domingo, 17 de dezembro de 2023

Israel está a perder apoios na guerra com o Hamas

 

A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, a 12 de dezembro, com o apoio esmagador de 153 países, uma resolução não vinculativa que exige um cessar-fogo humanitário imediato em Gaza, depois de o Conselho de Segurança ter falhado em aprovar a mesma exigência, com o veto dos Estados Unidos da América (EUA). O resultado excedeu o apoio à condenação da invasão russa da Ucrânia que, na melhor das votações na Assembleia Geral, obteve 143 votos, resultado que os EUA consideraram, na ocasião, uma prova do isolamento da Rússia.

O projeto de resolução sobre Gaza, apresentado pelo Egito e copatrocinado por cerca de 80 Estados-membros da ONU, incluindo Portugal, obteve 153 votos a favor, 10 contra e 23 abstenções, no quadro dos 193 Estados-membros. Votaram contra o texto países como Israel, os EUA ou a Áustria; e, entre os países que se abstiveram, estão a Ucrânia, a Itália, o Reino Unido, a Argentina, a Alemanha ou Cabo Verde.

A resolução responde a uma exigência sem precedentes do secretário-geral da ONU, António Guterres, que teme um “colapso total da ordem pública” no território palestiniano.

O texto aprovado manifesta preocupação com a “situação humanitária catastrófica na Faixa de Gaza”, “exige um cessar-fogo humanitário imediato” e apela à proteção dos civis, ao acesso humanitário e à libertação “imediata e incondicional” de todos os reféns.

Riyad Mansour, embaixador palestiniano junto da ONU, saudando a “mensagem poderosa” enviada pela Assembleia Geral, defendeu que se trata de um “dia histórico”.

“É nosso dever coletivo continuar neste caminho até que possamos ver o fim desta agressão, desta guerra contra o nosso povo. [...] É nosso dever coletivo salvar vidas”, disse, vincando: “Não iremos descansar até vermos Israel a cumprir esta exigência da Assembleia Geral.”

“As crianças palestinianas são tão importantes como qualquer outra criança ao redor do Mundo. Não deveria haver diferenciação entre crianças. As crianças palestinianas são preciosas para nós, precisamos de salvá-las, precisamos de protegê-las e permitir-lhes sonhar os seus sonhos e reconstruir o Estado da Palestina e viver em liberdade e em dignidade”, salientou o embaixador.

Ao invés das resoluções do Conselho de Segurança, as da Assembleia Geral não são juridicamente vinculativas, mas, como disse, no dia 11, o porta-voz da ONU, Stepháne Dujarric, as mensagens da assembleia “são muito importantes” e refletem a opinião da comunidade internacional.

Esta votação reflete o crescente isolamento dos EUA e de Israel, que se recusam a aderir às exigências de um cessar-fogo em Gaza. “O tamanho desta maioria vai prejudicar muito os Estados Unidos”, frisou o analista Richard Gowan, do International Crisis Group, em declarações à Agência France Press (AFP). A grande maioria perdeu a paciência com Washington. Mais do que a ONU ou qualquer outra organização, os EUA são tidos como os únicos capazes de persuadir Israel a aceitar o cessar-fogo como seu aliado mais próximo e maior fornecedor de armamento.

Face ao posicionamento norte-americano, são cada vez mais as vozes a acusar Washington de “cumplicidade”, face aos crimes que estão a ser cometidos por Israel no enclave.

O Canadá, que alinhava, até agora, com as políticas dos EUA e de Israel, mudou o seu posicionamento e apoiou, pela primeira vez, um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza.

Tal como o texto adotado pela Assembleia Geral no final de outubro – que obteve o apoio de 120 países e que apelava a uma “trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada” –, a resolução agora aprovada não condena o grupo palestiniano Hamas, uma ausência que tem sido criticada por países como os EUA, o Reino Unido ou Israel.

Face a esta omissão, Linda Thomas-Greenfield, embaixadora dos EUA junto à ONU, antes de votar contra, discorreu: “Porque é que é tão difícil condenar o Hamas? Dizer, inequivocamente, que assassinar bebés e matar pais a tiro, na frente dos filhos, é horrível. Que queimar casas enquanto famílias se abrigam lá dentro e fazer civis como reféns é abominável.”

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Joe Biden está cada vez mais isolado na defesa do direito de Israel a defender-se. Os analistas acreditam que as alterações de perspetiva na comunidade internacional e a subsequente pressão sobre Telavive são significativas, mas sustentam que nem os EUA são capazes de influenciar os desígnios israelitas, neste momento

Foi um resultado enfático, que os EUA já não podem ignorar, apesar de se manterem entre os 10 países desfavoráveis ao apelo. A surpresa da Assembleia Geral foi ver Reino Unido e a Alemanha absterem-se. Di-lo Rex Brynen, investigador de Ciência Política, na Universidade de McGill, no Quebec (Canadá). O analista garante tratar-se de importante mudança, nomeadamente por parte de países como o Reino Unido, que se absteve, e do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia, que votaram a favor. Esta distribuição de votos reflete a preocupação internacional pela crescente perda de vidas civis e pela crise humanitária em Gaza, bem como a visão de que Israel pretendia devastar grande parte de Gaza e, até, empurrar Palestinianos para o Egipto.

A resolução imediatamente anterior, com apelo a um “cessar-fogo humanitário”, a 27 de outubro, tinha atraído 120 votos favoráveis, 14 contra e 45 abstenções. A resolução já expressava a grave preocupação com a situação humanitária catastrófica na Faixa de Gaza e o sofrimento da população civil palestiniana (já morreram 18 mil pessoas na ofensiva israelita). Mas o documento apelava ainda à proteção dos civis israelitas e palestinianos, ao abrigo do direito internacional, e exigia a libertação imediata de todos os reféns. A seguir, no Conselho de Segurança, foi vetada pelos EUA uma resolução com conteúdo similar. E as autoridades norte-americanas e austríacas chegaram a propor alterações, em momentos anteriores, para incluir a condenação aos “hediondos ataques terroristas do Hamas”, não perfazendo nenhuma das iniciativas o apoio total – e exigido – de dois terços.

Horas antes, numa angariação de fundos para a campanha de reeleição de 2024, em Washington, o presidente norte-americano Joe Biden avisou Benjamin Netanyahu de que estava a perder apoio internacional na guerra contra o Hamas. Já na Assembleia Geral, a embaixadora dos EUA junto da ONU procurou um discurso mais conciliador: “Israel, como todos os países do Mundo, tem o direito e a responsabilidade de defender o seu povo de atos de terrorismo. Israel deve evitar a deslocação em massa de civis, no Sul de Gaza, e deve garantir assistência humanitária suficiente àqueles que fogem da violência.”

“Dentro dos EUA, Israel ainda goza de um apoio político considerável”, sintetiza Yuval Shany, professor de Direito Internacional na Universidade Hebraica de Jerusalém e especialista em direito humanitário, frisando: “Biden tem de navegar entre a opinião mundial, a opinião pública interna e as vozes divergentes no Partido Democrata. Está a fazê-lo, apoiando o caminho israelita, mas pressionando Israel a melhorar a situação humanitária e a preparar-se para o dia seguinte.”

Rex Brynen concorda que, apesar da pressão da comunidade internacional, o apoio dos EUA permanece, pelo menos, durante as próximas semanas. Com efeito, a capacidade norte-americana de influenciar Israel “pode ser mais limitada do que alguns pensam”, o que poderá levar Israel a continuar a guerra durante “vários” meses, mesmo sem o apoio dos EUA. O maior fardo é o custo económico da mobilização militar, mas os Israelitas parecem muito dispostos a pagar tal preço.

Por sua vez, o Reino Unido já não faz defesa fervorosa de Israel. Rishi Sunak, primeiro-ministro britânico, disse não concordar com as declarações de Tzipi Hotovely, embaixadora de Israel no Reino Unido, que afirmara que Israel não aceitaria a solução de dois Estados com os Palestinianos. Questionada sobre a hipótese de os Palestinianos terem o seu próprio Estado, Tzipi Hotovely declarou: “Absolutamente, não.” Porém, Sunak discordou: “A nossa posição, de longa data, continua a ser a de que a solução de dois Estados é o resultado certo.” O primeiro-ministro, reconhecendo que o que está a acontecer em Gaza é “incrivelmente preocupante”, declarou: “Eu tenho dito consistentemente que muitas pessoas inocentes perderam a vida. Ninguém quer que este conflito dure mais do que o necessário.”

E foi claro, ao manifestar que o governo do Reino Unido continuará a apoiar os apelos a um “cessar-fogo sustentável”, para permitir a libertação de reféns e a entrada de mais ajuda em Gaza.

As declarações de Rishi Sunak dão mais força à ideia de que os Britânicos já não apoiam Israel, de forma incondicional, como revelou a votação da mais recente resolução na Assembleia Geral da ONU. Todavia, o analista Yuval Shany refere que isso terá importância relativa: “As resoluções da Assembleia Geral não são vinculativas e os apelos a um cessar-fogo humanitário já foram ouvidos anteriormente, vindos de muitas direções. Já houve uma resolução do Conselho de Segurança que também apela a pausas humanitárias. A nova resolução não representa, portanto, uma mudança dramática, mas, em vez disso, ilustra a erosão gradual do apoio à posição de Israel, o que é mais uma razão para terminar a guerra o mais rapidamente possível.”

Se Telavive o fará, é outra questão. Quando Gilad Erdan, representante israelita na ONU, censurou a resolução por não mencionar o Hamas, voltou a referir-se aos “nazis do Hamas” (estes é que são os maus) e disse que a votação a favor do cessar-fogo era a votação a favor da “sobrevivência do terror jihadista e do sofrimento contínuo do povo de Gaza”.

Nenhum governo israelita dará, politicamente, por terminada a guerra, sem a libertação dos reféns e uma aparente vitória, que pode ser, por exemplo, o assassinato ou captura de altos líderes do Hamas. Enquanto o Hamas der luta, a guerra continuará. Só a retirada total do apoio dos EUA poderá desviar as intenções de Israel, visto que Israel depende dos EUA, para evitar sanções do Conselho de Segurança contra o país e para o reabastecer militarmente. Porém, é improvável que, a curto prazo, os EUA retirem totalmente o seu apoio a Israel, sobretudo em ano de eleições.

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Entretanto, a população de Gaza está sem tempo e sem opções, pois enfrenta bombardeamentos, privações e doenças, num espaço cada vez mais reduzido.

Philippe Lazzarini, chefe da agência da ONU de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA) advertiu que a capacidade de assistência em Gaza está “à beira do colapso”, tendo já morrido mais de 130 membros da agência.

Numa intervenção especial no Fórum Global de Refugiados, em Genebra (Suíça), deu conta do cenário de devastação e desespero, reiterando o que escrevera na véspera na rede social X (antigo Twitter): a Faixa de Gaza é hoje um “verdadeiro inferno”, onde “não há qualquer sítio seguro”.

De facto, as infraestruturas civis e as instalações da ONU não foram poupadas pelos bombardeamentos de Israel. Uma escola da UNRWA foi destruída por bombas, no Norte de Gaza.

Lazzarini explicou que “a maior parte da população de Gaza foi deslocada à força, em grande parte para a parte sul da Faixa, Rafah”, cidade que alberga, atualmente, “mais de um milhão de pessoas”, quando antes acolhia 280 mil, e que “não possui as infraestruturas e os recursos necessários para sustentar uma tal população”. Nos armazéns da UNRWA, as famílias vivem em espaços minúsculos, separados por cobertores pendurados em finas estruturas de madeira. Ao ar livre, surgem abrigos frágeis por todo o lado. Rafah tornou-se comunidade de tendas. E os espaços à volta dos edifícios da UNRWA estão congestionados com abrigos e com pessoas desesperadas e esfomeadas.

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Haja, pois, compaixão para com as pessoas, ajuda humanitária e força política para acabar com a guerra e com a miséria. As pessoas têm direito a viver.

2023.12.17 – Louro de Carvalho

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