quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Retórica da esquerda contra a extrema-direita dá força ao radicalismo

 

Samuel Moyn, professor de Direito e de História na Universidade de Yale, sustenta que a retórica que a esquerda tem adotado contra a extrema-direita só prejudica a esquerda, dando força ao radicalismo. E, desafiando as narrativas convencionais sobre neoliberalismo, afirma que “o sistema político está a virar à direita, desde que os partidos socialistas se tornaram neoliberais”.

Tornou-se conhecido, ao escrever, em 2017, um artigo no “The New York Times”, advogando que “Trump não é uma ameaça à nossa democracia”, mas “a histeria”. Recentemente, publicou “Liberalism Against Itself: Cold War Intellectuals and the Making of Our Times” [Liberalismo contra si mesmo: Intelectuais da Guerra Fria e a Construção dos Nossos Tempos], a explicar como o liberalismo dos Estados Unidos da América (EUA) se construiu sobre o medo irracional do comunismo. Condenando a União Soviética como equivalente à Alemanha nazi e tentando escapar ao socialismo clássico, os liberais preparam terreno para ascensão da direita.

O professor, que reúne um clube de admiradores de esquerda e que, há anos, estuda direito humanitário, em entrevista ao Expresso, publicada online, explica a ascensão da direita radical e adianta possibilidades para a geopolítica, nos próximos anos. Vejamos os dados mais prementes.

Sobre a génese do neoliberalismo, em particular, nos EUA, aponta a sensação de que ali há “um sistema super-rico, quando “muitas pessoas receberam uma proporção muito menor do bolo nacional” e “houve estagnação salarial durante a maior parte dos últimos 50 anos”. Situa a erupção do neoliberalismo na eleição de Ronald Reagan, que falhou aos eleitores, os quais o acharam em Donald Trump, que pressionou “por mais políticas neoliberais e defendeu as décadas de aplicação dessas regras”.

Tudo começou nos anos 70, mas a origem do neoliberalismo tem raízes intelectuais nas décadas de 30 e 40. O primeiro país onde é institucionalizado é o Chile, depois de 1973, seguindo-se o mundo anglófono, com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, nos anos 80. Porém, segundo alguns, os socialistas anteriores a 1989 desempenharam papel importante na sua invenção.

Algumas crises, como a da habitação e a dos serviços públicos, têm raízes naquelas décadas. Afirmava-se a “propriedade estatal da indústria” e o “compromisso do Estado de prestar serviços diretos”. Porém, “os Estados começaram a deixar de o fazer, a reduzir e a terceirizar”. A onda afeta todos os países, mas só começa na Europa de Leste após 1989. Na China e na China, é igual. Cerca de 1989, surge o ponto de rutura, com a política neoliberal a institucionalizar-se.

As posições neoliberais sociais-democratas foram adotadas por liberais e progressistas nos anos 80 e, sobretudo, na década de 1990, de Bill Clinton a Tony Blair. Sob a designação de Terceira Via, a esquerda fez políticas que promovem a reação da extrema-direita e a da esquerda mais radical, que reage menos. Nos EUA e no Reino Unido, são os partidos de esquerda (não muito à esquerda e até não são socialistas) que favorecem os ricos e as pessoas das cidades, em vez das classes trabalhadoras. Por isso, o eleitorado do Partido Democrata vive nas cidades e na costa, quando era, no passado, constituído por “eleitores rurais e do centro do país, onde grande parte da indústria pesada está ou esteve”.

Assim, o Partido Democrata torna-se partido de tendência esquerdista que une ricos e pobres, nas cidades, e abandona a classe média, sobretudo a classe média branca do interior. Muitos dos que votavam nos democratas “nunca mais o fizeram, depois dos anos 90”.

O mesmo se aplica ao Reino Unido, em relação às antigas Midlands Ocidentais. Por exemplo, em Manchester, que era reduto do trabalho, onde vivia o proletariado industrial, as pessoas perderam, quando Blair converteu o Partido Trabalhista à Terceira Via, uma força neoliberal que atraiu banqueiros e a “cidadania multicultural, especialmente em torno de Londres”.

O entrevistado não tem a certeza de que a forte polarização atual, entre esquerda e direita, tenha origem nas redes sociais. Todavia, “depende do lugar onde estamos”. Por exemplo, os EUA “têm um certo sistema político” em que “os partidos estão polarizados” e “discordam cada vez mais”, ao invés do que sucedia antes. Durante muitas décadas, os dois partidos foram neoliberais. Ora, “o distanciamento não é necessariamente coisa má”, pois há “a possibilidade de realinhamento, ou seja, de um dos partidos romper com o neoliberalismo que partilhavam”.

Uma grande maioria dos americanos apoia coisas como o direito ao aborto ou salários mínimos mais elevados, mas não consegue o que quer, “porque o sistema político não é maioritário”. As redes sociais desempenharam um papel, entre os novos meios de comunicação, na mudança do discurso político, mas “a realidade é mais profunda”. Os partidos são vistos cada vez mais como falhados perante o povo. E o povo tem “queixa legítima contra as elites que governam”. Não há maior polarização entre os americanos ou, pelo menos, não é a caraterística que impera. Porém, admite que isso aconteça noutros países.

Em relação à Europa, Samuel Moyn considera que “a extrema-direita está a regressar, há décadas, desde a descoberta de [Jean-Marie] Le Pen, ainda na década de 80”, e concorda que, “nos últimos cinco anos, vemos mais e mais avanços da extrema-direita, como os que têm ocorrido na Hungria”, mas contesta que seja “uma história de polarização”. E explica: “Nas décadas de 60 e 70, ainda havia partidos socialistas, que normalmente lutavam contra os democratas-cristãos. O que aconteceu foi que os partidos socialistas entraram em colapso. Em certo sentido, os democratas-cristãos tornaram-se a esquerda, e a extrema-direita tomou o lugar do centro-direita.”

Então, isto não é “história de polarização”, mas de “reação da direita contra o sistema político”, ou seja, houve reação de direita ao neoliberalismo, em vez de reação de esquerda.

Nalguns países existe, de facto, esquerda. Assim, a Grécia foi um exemplo contra a austeridade, verifica. Todavia, o entrevistado pensa que o populismo não será “a melhor forma de pensar sobre isto”. Há nova visibilidade dos partidos de direita, de extrema-direita, talvez porque o centro liga “os extremos populistas”. Porém, o investigador de Yale considera que “a ideia de populismo não é muito interessante, porque não sabemos o que a palavra significa”. Admite que “os extremos são mais populares do que antes”, o que revela que “o centro é menos popular do que era”. E conclui que “todo o sistema político está a mudar para a direita, com o colapso da alternativa socialista”, isto é, desde que os partidos socialistas “se tornaram neoliberais”. Houve uma reação de direita ao neoliberalismo, em vez de uma reação de esquerda.

À questão “como podem os políticos combater a popularidade de pessoas como Trump”, o investigador responde que “talvez o neoliberalismo assuste o centro, porque o obriga a enfrentar o verdadeiro neoliberalismo”. Vota-se em quem perspetive a mudança para uma vida melhor. Por isso, na ótica de Samuel Moyn, “a única esperança é uma alternativa de esquerda”.

Questionado se “os eleitores não se definem como os analistas e os media os definem”, sustenta que “a maioria dos analistas tem tratado os eleitores como irracionais”, ao passo que estes “têm sido bastante racionais ao reagirem à transformação do seu sistema político e ao neoliberalismo”.

O investigador não defende “a recuperação da indústria”, o que Donald Trump prometeu, primeiro, e Joe Biden, seguir. Porém, entende que estes populistas “estão a responder às queixas legítimas dos eleitores, e o centro não”.

Face às duas guerras em curso, admite que o mundo multipolar, como Vladimir Putin o imaginou, pode vir a ser uma realidade, pois a tendência é essa e já não há “a unipolaridade de 1989”. Os EUA são um país muito poderoso, mas, militarmente, “não são o mesmo que antes”. Questiona-se a centralidade do dólar como moeda global, estando o país enormemente endividado. Contudo, o multipolarismo não é algo que surja de repente. “É uma transformação lenta.”

Quanto ao que espera para os próximos anos, o investigador adverte que há “oportunidades e riscos”. Antevê muitas oportunidades, porque houve muitos problemas num mundo liderado pelos EUA, “muitas guerras desnecessárias e o neoliberalismo promovido pelas elites globais”. “Terá sido esse o processo que levou as pessoas a votarem Trump”, admite, defendendo que a perspetiva de um Mundo multipolar pode ser melhor. E exemplifica: “antigamente, teria sido difícil resistir à proteção de Israel pelos EUA”, mas, hoje, muitos países “apresentam resistência à guerra de Israel”, por causa da crise mundial e das críticas do hemisfério Sul e porque os americanos “estão numa situação muito diferente, tendo visto tantas guerras sem boas razões”.  

Não crê que a China, o concorrente mais próximo dos EUA, tenha um plano global, nem que se considere “relevante para a Humanidade da mesma forma que a União Soviética se considerava”. Da Rússia, diz que “é uma potência forte com armas nucleares”, mas a guerra na Ucrânia mostrou que mal consegue capturar um pouco de território de um país próximo que integrava a União Soviética. Por isso, “não será ameaça significativa para ninguém”. E é insana a pressa dos Estados bálticos e dos escandinavos, dantes neutros, em procurar proteção contra a Rússia, pois “a Rússia não age contra eles” e “todo o poder da Rússia depende da venda do seu petróleo às mesmas pessoas que estão zangadas com Moscovo: os europeus”. Ao invés, julga “mais interessante o Brasil e a Índia”, que “serão forças significativas de uma forma que até aqui não foram”.

Pensa que a resposta a Trump “foi dizer que era a pior coisa que já aconteceu”, em vez de enfrentarem os próprios problemas, que foram as décadas de militarismo e de neoliberalismo. Espera que ele não ganhe as eleições nos EUA, mas, até que os democratas se olhem ao espelho, terão Trump a assombrá-los, ou alguém como ele. É preciso resolver os problemas que levam ao surgimento de pessoas como Trump.

Supõe que Trump não levaria à alteração do cenário geopolítico. Com efeito, o anterior presidente dos EUA “era muito fraco no cargo, porque o sistema político o continha”. Poderia acabar com a guerra na Ucrânia, deixando Putin ficar com parte do território, mas isso terá de acontecer, “exceto se se quiser manter uma guerra congelada no leste da Ucrânia”. Poderia ser ainda mais permissivo com Israel, mas Biden já foi tão permissivo talvez não houvesse diferença. Contudo, “Trump seria mais hostil aos multilateralismos e a entidades como a NATO”, o que preocupa algumas pessoas. Se for eleito, pode levar a “crítica ao neoliberalismo mais a sério do que da última vez e influenciar o comércio mundial, numa direção menos neoliberal”, mas isso é duvidoso, porque “as suas próprias políticas eram neoliberais”.

Quanto à forma como o jornalismo deveria lidar com a questão da extrema-direita, é de opinião que aí “há polarização”, visto que “a comunicação social não está disposta a mostrar ao centro que foi ele que deu origem à extrema-direita” e porque “grande parte dos media, especialmente dos novos media, serve a extrema-direita” – “situação sobre a qual os cidadãos comuns não têm informação suficiente”, pois cada força tem o seu “ecossistema mediático”.

E, sobre a crença de muitas pessoas acreditarem que os partidos de extrema-direita resolverão o problema da corrupção, mas muitos dos seus líderes serem responsáveis por mentiras e por desinformação, discorre: “A democracia foi tentada por pessoas que compreenderam que haveria um processo de aprendizagem. Porque sabemos que um ecossistema democrático é, até certo ponto, irracional. Não estou a dizer para nos livrarmos dele ou para o contornarmos, porque não creio que as elites façam bom trabalho sob pressão, mantendo-se honestas. Mas isto significa que há sempre espaço para a retórica, em detrimento da razão, e para brincar com a irracionalidade das pessoas comuns para criar inimigos, os chamados bodes expiatórios.”

***

Salvo as reservas à desvalorização da hegemonia da União soviética e da periculosidade da Rússia e da China, bem como à defesa do sistema maioritário, o pensamento de Samuel Moyn pode ser boa lição para a esquerda e para o centro em Portugal, face ao avanço dos populismos.

2023.12.27 – Louro de Carvalho

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