sábado, 9 de dezembro de 2023

A Solenidade da Imaculada Conceição ao mal sobrepõe a esperança

 

A liturgia da Solenidade pretende que nos testemos sobre a nossa vontade de resposta aos desafios de Deus, para o que nos coloca ante o exemplo de Maria de Nazaré, que soube e quis, de coração aberto e disponível, aceitar o plano de Deus a seu respeito e cooperar para que se realize o desígnio de Deus para todo o ser humano e para o Mundo.  

O plano de Deus a respeito do homem está como pano de fundo na primeira leitura (Gn 3,9-15.20): Deus criou-nos para a felicidade, o que o relato javista de Gn 2,4b-3,24, sobre a origem da vida, metaforicamente denominada Éden. Adão e Eva são nomes típicos a designar o ser humano (homem e mulher) que Deus criou inocente, sem pecado, fadado para a bem-aventurança. 

O texto, segundo a maioria dos comentadores, é do século X a.C., aparecido em Judá, no tempo do rei Salomão. Apresenta-se em estilo vivo e exuberante, parecendo obra de um catequista que ensina recorrendo a imagens sugestivas, com a finalidade de ensinar como apareceram o Mundo e o Homem. Assim, na origem da vida e do homem, está Deus; e, na origem do mal e do pecado, estão as opções erradas dos homens. Assim foi no princípio e assim é agora.

A reflexão catequética sobre as origens da vida e do mal que desfigura o Mundo, tratada ex professo no texto em apreço, está estruturada num esquema tripartido, com duas situações opostas e uma realidade central ao redor da qual giram a primeira e a terceira parte. Na primeira parte (Gn 2,4b-25), descreve-se a criação do paraíso e do homem: a criação é da autoria de Deus e é um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o criador e com as demais criaturas. Na segunda parte (Gn 3,1-7), surge o pecado do homem e da mulher, em resultado das opções erradas do homem, que introduziram, na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação, fatores de desequilíbrio e de morte. Na terceira parte (Gn 3,8-24), surgem o homem e a mulher confrontados com o resultado das suas opções e as consequências que daí advieram para o ser humano e para o resto da criação.

Na ótica do narrador javista, Deus criou o homem para a felicidade. Por isso, há que saber como conhecemos o egoísmo, a injustiça, a violência que transtornam o Mundo. A resposta está na História humana: o homem que Deus criou livre e feliz, através de opções erradas, introduziu dinamismos de sofrimento e de morte na criação boa de Deus.

O trecho em causa pertence à terceira parte do tríptico. Os intervenientes são: Deus, que “passeia no jardim à brisa do dia”; Adão e Eva, que se esconderam de Deus por entre o arvoredo do jardim.

Deus – inquiridor e juiz – investiga, descobre e estabelece os factos.

Começa por interrogar o homem: “Onde estás?” A resposta do homem é já reconhecimento da culpabilidade: “Ouvi o rumor dos teus passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me.” A vergonha e o medo significam perturbação e rutura com a anterior situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. O homem chegou aqui, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários aos que Deus lhe propusera. E Deus faz uma pergunta retórica: “Terás comido da árvore de qual te proibi de comer?” Era a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, que significa o orgulho, a autossuficiência, o prescindir de Deus, o querer decidir por si só o que é bem e o que é mal, o pôr-se no lugar de Deus, o reivindicar autonomia total em relação ao criador. É óbvio que o homem “comeu da árvore proibida” – isto é, escolheu um caminho de orgulho e de autossuficiência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo.

Ao defender-se, o homem acusa a mulher e Deus pela situação (“A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi”). Adão representa a Humanidade que, egoísta e autossuficiente, esqueceu o dom de Deus e vê em Deus um adversário; e a resposta de Adão mostra a Humanidade que, tendo quebrado a sua unidade, se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio.

Também a mulher alegou em sua defesa: “A serpente enganou-me e eu comi.” Entre os Cananeus, a serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e abandonavam Javé, para assegurar a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor javista escreve, a serpente era o “fruto proibido”, que seduzia os crentes e os levava a abandonar a Lei de Deus. A “serpente” é, então, um símbolo literário de tudo o que afastava os israelitas de Javé. A resposta da mulher confirma o que até agora estava sugerido: a Humanidade prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros caminhos. Achou que, no egoísmo e autossuficiência, podia encontrar a verdadeira vida à margem de Deus e até contra Deus. É o barranco em que o homem de hoje continua a precipitar-se!

Está claramente definida a culpa de uma Humanidade que pensou poder ser feliz, totalmente à margem dos caminhos de Deus.

Só restava condenar os falsos e enganosos cultos e as tentações que seduziam os israelitas e os punham fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos. O catequista sabe que a serpente é um animal miserável, que passa toda a vida a morder o pó da terra. Por isso, condena plasticamente, de forma radical, tudo o que leva os homens a afastarem-se dos caminhos de Deus.

Provavelmente, o autor javista explica etiologicamente (etiologia é a tentativa de explicar a razão de realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação atual) a inimizade e a luta entre a descendência da mulher e a descendência da serpente. Na realidade, a serpente inspira horror aos humanos e todos procuram “esmagar-lhe a cabeça”. Contudo, a tradição judaica e cristã viu nestas palavras uma profecia messiânica: Deus anuncia que um “filho da mulher” (o Messias) acabará com as consequências do pecado e inserirá a Humanidade numa dinâmica de graça. E esta é a rampa da nossa esperança: o mal será vencido!

O hagiógrafo não está a falar de pecado cometido nos primórdios da Humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher (nem quer dizer que tudo tenha começado por um só homem e uma só mulher), mas do pecado cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares. Apenas ensina que a raiz de todos os males está no facto de o homem prescindir de Deus e construir o Mundo a partir de critérios de egoísmo e de autossuficiência.

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A segunda leitura (Ef 1,3-6.11-12) garante-nos que Deus tem um desígnio de vida plena e  verdadeira para cada homem e para cada mulher – um projeto que desde sempre esteve na mente de Deus e que é, agora apresentado aos homens através de Jesus Cristo, exigindo de cada um de nós uma resposta decidida, total e sem subterfúgios.

Éfeso, cidade capital da Província romana da Ásia, estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. O seu porto e a sua numerosa população faziam dela uma cidade florescente. Paulo passou ali na segunda viagem missionária e, durante a terceira viagem missionária, fez de Éfeso o quartel-general, donde evangelizou toda a zona ocidental da Ásia Menor.

A Carta aos Efésios será um dos exemplares de uma carta circular enviada a várias igrejas da Ásia Menor, quando Paulo está na prisão (em Roma?), configurando uma síntese da teologia paulina, quando a missão do apóstolo está quase terminada no Oriente. O tema nuclear é “o mistério”, ou seja, o plano salvador de Deus, definido e elaborado desde sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado presente no Mundo pela Igreja. O trecho em causa é do início da carta. É parte de um hino litúrgico terá circulado nas comunidades antes de ser recolhido por Paulo. Este hino dá graças pela ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo, no sentido de oferecer aos homens a salvação.

A ação de graças dirige-se a Deus, pois Ele é a fonte última de todas as graças concedidas aos homens e que atingiram os homens através do Filho, Jesus Cristo.

Movido pelo seu imenso amor, o Pai elegeu-nos desde sempre (“antes da criação do mundo”), para “sermos santos e irrepreensíveis”. O termo “santo” indica a situação de alguém que foi separado do Mundo e consagrado a Deus, para o serviço de Deus; o termo “irrepreensível” usava-se para falar das vítimas oferecidas em sacrifício a Deus, que deviam ser imaculadas e sem defeito. Significa, pois, uma santidade (consagração a Deus) verdadeira e radical.

Além de nos eleger, o Pai predestinou-nos “para sermos seus filhos adotivos”. Através de Cristo, o Pai ofereceu-nos a sua vida e integrou-nos na sua família como filhos. Por isso, a finalidade desta ação de Deus é o louvor da sua glória. A eleição e a adoção como filhos resultam do imenso amor de Deus pelos homens – amor gratuito, incondicional e radical.

Quanto ao papel do Filho neste processo, o autor do hino refere-se ao sangue derramado de Cristo e ao seu significado redentor. A morte de Jesus na cruz é o sinal inequívoco do grande amor de Deus pelos homens, pelo qual Deus nos ensinou a viver no amor, no amor total e radical. Através de Cristo, Deus derramou sobre nós a sua graça, tornando-nos pessoas novas, capazes de viver no amor. Assim, Deus manifestou-nos o seu plano de salvação (“o mistério”), que é levar-nos à identificação plena com Jesus (na sua ilimitada capacidade de amar e de dar a vida), à unidade e harmonia totais com Jesus. Identificando-nos com Cristo e ensinando-nos a viver no amor total e radical, Deus reconciliou-nos consigo, com os outros e com a Natureza. Voltamos, de forma nova e reforçada, à feliz inocência do Éden. Nasceu, pois, da ação redentora de Cristo um Homem Novo, capaz de novo tipo de relacionamento com Deus, com os outros homens e mulheres e com toda a criação. É a nova criação!

Com efeito, em Cristo fomos constituídos filhos de Deus e herdeiros da salvação, conforme o plano da obra de Deus concebido e preparado desde toda a eternidade em nosso favor.

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O Evangelho (Lc 1,26-38) apresenta a resposta de Maria ao plano de Deus. Ao contrário de Adão e Eva, Maria rejeitou o orgulho, o egoísmo e a autossuficiência e preferiu conformar a sua vida, de modo radical, com o plano de Deus. Do seu “sim”, resultou salvação para Ela e para o Mundo.

O texto ora proclamado pertence ao “Evangelho da Infância” na versão lucana. Os textos do “Evangelho da Infância” pertencem ao género literário especial, chamado homologese, que não pretende um relato cronológico de acontecimentos, mas a catequese destinada a proclamar certas realidades salvíficas: Jesus é o Messias, vem de Deus, e é o “Deus connosco”. Em forma de narrativa, recorre às técnicas do midrash haggádico (técnica de leitura e de interpretação do texto sagrado usada pelos rabbis), utilizando e misturando tipologias (factos e pessoas do Antigo Testamento, encontram correspondência em factos e pessoas do Novo Testamento) e aparições apocalípticas (anjos, aparições, sonhos) para fazer avançar a narração e explicitar a catequese sobre Jesus. O trecho evangélico em referência deve ser entendido a esta luz: não interessa, pois, a busca de factos históricos stricto sensu, mas perceber o que a catequese cristã primitiva nos ensina, através destas narrações.

A cena situa-nos em Nazaré, aldeia da Galileia. A Galileia, região a norte da Palestina, à volta do Lago de Tiberíades, era tida pelos judeus como terra longínqua e estranha, em contacto com as populações pagãs e onde se praticava uma religião heterodoxa, influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs. Por isso, “da Galileia não pode vir nada de bom”. Quanto a Nazaré, era aldeia pobre, nunca nomeada na História religiosa judaica e, portanto, completamente à margem dos caminhos de Deus e da salvação.

Maria, donzela de Nazaré no centro deste episódio, era “uma virgem desposada com um homem chamado José”. O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas: os esponsais, em que os noivos se prometiam um ao outro; e o casamento, o compromisso definitivo. Entre as duas etapas, passava um tempo mais ou menos longo, em que qualquer uma das partes podia voltar atrás, embora com penalização. Os noivos não coabitavam, mas já era estável o compromisso, de tal modo que, se surgia um filho, era considerado filho legítimo de ambos. A Lei considerava a infidelidade da prometida ofensa semelhante à infidelidade da esposa. E a união entre os dois só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio. José e Maria estavam, pois, na situação de prometidos.

Após apresentação do ambiente, vem o diálogo entre Maria e o anjo. Começa com a saudação do anjo, em cuja boca são colocados termos e expressões de ressonância veterotestamentária, ligados a contextos de eleição, de vocação e de missão. Assim, o termo “ave” (em grego, “kaîre”) é mais do que uma saudação: é o eco dos anúncios de salvação à filha de Sião – figura delicada que personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza se apresenta e representa a salvação oferecida por Deus e que Israel deve testemunhar diante dos outros povos. A expressão “cheia de graça” significa que Maria é objeto da predileção e do amor de Deus. A expressão “o Senhor contigo” aparece, com frequência, ligada aos relatos de vocação no Antigo Testamento e serve para assegurar ao “chamado” a assistência de Deus na missão pedida. Este é, pois, o “relato de vocação” de Maria: o anjo apresenta à jovem de Nazaré a proposta de Deus, que postula uma resposta clara de Maria.

À donzela Deus propõe que aceite ser a mãe de um filho especial, que Se chamará Jesus” (o nome significa “Deus salva”). Jesus é o “Filho do Altíssimo”, que herdará “o trono de seu pai David” e cujo reinado “não terá fim”. Este filho é caraterizado nos termos em que a teologia de Israel caraterizava o “messias” libertador. Assim, Maria é será a mãe do “messias” que Israel esperava, o libertador enviado por Deus ao seu Povo, para lhe oferecer a vida e a salvação.

A resposta começa com uma objeção, tal como nos relatos de vocação do Antigo Testamento. É a reação de um chamado, assustado com a perspetiva do compromisso com algo que o ultrapassa, e um modo de mostrar a grandeza e o poder de Deus que, apesar da fragilidade e das limitações dos chamados, faz deles instrumentos da sua salvação no meio dos Homens.

Ante a objeção, o anjo garante que o Espírito Santo virá sobre Maria e a cobrirá com a sua sombra. É o mesmo Espírito que foi derramado sobre os juízes, sobre os reis, sobre os profetas e sobre os anciãos de Israel, para que pudessem ser presença eficaz da salvação de Deus no meio do Mundo. A sombra ou nuvem leva-nos à “coluna de nuvem” que acompanhava o Povo de Deus em marcha pelo deserto, indicando o caminho para a Terra Prometida. Assim, apesar da fragilidade de Maria, Deus, através dela, far-se-á presente no Mundo para oferecer a salvação a todos os homens.

O relato termina com a resposta final de Maria: “Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. Isto significa, mais do que humildade, reconhecer que se é eleito de Deus e que se aceita a eleição, com tudo o que ela implica. No Antigo Testamento, ser servo do Senhor é título de glória, reservado aos que Deus escolheu, reservou para o seu serviço e que enviou ao Mundo com uma missão. Deste modo, Maria reconhece que Deus A escolheu, aceita essa escolha e manifesta a disposição de cumprir, com fidelidade, o plano de Deus.

Esta deve ser a disponibilidade da Igreja e de cada crente: como Maria, aceitar a missão de dar Jesus ao Mundo e o Mundo a Jesus. Assim, faz sentido ser devoto de Maria!

2023.12.08 – Louro de Carvalho

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