sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Concurso do TGV pode avançar, mesmo com governo em gestão

O governo liderado por António Costa, que está ainda em plenitude de funções, logo que seja publicado o decreto presidencial de dissolução da Assembleia da República (AR) e formalizada a aceitação do pedido de demissão do primeiro-ministro (PM), entrará na modalidade de governo de gestão, nos termos do n.º 5 do artigo 186.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece: “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos.”

Não obstante, o governo parece apostado em não abandonar projetos estratégicos plurianuais, sobretudo os que envolvam acesso a fundos comunitários. É o caso do lançamento do concurso para o primeiro troço da nova linha de alta velocidade Lisboa-Porto, que obedece a prazos específicos – deve ser lançado em janeiro de 2024 – para se candidatar a fundos europeus.

Nestes termos, o PM sinalizou ao líder do Partido Social Democrata (PSD) que o projeto do TGV (train à grande vitesse – comboio de alta velocidade) é assunto a tratar em breve, esperando apenas que a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos (UTAP) conclua o trabalho técnico sobre a viabilidade jurídica e financeira do projeto. O novo líder do Partido Socialista (PS) que sair das eleições internas de 15 de dezembro também será chamado à conversação.

Se Luís Montenegro e o novo líder do PS concordarem, o concurso avançará em janeiro, como previsto, com a vantagem de, cumprindo o prazo, o projeto ganhar maturidade e, assim, fortalecer a candidatura aos fundos europeus (ao abrigo do Connecting Europe Facility). Se não houver acordo, o trabalho técnico fica feito “para o novo governo dar seguimento”. Neste caso, ficam desvalorizados os riscos políticos de o governo de gestão aprovar projetos de dimensão estrutural e de enorme impacto financeiro (como fez o governo-relâmpago de Passos Coelho com a privatização da TAP) e, segundo alguns, haverá pressão para um entendimento de modo que Portugal não perca o acesso ao dinheiro europeu. Porém, do meu ponto de vista, desde que os prazos estabelecidos não sejam cumpridos, a pressão de pouco valerá.

Em 2022, o principal motivo para o projeto não ter sido considerado elegível foi a falta de maturidade, obstáculo que será ultrapassado com o lançamento do concurso em janeiro. Ao mesmo tempo, é de notar que este tipo de processos, ao invés da privatização da TAP, em 2015, não implica novos compromissos, antes se limita a dar seguimento à execução de projetos que têm financiamento garantido e a dar continuidade ao calendário do Plano de recuperação e Resiliência (PRR) que tem marcos e metas exigentes. A autorização de investimento para a linha Violeta do metro de Lisboa que o governo aprovou em Conselho de Ministros, nas últimas semanas, é exemplo disso, pois faz parte do calendário apertado do PRR.

Diferente é a decisão sobre a privatização da TAP ou sobre a nova localização do aeroporto, que ficam para o novo governo. João Galamba, na véspera de apresentar o pedido de demissão do cargo de ministro das Infraestruturas, foi à audição na AR defender ante os deputados que não lançar o concurso para a construção do troço do TGV Lisboa-Oiã (em Aveiro) significaria perder 750 milhões de euros em fundos, que Portugal “não iria recuperar”. Com a saída do ministro, quem ficou com a pasta foi o PM, que passou a tutelar diretamente o secretário de Estado-adjunto e das Infraestruturas, Frederico Francisco.

Aliás, o governo está em manter a normalidade, nas últimas semanas, e tem aprovado várias medidas. A 29 de novembro, o comunicado do Conselho de Ministros tinha uns extensos 26 pontos, e nas últimas semanas, só no âmbito da Administração Pública, foram assinados vários acordos com impactos orçamentais plurianuais, incluindo a cedência do governo aos sindicatos no sentido de antecipar para 2024 a entrada em vigor da nova carreira de técnico superior.

Foi também o caso do acordo a que Manuel Pizarro chegou, a 28 de novembro, com o Sindicato Independente dos Médicos (SIM), ao fim de 19 meses de negociações, com a previsão de um aumento de 14,6%, já em janeiro, para os assistentes hospitalares, num modelo extensivo às carreiras médicas. Também a 27 de novembro, foi assinado o acordo sobre a revisão do sistema de avaliação na função pública (SIADAP) entre o governo, a Federação de Sindicatos da Administração Pública (FESAP) e o Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (SQTE), com vista a maior progressão nas carreiras. Foi também aprovado o diploma que prevê aumentos salariais de até 280 euros para os polícias municipais, a partir de janeiro, no âmbito do acordo plurianual de valorização dos trabalhadores da Administração Pública recentemente assinado.

Todavia, estas medidas e outras das tomadas recentemente inserem-se no quadro de um governo em plenitude de funções, ainda que em fim de ciclo.

***

Porém, com o Orçamento do Estado aprovado, é natural que o governo espere que, promulgada e publicada a lei do orçamento, a qualquer momento, o Presidente da Republica (PR) assine o/s decreto/s de dissolução da AR e de aceitação do pedido de demissão do PM (não exoneração), após cuja publicação o governo ficará formalmente em “gestão”.

É de lembrar que nos termos do n.º 4 do artigo 186.º da CRP, “em caso de demissão do governo, o primeiro-ministro do governo cessante é exonerado na data da nomeação e posse do novo primeiro-ministro”. A regra geral é que um governo entre a convocação de eleições e a sua substituição pelo novo governo se deve limitar a atos de gestão corrente. Não pode, aliás, legislar e todos os decretos e propostas de lei que tenha feito e não tenham sido promulgados até à aceitação do pedido de demissão caducam com a publicação do decreto presidencial. Há, todavia, uma série de atos administrativos que cabem no domínio da interpretação mais lata.

Como sustentava Freitas do Amaral, em 2011, com o governo demissionário à beira de pedir ajuda externa, “a Constituição diz que um governo de gestão pode fazer tudo o que for necessário ao país”. Freitas, professor de Direito Administrativo, fundador do partido do Centro Democrático Social (CDS) e membro de vários governos (incluindo ministro dos Negócios Estrangeiros do PS), é ainda a referência citada, quando se instala a discussão sobre o que pode fazer um governo de gestão. Em 1985 escreveu um pequeno livro, reeditado em 2002 e hoje esgotado, intitulado precisamente “Governos de Gestão”.

Por isso, o entendimento em São Bento sobre o que pode fazer um governo de gestão é lato – “pode fazer tudo o que sejam considerados atos inadiáveis” –, onde se incluem os investimentos já previstos ou que estão dependentes da atribuição de fundos comunitários. A ideia é manter a normalidade governativa, como o PM tem feito nas últimas semanas em que esteve em plenas funções, desdobrando-se em inaugurações de projetos relacionados com o PRR. Aliás, prevê-se que, na primeira semana inteira de dezembro, o governo esteja em peso numa última edição do “Governo Mais Próximo”, no Porto.

Por isso, a Confederação Empresarial de Portugal (CIP) apela ao governo, ao PR e aos partidos a que façam leitura abrangente dos poderes, de forma a possibilitar atos como a concretização dos avisos previstos para os planos de fundos europeus, as atualizações de preços regulados e as liquidações de compromissos do Estado, já que o país não pode parar cinco meses.

Porque os empresários receiam a paralisação do Estado (e a de serviços e de setores da economia) no período eleitoral, que pode ir até abril, apresentam cinco pontos fundamentais para o país não ficar “absolutamente perdido”, a partir de quando o governo entrar em gestão. Por isso, a CIP enviou carta ao PR e aos partidos a pedir o compromisso entre todos para que o país não pare. “Num país onde o Estado tem uma interação tão forte na economia, quando um agente económico com a importância do Estado está entre governos ele pode parar, há risco de parar. Esta carta é um apelo à exigência, ao sentido de Estado dos partidos para que não tenhamos um país absolutamente perdido durante cinco meses”, disse ao Expresso o presidente da CIP.

Embora critique o Orçamento do Estado, a CIP pensa que é importante garantir a sua execução, enquanto não houver outro. Mas, alertando que isso não basta, sinaliza “a urgência e a necessidade de um grande consenso nacional” sobre cinco pontos, que é preciso garantir: a continuidade dos avisos do PRR e do PT2030 já lançados; a concretização do plano de avisos já anunciados para o PRR e PT2030; a atualização dos preços regulados com referência à taxa de inflação esperada; a aplicação do regime excecional e temporário do aumento de preços com impacto em contratos públicos (ver Decreto-Lei n.º 49-A/2023, de 30 de junho); e a injeção de capital e/ou decisões ministeriais para liquidação dos compromissos do Estado, nomeadamente pagamentos contratualizados e dívidas vencidas.

Armindo Monteiro pede que o país político não se enrede na discussão sobre o que o governo em gestão pode fazer. “O país já está a ser disputado em termos eleitorais, pelo que é natural que existam partidos que já não queiram ação do governo, porque entendem que pode ser vantajosa sob o ponto de vista eleitoral. Nós, empresários, não estamos nesse jogo de disputa eleitoral. Não nos preocupa nada quem é que tem vantagem ou desvantagem em que o país não fique parado. Nós temos vantagem em que o país não fique parado. O nosso apelo é que não aproveitem o facto de o país poder continuar a funcionar, ainda que numa velocidade menor, para entrar em campanha eleitoral a todos os níveis porque isso faz com que o país pare”, argumenta.

Na carta, a CIP lembra que “Portugal está num período especialmente sensível”, pois o PRR é oportunidade extraordinária que prevê um financiamento irrepetível para investimentos (públicos e privados) e para reformas, nomeadamente da administração pública, que melhore a relação com os cidadãos e com as empresas e a defesa eficiente do interesse público. Assim, apela aos órgãos de soberania a que, em contexto incerto e difícil, diminuam os riscos, atuando decisivamente para que se concretizem, “de forma estável e adequada”, o Orçamento de Estado e a execução dos fundos estruturais, nomeadamente o PRR, cuja execução é marcada por atrasos e dificuldades, e os investimentos infraestruturais, de que Portugal precisa.

***

Aliás, já há um precedente de decisão grave tomada em governo de gestão. Em 2011, as eleições legislativas foram antecipadas para 5 de junho, por decisão de Cavaco Silva, de 31 de março, após o governo do PS, sem maioria absoluta, ver rejeitado o PEC IV chumbado (pacote de medidas de austeridade para controlar a crise financeira do país), pois toda a oposição votou contra, o que levou José Sócrates a pedir a demissão. Contudo, a convocação de eleições antecipadas não impediu que o governo demissionário assinasse, a 6 de abril, o pedido de resgate ao Fundo Monetário Internacional (FMI), à União Europeia (UE) e ao Banco Central Europeu (BCE), no valor de 78 mil milhões de euros.

Ao governo do PS, juntaram-se o PSD e o CDS na assinatura do pedido do resgate. Quem acionou, formalmente, por carta, o pedido foi, como teria de ser, o governo em funções, do PS. Porém, a 31 de março, rejeitando Sócrates ainda o pedido de empréstimo, Passos Coelho assinou uma carta oficial do PSD, que escreveu com Miguel Macedo e que foi entregue pelos serviços de protocolo aos destinatários PR e PM, defendendo o pedido de resgate. A 1 de abril, os mesmos destinatários receberam outra carta, de teor idêntico, subscrita pelo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. No dia 2, Paulo Portas, líder do CDS, declarou à Lusa o apoio à ideia: “Não faço parte dos que diabolizam o FMI.”

O V Governo Constitucional foi um governo de gestão, encarregado de preparar eleições, mas teve um programa que passou na AR, antes da dissolução, e produziu inúmeros decretos-lei.

Quando os poderes se entendem, muitas coisas são possíveis!

***

Ora, se o líder da oposição não bloquear as decisões administrativas de vulto, o governo de gestão pode fazer tudo o que for de interesse para o Estado, inclusive o TGV e o PRR.

2023.12.01 – Louro de Carvalho

 


Sem comentários:

Enviar um comentário