quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Portugal tem carga fiscal abaixo da média europeia

 

A 19 de dezembro, foi apresentado o estudo “A Fiscalidade em Portugal”, do economista Alexandre Mergulhão, professor do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL ou ISCTE), que sustenta que o país “tem uma carga fiscal abaixo da média europeia, mas a sua composição penaliza trabalhadores e outros grupos de menores rendimentos”, contrapondo que a ideia de que os impostos são muito elevados não encontra sustentação empírica.

O estudo ora tornado público, com apresentação no Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL), foi promovido pela associação cívica Causa Pública, dedicada à produção de propostas de políticas públicas. Na direção da associação, além do ex-governante socialista Paulo Pedroso, que preside, encontram-se Alexandra Leitão, deputada do Partido Socialista (PS), e Ana Drago, antiga dirigente do Bloco de Esquerda (BE).

Para o referido economista, a discussão sobre a fiscalidade tende a centrar-se na ideia de que Portugal deve baixar os impostos, por serem demasiado elevados – ideia aliciante, pois ninguém gosta de pagar impostos, embora compreenda que “os impostos são o preço que pagamos para vivermos numa sociedade decente”. Porém, apesar de aliciante, a ideia não passa disso.

Questionado sobre a razão por que vários partidos apontam que a carga fiscal é demasiado pesada, o economista contrapõe que isso se deve à falta de “programa político”, pois, segundo o Eurostat, em 2022, a carga fiscal, em Portugal (35,8%), foi inferior à média da União Europeia (UE) (40,0%) e da Zona Euro (40,6%). Diz o autor: “Apesar de ter aumentado nos últimos anos, a carga fiscal, em Portugal, é, e sempre foi, inferior à média europeia. Isto é especialmente preocupante dadas as nossas caraterísticas socioeconómicas: um dos países mais envelhecidos do mundo e com obrigações constitucionais de provisão de saúde e educação. Penso que esta ideia prolifera no nosso país, porque vários partidos ficaram sem programa político e, por isso, adotaram a estratégia fácil de alimentar esta ideia aliciante, mas falsa.”

O estudo aponta que o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e outros impostos indiretos são regressivos (maior peso nos rendimentos dos pobres), para lá de serem “a maior fonte de receita do sistema fiscal”. “De facto, em Portugal, a fiscalidade incide demasiado em impostos indiretos (43% da receita fiscal, enquanto, na UE, é de 34%) e em impostos sobre o consumo. Estes são os únicos tipos de imposto em que temos carga fiscal acima da média da UE. E essas diferenças têm aumentado nos últimos anos.

Estes impostos são pagos por todos os residentes e resultam numa taxa efetiva mais elevada para os mais pobres, porque representam maior proporção do seu rendimento. Assim, aumentando os impostos indiretos e baixando os diretos, como tem acontecido nos últimos anos, reduzimos a progressividade do sistema fiscal global. Por isso, o economista preconiza: “Devemos inverter esta tendência e caminhar no sentido de reduzir os impostos sobre o consumo e contrabalançar com impostos diretos e sobre o capital.” Entre outras opções, uma forma de reequilibrar a fiscalidade Portuguesa é reintroduzir o imposto sobre as sucessões e doações (abolido em 2003), aplicando-o só às grandes fortunas. A maioria dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] e todos os países da UE, exceto a Áustria e a Suécia, têm o imposto sobre as heranças e doações. “Dada a elevada desigualdade de riqueza e a ausência de ferramentas para a atenuar, em Portugal, deveríamos equacionar um imposto sobre as heranças milionárias (valor patrimonial tributário acima de um milhão de euros, líquidos de dívidas), sem afetar as poupanças de todos os outros residentes.”

A ideia é apoiada por Paulo Pedroso. Vincando que é a sua perspetiva pessoal, lembra que “haveria uma margem para repor impostos sobre a transmissão de património, portanto sobre as grandes heranças, que poderiam ter um efeito económico”, permitindo compensar a eventual redução da receita em impostos indiretos, com a caraterística adicional de que seria um imposto sobre riqueza não ganha pelos beneficiários, porque é um imposto sobre a transmissão, em vez de sobre o que a pessoa paga ou sobre os recursos que ela própria obtém do seu esforço. E defende que é justo “não taxar as pequenas poupanças ou heranças de pequena dimensão”, tal como acontece, devendo este reforço fiscal ser aplicado a “heranças de valor patrimonial de milhões de euros”, que, segundo a legislação vigente, “são tratadas como heranças meramente simbólicas” e provocam distorção, ao permitirem a “transmissão de privilégio”.

Enfim, o estudo sublinha “que Portugal tem um sistema fiscal com baixa taxação sobre a riqueza, face ao trabalho e ao consumo”, contradizendo a narrativa de vários partidos. Além disto, questionado sobre o motivo que levou o Partido Social Democrata (PSD) a propor um programa de reforma fiscal centrado no imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e não nos impostos indiretos, como o IVA, o economista aponta uma ideia de “tradição”, estendendo ao governo a crítica para esta tendência. Os partidos de direita preconizam o aumento dos impostos indiretos e a redução dos diretos. Não seria, pois, de esperar uma alteração desta tradição. “O que acontece é que o governo tem seguido essa estratégia, para esvaziar ainda mais o programa da oposição de direita e para aumentar o rendimento líquido das classes médias”, lembrou.

“A questão é que as ideias políticas das pessoas, muitas vezes, não correspondem às posições que derivariam dos seus interesses diretos”, explicou. De facto, em inquérito e sondagem, muitas das pessoas que não pagam IRS respondem que este imposto é demasiado elevado. Ora, isso acontece devido ao poder das ideias e à forma como se colocam as questões. Por exemplo, segundo um estudo da OCDE de 2019, Portugal é o país onde mais pessoas (80% dos inquiridos) concordam em aumentar impostos sobre os mais ricos para apoiar os mais pobres. A maioria aceita o aumento da carga fiscal, se isso permitir ao Estado dar a todos os cidadãos melhores serviços públicos na Saúde, na Educação, na Habitação e nos Transportes.

Assim, o poder da ideia (falsa) de que a carga fiscal é demasiado elevada leva pessoas que nem pagam IRS a considerar que o imposto é demasiado alto, apesar de ser a ferramenta redistributiva mais eficaz no nosso sistema fiscal e de as pessoas defenderem mais redistribuição. Como sempre, cabe aos partidos clarificar estas contradições, mostrando como é que as suas propostas de política melhoram as condições de vida dos que vivem em Portugal.

***

Em síntese, o estudo “refere que Portugal registou uma carga fiscal de 35,8% no ano passado, 4,2 pontos percentuais (pp) abaixo da média da UE e 5,1 pp inferiores à da Zona Euro. Porém, os impostos indiretos, como o IVA, “são particularmente altos” e têm maior peso nos rendimentos dos mais pobres, constituindo-se como “a maior fonte de receita do sistema fiscal”.

O IRS tende a dominar a discussão pública, mas não é nesse imposto que se destaca pela elevada carga fiscal, mas nos impostos sobre o consumo. Apesar de mais de 40% das declarações de IRS não implicarem o pagamento desse imposto (devido aos baixos rendimentos), impostos como o IVA recaem sobre todos e com maior força sobre os que têm menores rendimentos. Portugal tem, assim, um sistema fiscal “com baixa taxação sobre a riqueza, face ao trabalho e consumo”, sendo o terceiro país da OCDE com a maior diferença entre a tributação de salários e de dividendos.

Os impostos sobre a propriedade correspondem a 4,2% do total da receita, contrastando com países como a Austrália, o Canadá, a Coreia do Sul, o Luxemburgo, o Reino Unido e os Estados Unidos da América (EUA), que recolhem mais de 10% de receita, com este tipo de impostos.

Até 2004, Portugal dispunha do imposto sobre as heranças, que foi substituído por um imposto de selo (IS) de 10% (de que estão isentos os descendentes, ascendentes e cônjuges).

As diferenças entre a taxação do capital e do trabalho têm-se aprofundado. Entre 2000 e 2022, os principais impostos sobre o trabalho aumentaram 4 pp do Produto Interno Bruto (PIB), apesar de o peso dos rendimentos do trabalho sobre o produto “ter caído significativamente”. E o IVA e o IRS aumentaram 1,7 pp do PIB, enquanto os principais impostos sobre o capital subiram 0,2 pp, apesar do crescimento de rendimentos de capital.

A complexidade do nosso IRS torna-o um sistema fiscal menos progressivo. A progressividade “é reduzida pelas várias opções de não englobamento e pelos mais de 140 benefícios fiscais existentes”, pelo que o sistema fiscal deve ser “reequilibrado, descomplexificado e mais justo”.

O estudo propõe a eliminação paulatina das várias opções de não englobamento, defendendo que o fim das benesses aos rendimentos de capitais, às mais-valias e às rendas aumentaria a taxa efetivamente paga pelos 10% mais ricos e não alteraria o IRS pago por 99,5% dos agregados. E, “se também aplicássemos esta medida aos agregados que atingem o penúltimo escalão de IRS, a proposta continuaria a não alterar o IRS pago por mais de 95% dos agregados, criando mais folga para diminuir as taxas dos escalões do IRS”, sugere o estudo.

***

Em meados de setembro, o instituto alemão Ifo (Information e Forschung) concluía que a classe média, em Portugal, suporta uma carga fiscal – impostos e contribuições para a segurança social – mais baixa do que a média da UE, mas evidenciava que, em termos de rendimento disponível andamos, igualmente, pelos patamares inferiores. Outra conclusão é a existência de disparidade no tratamento fiscal nos rendimentos auferidos pelos solteiros – por toda a Europa há a tendência de oneração significativa dos contribuintes que não são casados. Os dados são de 2019, pré-pandemia, mas fornecem um retrato europeu sobre os níveis de carga fiscal praticados nas 27 economias que compõem a UE e permitem aferir quais são os diferentes rendimentos em cada país. A intenção foi dar uma visão geral da situação da classe média na Europa, comparando os rendimentos e a carga fiscal em todos os Estados-membros da UE.

Em Portugal, um casal de classe média, em que ambos declaram salários idênticos, com dois filhos, entrega ao Estado uma contribuição fiscal média de 10,5% do rendimento, indica o Ifo (é a quarta carga fiscal mais baixa entre os 27 Estados-membros); e também fica bastante abaixo da média da União, que se situou, naquele ano, em torno dos 17%. Uma família portuguesa idêntica, mas com ganhos mais baixos, a carga fiscal fica nos 3%, enquanto, no patamar classificado como classe média-alta, a fatura dos impostos e da Segurança Social come quase 21% dos rendimentos.

Já do lado de um agregado de classe média em que só um dos membros do casal tem salário, igualmente com dois dependentes a cargo, o peso dos impostos e contribuições sociais já sobe para os 14%, a terceira mais baixa e que compara com a média europeia de quase 23%, enquanto a uma família de classe baixa paga um pouco mais de 3% e um casal de rendimentos mais elevados suporta quase 24%.

O peso da carga fiscal é particularmente expressivo no caso dos solteiros, uma realidade transversal na Europa, em que a tendência dos governos tem sido de beneficiar os contribuintes com filhos. Em Portugal, um solteiro de classe média suporta uma fatura fiscal na ordem dos 28%, o que coloca o país com a 10.ª carga fiscal mais baixa.

A classe média na Dinamarca, Bélgica, Alemanha, Finlândia, Lituânia, Eslovénia e Holanda é a mais tributada. A França, a Polónia, a Itália, o Luxemburgo, a Suécia e a Áustria impõem impostos médios às suas classes médias. E estas famílias, em Espanha, Grécia, Estónia, Portugal, Chipre, Bulgária e Roménia têm carga fiscal inferior à da média da UE.

***

Ao invés, Portugal pontua entre os países onde se ganha pior: está em 11.º lugar do ranking dos 27 com os rendimentos mais baixos. Portanto, a reviravolta não deve passar pela diminuição da carga fiscal, mas pela subida do rendimento e pela baixa dos custos de produção.

Uma classe média forte é importante para a estabilidade política nas democracias e será a âncora contra o extremismo político. Com impostos e com outros contributos, os contribuintes com rendimentos médios engrossam as receitas e, logo, os orçamentos dos governos e o respetivo financiamento do Estado-providência da UE.

2023.12.20 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário