sábado, 16 de dezembro de 2023

Mário Centeno: erros de perceção e independência

O Comité de Ética do Banco Central Europeu (BCE) concluiu que Mário Centeno, ao aceitar refletir sobre a possibilidade de ser primeiro-ministro (PM), na eventual sucessão de António Costa, cumpriu as exigências do Código de Conduta da autoridade da política monetária e não pôs em causa a sua independência. É uma informação que a presidente da autoridade monetária da Zona Euro, Christine Lagarde, que solicitara o parecer daquele organismo, transmitiu aos eurodeputados que tinham criticado o governador do Banco de Portugal (BdP).

Segundo o parecer do Comité de Ética, transmitido à presidente do BCE e por esta remetido aos eurodeputados em causa, “a independência de Centeno não pode ser posta em causa, pois não foi convidado formalmente a assumir a posição de primeiro-ministro, nem deu nenhuma indicação de que estava inclinado a aceitá-la”.

Aquando do seu pedido de demissão, a 7 de novembro, o PM propôs ao Presidente da República (PR) que, para evitar eleições antecipadas, Mário Centeno assegurasse a sua sucessão. O governador do BdP aceitou refletir, mas defende que nunca deu qualquer resposta, até porque o chefe de Estado decidiu dissolver a Assembleia da República (AR) e convocar eleições. Todavia, a oposição em Portugal criticou o que viu como falha na independência do governador de um banco central, e eurodeputados – como Nuno Melo e outros membros do Parlamento Europeu do Partido Popular Europeu (PPE), família política inclui o Partido do Centro Democrático Social (CDS) e o Partido Social Democrata (PSD) – questionaram diretamente a presidente do BCE.

A resposta foi publicada, a 15 de dezembro no site da autoridade sediada em Frankfurt. “O Comité de Ética conclui que Mário Centeno não agiu de forma que tenha comprometido a sua independência enquanto membro do Conselho do BCE, nem pôs em causa os interesses da União. Como tal, cumpriu com as exigências do Código de Conduta do BCE”, indica o organismo presidido por Erkki Liikanen, um ex-governador e ex-político finlandês.

Para este organismo, mesmo após a sugestão de António Costa, Mário Centeno “manteve a sua agenda” enquanto governador e permaneceu sob “total discrição” para proteger os interesses do BdP; e a “sua reflexão não ganhou maturidade suficiente que justificasse” o contacto com o BCE para dar conta de eventual saída do cargo. Os governadores em funções e nos dois anos a saírem de funções, têm de informar Frankfurt para saberem se há impedimento.

Não há menção à entrevista de Centeno ao Financial Times, em que disse ter o convite sido feito pelo PM e pelo PR, o que veio, depois, corrigir, porque o Presidente disse nunca o ter convidado. Centeno desculpou-se com o facto de o PR ter sido informado previamente do convite. Aliás, o BCE tem dado luz verde a casos de transição da banca central para a política.

O Comité de Ética do BCE posicionou-se com base em “profunda e abrangente troca de posições com o presidente da Comissão de Ética do Banco de Portugal”, Rui Vilar, que sustenta que o caso não levantava dúvidas quanto ao cumprimento das regras impostas ao governador, embora os “desenvolvimentos político-mediáticos” pudessem causar “danos à imagem” do BdP. Assim, Mário Centeno livra-se das dúvidas levantadas em Frankfurt sobre a sua independência.

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Já em meados de novembro, face às críticas dos partidos da oposição, que pediam a exoneração de Mário Ceteno, a Comissão de Ética do Banco de Portugal saiu em sua defesa e deixou um aviso a toda a instituição: a independência do governador nunca esteve em causa com a sugestão de António Costa para vir a ser PM, mas os efeitos da crise política e desse caso podem causar danos à imagem do BdP, pelo que recomendava que todos atuassem na defesa desta.

No parecer, datado de13 de novembro, a Comissão de Ética, presidida por Rui Vilar, lia-se que “o governador, no plano subjetivo, agiu com a reserva exigível naquelas concretas circunstâncias, cumprindo os seus deveres gerais de conduta”. Aliás, foi Centeno quem pediu àquela comissão que avaliasse a sua situação, já que podiam estar em causa potenciais conflitos de interesse e falhas no cumprimento do Código de Conduta, devido ao facto de ter sido convidado – sem declinar – por António Costa para poder ocupar o cargo de PM, para evitar eleições antecipadas.

O Código de Conduta contém regras sobre “independência” e “conflitos de interesse”, no caso do BdP e no do BCE, pelo que Centeno também por ele se rege por ser governador de um banco central do euro, como a autoridade monetária referiu a propósito do caso. Porém, a Comissão de Ética diz que, não havendo nada a retirar de negativo sobre a postura de Centeno no caso do convite, a verdade é que o BdP pode vir a sofrer com este caso.

“No plano objetivo, os desenvolvimentos político-mediáticos subsequentes podem trazer danos à imagem do banco”, segundo o parecer. “A defesa da instituição é ainda mais relevante num período como o atual, pelo que a Comissão sublinha a importância dos princípios que enformam os normativos em vigor e recomenda que o governador, a administração e o Banco no seu todo continuem empenhados na salvaguarda da imagem e reputação do Banco de Portugal”, conclui o parecer assinado por Rui Vilar, ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), Adelaide Cavaleiro, ex-diretora no BdP e Leão Martinho (ex-bastonário da Ordem dos Economistas).

O líder do BdP recusara-se a responder aos órgãos de comunicação social, mas disse ao Financial Times que fora convidado a pensar pelo PM e pelo PR, mas este veio, de imediato, esclarecer que nunca houve nenhum convite da sua parte, pelo que Centeno, alegando erro de tradução daquele jornal, veio emendar a mão: Foi António Costa que o sondou, após reflexão com o Presidente.

Os banqueiros não viam conflito de interesse ou falha na independência de Centeno. O presidente da CGD já tinha dito que o convite feito ao governador não afeta a sua independência, mas sublinhou que a sua eventual saída causaria instabilidade. E, com a Comissão de Ética do seu lado, Mário Centeno levou, de mediato, o parecer ao Conselho de Administração, o qual solicitou à Comissão de Ética a sua divulgação, o que aconteceu no início da manhã de 15 de novembro.

No comunicado que divulgou, “o Conselho de Administração considera que sempre estiveram reunidas as condições de independência do Banco de Portugal e dos seus órgãos para o exercício das suas competências”.

O posicionamento do supervisor português surge depois de o parecer ter sido entregue ao BCE, para que o seu Comité de Ética avaliasse o caso. Aliás, a posição do BdP foi divulgada quando decorria, em Frankfurt, um Conselho do BCE, onde Centeno encontra os governadores do euro.

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Do meu ponto de vista, este discurso sobre a independência é balofo. Seria mau, se o Estado interferisse na administração do BdP ou tentasse condicionar Centeno. De resto, um governador de banco central nem é independente, nem deixa de o ser. As decisões são colegiais e têm em conta circunstâncias políticas, sociais, financeiras e económicas. Estamos é perante um fenómeno de relação obnubilada entre atores políticos, o que alguns, pegando em palavras do próprio Mário Centeno, designam por mais um “erro de perceção mútuo” entre o PR, Mário Centeno e o PM.

O governador do BdP emitiu um comunicado a esclarecer que o convite foi para “refletir”, não “para chefiar” um governo de sucessão de António Costa.

A narrativa do que aconteceu não cessa de ter cada vez mais camadas e, desta vez, a camada é de erros de perceção mútuos institucionais, por confusão entre o PR e o governador do BdP, com o PM pelo meio. Desde 2017, os três protagonizam equívocos ou problemas de interpretação.

A primeira vez foi, em 2017, aquando das condições que foram dadas a António Domingues para a presidência da CGD. Afinal, o gestor podia ou não ficar isento da entrega das declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional (TC)? A situação causou polémica e acabou com o então ministro das Finanças Mário Centeno a assumir que poderia ter havido “erro de perceção mútuo” nas comunicações com o gestor. O ministro pôs o lugar à disposição e o PM manteve-o no governo. O mesmo fez o PR, mas deixando claro que o fazia tendo em conta a situação económica e financeira do país, quando havia grande preocupação com a banca.

Em comunicado, o PR aceitava que Centeno se mantivesse em funções “atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”. Ou seja, a confiança já não existia, mas o Presidente aceitava que Centeno continuasse nas Finanças, em plena saída do procedimento por défices excessivos e em reorganização da banca. Mais: o PR aceitava as explicações de Centeno sobre as alterações ao Estatuto do Gestor Público (EGP) e referia ter entendido o “eventual erro de perceção mútuo na transmissão das suas posições” também ao Presidente.

Em meu entender, essa narrativa do erro de perceção mútuo é inconsistente. O PR promulgara o Decreto-Lei n.º 39/2016, de 28 de julho (podia tê-lo vetado), que, alterando o Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 março (Estatuto do Gestor Público), estabelece: “O presente decreto-lei não se aplica a quem seja designado para órgão de administração de instituições de crédito integradas no setor empresarial do Estado e qualificadas como ‘entidades supervisionadas significativas’, na aceção do ponto 16) do artigo 2.º do Regulamento (UE) n.º 468/2014, do Banco Central Europeu, de 16 de abril de 2014.” Ou seja, o novo diploma retirava do EGP os gestores da CGD. Porém, a seguir, o PR veio a forçar a entrega das declarações dos administradores da CGD ao TC, invocando o EGP, de que os retirara, no que foi acompanhado por muitos “sábios”.

Não houve, pois, qualquer erro de perceção, mas “arrependimento” extemporâneo, que redundou num dos primeiros graves lances do maquiavelismo presidencialista ao arrepio da Constituição. Um ministro não responde diretamente perante o PR, a quem não se põe o problema da confiança política. Responde perante o PM e perante a AR. O nosso sistema não é presidencialista, nem semipresidencialista como o sistema francês, mas de forte pendor parlamentarista. 

Em 2020, as Finanças preparavam-se para fazer mais uma transferência de 850 milhões de euros para o Novo Banco (NB). Mário Centeno estava na AR a defender a decisão das Finanças, quando o PR decidiu tirar-lhe o tapete. Em visita à Autoeuropa, com António Costa ao lado, em silêncio, o PR corroborava a versão do chefe do governo, contra a de Centeno, de que essa transferência só podia ser feita depois de conhecidos os resultados da auditoria ao NB. A confusão no Governo era, assim, uma “falha de comunicação”. O PM limitou-se a um “não tenho nada a acrescentar” ao que disse o PR e Mário Centeno pediu uma reunião a António Costa, para dirimir o caso.

O PR deveria ter deixado que o assunto fosse resolvido no seio do governo. Porém, como vem sendo hábito, assume-se como mentor, porta-voz e crítico do executivo, o que não lhe compete.

A crise terminou com Centeno a declarar o seu fim, depois de Marcelo assumir o equívoco: “A crise foi ultrapassada”, dizia. Centeno continuava ministro, pois tinha tarefas a cumprir: acabar o mandar à frente do Eurogrupo e fazer o orçamento suplementar. Saiu um mês depois para o BdP.

Três anos depois, volta a haver um “erro de perceção mútuo”, um “equívoco” e uma “falha de comunicação” entre os três protagonistas. Sim, mas o erro está na perceção do estatuto do governador do BdP. Ele nunca pôs em causa a sua independência, o que podia ter posto em causa era a sua dependência do BCE, porque, a aceitar um cargo político stricto sensu, carecia de autorização. Ao mesmo tempo, colocaria em causa a imagem do BdP, que podia ser tido como porta giratória entre o sistema financeiro e o poder político. Também, neste aspeto, é a hipocrisia a reinar. A questão só se colocou com Centeno e não com outros, que foram ministros e governadores ou altos quadros do BdP.

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Com o que se perde tempo! E eu também o perco!

2023.12.15 – Louro de Carvalho


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