domingo, 24 de dezembro de 2023

Administração norte-americana muda de agulhas na política externa

 

Sem grande surpresa, os Estados Unidos da América (EUA) estão prestes a deixar a Ucrânia e a Europa para segundo plano, no apoio militar, pois a China afigura-se-lhes como “uma ameaça mais grave a longo prazo”.

Efetivamente, os Americanos são pródigos na ajuda militar, por si mesmos ou enquadrados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou, no acrónimo inglês, NATO). Porém, depressa ou tarde, se cansam e atenuam o apoio ou o fazem cessar. O exemplo mais recente é o do abandono do Afeganistão, o que levou o país à anterior governação prepotente e desumana. 

Essa desistência norte-americana resulta de pressões internas e ou da pretensa necessidade de mudança de agulhas pela alteração dos seus interesses geoestratégicos.

Agora, a pressão interna nos EUA, considerando que o Indo-Pacífico é uma região que exige maior atenção, está a obrigar a Casa Branca a aumentar a atenção dada à China. Com efeito, segundo os influenciadores, Moscovo não é um adversário tão potente como se julga, ao passo que Pequim é tido como “ameaça mais grave, a longo prazo, para a segurança dos EUA, dada a sua riqueza, tamanho e desenvolvimento militar”, observa a analista de Defesa Kelly Greco.

Essa mudança de agulhas implica uma perda de apoio militar e logístico para a Ucrânia e para o resto da Europa, que terá de aumentar os gastos com a sua Defesa.

É certo que tal decisão da Casa Branca, a acontecer, surge no pior momento para a Ucrânia, cuja guerra está num impasse. Contudo pode funcionar como antídoto, a médio prazo, para o robustecimento militar da União Europeia (UE) e para a diminuição ou término da dependência da Europa em relação aos EUA.  Para já, a viragem para o Pacífico, em detrimento do Atlântico Norte, coloca em risco o apoio à Ucrânia e deixa a Europa numa franja de nervos.

A fração do Congresso norte-americano que mais se opõe à continuação do apoio militar à Ucrânia argumenta que deveria ser a Europa, e não os EUA, a arcar com as despesas das suas questões de segurança. Por outro lado, vê China como uma ameaça crescente e muito mais significativa para os EUA. Em maio de 2022, já depois de ter começado a guerra na Europa, Anthony Blinken, secretário de Estado norte-americano, afirmou, no seu discurso sobre a Estratégia dos EUA para Pequim: “A China é o único país com poder diplomático, económico e militar para desafiar seriamente o sistema internacional estável e aberto.”.

Kelly Grieco, investigadora da área de Defesa do Reimagining US Grand Strategy Program, do ‘think tank Stimson Center, salienta que a Rússia é tida como um agressor oportunista ou, segundo o Pentágono, uma ameaça aguda. Com os desafios demográficos, economia meio enfraquecida e forças armadas degradadas, é ameaça menor, a longo prazo, para os EUA do que a China.

Sobretudo os republicanos sustentam, predominantemente, a narrativa de que Taiwan, (potencial) teatro de guerra marítimo, e Kiev, teatro de guerra terrestre, são polos distintos que disputam a assistência militar dos EUA. Embora sejam territórios com necessidades militares diferentes, algumas intersetam-se: submarinos de ataque, munições avançadas, defesas antiaéreas e sistemas de inteligência, entre outros. Portanto, embora a Rússia seja ameaça grave, os EUA devem ter em conta os requisitos necessários para enfrentar o desafio de longo prazo que a China coloca. “Entre esses encargos estão a preservação dos arsenais militares e a transferência de mais atenção e recursos da Europa para o Indo-Pacífico”.

Nos últimos meses, mesmo com a guerra a perpetuar-se no Médio Oriente, o presidente norte-americano Joe Biden, cônscio de que a China estará a observar a capacidade de resposta norte-americana para tomar decisões, tentou transmitir, em Washington, que o fator que limita o arsenal norte-americano fornecido é a vontade política. Todavia, o Pentágono, por um lado, tem tido mais dificuldades em obter projéteis de artilharia, por outro, os EUA e aliados têm sido obrigados a acelerar a produção militar em larga escala.

Esta situação contraditória resulta, sobretudo, de atraso na produção dos EUA e de uma distração da Casa Branca, com as entregas de armas à Ucrânia a terem a preferência sobre Taiwan, como aduziu o republicano Mike Collin, quando os EUA, em outubro, atrasaram as entregas, o que levou os militares ucranianos a racionar as munições no campo de batalha, como informava a AP. E, naquela circunstância, foi altamente contestado o envio norte-americano de bombas de fragmentação, para substituir as remessas regulares.

A 18 de dezembro, a Casa Branca avisou que os EUA teriam apenas fundos para mais um pacote de ajuda à Ucrânia, em 2023. Joe Biden tem enfrentado a pressão do Congresso, que continua a bloquear um novo apoio militar a Kiev. Antony Blinken adiantou que Washington tem um plano para permitir que a Ucrânia, no futuro, se financie de forma independente, deixando de depender da ajuda militar e económica norte-americana. Desde o início da guerra, a 24 de fevereiro de 2022, o Congresso norte-americano já se comprometeu com mais de 110 mil milhões de dólares (100 mil milhões de euros), para auxiliar a defesa ucraniana.

Kelly Grieco não duvida de que o apoio público ocidental à Ucrânia está a diminuir e de que há uma crescente ansiedade na Europa, relativamente à possibilidade (quase certeza) de os EUA não continuarem a fornecer ajuda militar a níveis como os iniciais, bem como relativamente ao resultado das suas próximas eleições presidenciais.

A Europa já está alerta, com os Estados Bálticos a sentirem-se “inseguros”, porque localizados nas linhas da frente da NATO e lembrados da “vida sob a Cortina de Ferro”, sublinha a investigadora de Estratégia e Segurança. Ora, os Europeus deveriam estar preocupados com a futura direção da estratégia de Defesa dos EUA na Europa. Independentemente de quem venha a vencer as próximas eleições presidenciais dos EUA, Washington está cada vez mais concentrado na China e nas ameaças no Indo-Pacífico, e não na Europa. Na II Guerra Mundial, em 1941, os EUA e o Reino Unido viram-se confrontados com um dilema e, adotando a estratégia “Europa em primeiro lugar”, deram prioridade à derrota da Alemanha nazi e facilitaram a abertura à expansão do imperialismo japonês.

 Os países europeus têm demorado a aceitar esta realidade. Os gastos europeus com a Defesa são, ainda, uma gota no oceano, apesar de, com a guerra na Ucrânia, terem dado um grande salto. A maioria dos países da NATO ainda não atinge os obrigatórios 2% do produto inferno bruto (PIB). E a ênfase de Joe Biden na unidade da NATO resultou em conversas difíceis quanto à partilha de encargos que estão esquecidos. Crê-se que, à medida que se perceba que está em causa o financiamento dos EUA à Ucrânia, a Alemanha acordará do seu sono e a França aproveitará a oportunidade para impulsionar a sua defesa, através de uma abordagem mais robusta.

Taiwan está no centro da tensão relacional entre a China e os EUA. Pequim reivindica a soberania sobre a ilha, localizada a cerca de 160 km da costa sudeste do continente, e promete tomá-la pela força, se necessário, para lograr a reunificação nacional. Porém, os EUA, que têm um pacto de segurança com a ilha, fornecem-lhe equipamento militar e tecnologia para preparar o território para uma eventual incursão de Pequim. O presidente norte-americano disse, por várias vezes, que enviaria tropas para defender Taiwan, em caso de guerra; e Xi Jinping exige que os EUA respeitem a “soberania e integridade territorial” do seu país.

Na ótica norte-americana, a Ásia, fervilhante e cada vez mais decisiva no Mundo, é uma região que merece mais preocupação. A guerra na Ucrânia redirecionou esforços, mas não alterou o crescente poder e a influência da China, o que leva diplomatas e analistas a considerar que, se concretizar o objetivo de se tornar dominante na Ásia, esse grande país controlará mais de metade da economia global. A China é, pois, uma ameaça mais grave, a longo prazo, para a segurança nacional dos EUA, dada a sua riqueza, tamanho e desenvolvimento militar.

***

A 20 de dezembro, os líderes do Senado (câmara alta do Congresso dos EUA) admitiram que não aprovarão novo pacote de apoio militar à Ucrânia até ao final do ano. “Os negociadores ainda estão a trabalhar em algumas questões e esperamos que os seus esforços permitam ao Senado agir rapidamente […] no início de 2024”, afirmaram em declaração conjunta o democrata Chuck Schumer e o republicano Mitch McConnell.

A Casa Branca já tinha alertado, na no dia 18, o 665.º dia de guerra, que os EUA têm fundos para só mais um pacote de ajuda à Ucrânia, em 2023, enquanto o Congresso continua a bloquear um novo apoio militar a Kiev. “Só nos resta um envelope de ajuda”, antes que os fundos se esgotem, frisou John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional norte-americano, que não especificou o montante deste novo pacote que é esperado ainda em dezembro.

O secretário de Estado norte-americano disse que há um plano, sem especificar qual é, para que a Ucrânia, no futuro, se financie de forma independente, deixando de depender da ajuda militar e económica norte-americana. “Mas primeiro temos que ajudá-los por um tempo. Para que o inverno passe. Para que a primavera e o verão passem”, destacou Blinken.

Desde o início da guerra, a 24 de fevereiro de 2022, o Congresso norte-americano comprometeu-se com mais de 110 mil milhões de dólares, mas os republicanos estão a bloquear um importante pacote de ajuda, exigindo grandes mudanças na política de migração dos EUA, incluindo medidas mais rígidas na fronteira com o México.

Entretanto, a organização não-governamental Human Rights Watch (HRW) avançou a acusação de que a Rússia continua a recrutar, à força, residentes nas zonas que ocupou na Ucrânia para combaterem no Exército russo. “As autoridades russas obrigam homens nos territórios ocupados da Ucrânia, de forma aberta e ilegal, a lutar contra o seu próprio país”, disse Hugh Williamson, diretor para a Europa e Ásia da ONG de direitos humanos.

Williamson adiantou que os ocupantes russos também pressionam “os civis detidos” nas zonas ocupadas para se juntarem às suas fileiras, refere um comunicado da HRW, que qualifica de “crime de guerra” as duas práticas: deter civis e pressioná-los ao alistamento. A organização disse ter entrevistado, por telefone, três homens que se encontram em prisão preventiva no Donetsk, no Leste do país, controlada pelos separatistas russófonos e com a presença de militares russos. “Os três disseram que estão detidos desde antes da invasão russa, em larga escala, de fevereiro de 2022, e que oficiais das forças militares da designada República Popular de Donetsk tentaram pressioná-los, através de intimidações, ameaças e propaganda”, lê-se no comunicado. O advogado dos detidos diz conhecer, “pelo menos, 11 casos similares”, indica a Human Rights Watch.

Para o Kremlinm os contactos com a Ucrânia são irrelevantes, pois Kiev abandonou as negociações de paz, em 2022, pouco depois do início da agressão, por insistência do Reino Unido”. E Vladimir Putin pediu severidade para as secretas estrangeiras, que tentam desestabilizar a Rússia para ajudar a Ucrânia. “Kiev, com o apoio direto de serviços especiais estrangeiros, seguiu o caminho dos métodos terroristas, praticamente do terrorismo de Estado. É preciso pôr um fim de maneira dura às tentativas dos serviços especiais estrangeiros de desestabilizar a situação política e social na Rússia”, disse no Dia dos Agentes de Segurança Pública.

***

A guerra vai continuar na Ucrânia, mas os EUA, especialistas em ajudar e em desistir, voltam-se para Taiwan, para fazerem, eventualmente, outra guerra. É de questionar como manterão os compromissos com a NATO e se descurarão a segurança no Ártico, região permeada pela Rússia e pelo Ocidente a norte, bem como se os valores defendidos pelo Ocidente (tão badalados) estarão à venda ou poderão ser suspensos por causa de interesses de egoísmo nacional por disputa de território. E a guerra na Ucrânia deixa de ser por procuração e a Rússia pode vencê-la.

2023.12.24 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário