessem e sem que se vislumbrasse causa para tanto, o comboio não conseguia arrancar. Por isso, alguém teve a ideia de mandar chamar o clérigo impedido de viajar e convidaram-no a tomar o seu lugar. Inexplicavelmente, o comboio cumpriu o seu percurso sem qualquer sobressalto. O ter acontecido “depois” não significa ter acontecido “por causa de” (“post hoc non significat propter hoc”), mas que há coincidências, há.       

***

“Louvemos os homens ilustres, nossos antepassados, segundo as suas gerações. O Senhor deu-lhes grande glória e magnificência, desde o princípio do Mundo. Foram guias do povo, pelos seus conselhos, chefes do povo, pela sagacidade, sábios narradores, pelo seu ensino, criadores de melodias musicais e cantores de poemas escritos. Entre eles, há quem deixou um nome que continua a narrar as suas glórias” (Sir 1,1-2.4-5.7).

O Padre Cruz faz parte daqueles que, além disto, “foram homens de misericórdia, cujas obras de piedade não são esquecidas” (Sir 1,10), pelo que é merecedor do vaticínio “os povos proclamarão a sua sabedoria e a assembleia cantará os seus louvores” (Sir 1,15). Venha lá de Roma a canonização, que já não é sem tempo!

2023.12.02 – Louro de Carvalho

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