sábado, 23 de dezembro de 2023

Natal de serenidade, de humildade e de alegria para todo o ano

 

Se Dionísio, o moço, não se tivesse enganado na contagem dos anos, não podíamos dizer que o primeiro Natal, o de Jesus de Nazaré, tinha ocorrido há 2023 anos. Assim, Jesus Cristo terá nascido pelo ano 6.º ou 5.º da Era Cristã, ou seja, nasceu antes de Ele próprio.

Continuamos a dizer, por simplificação, que o Nazareno nasceu há 2023 anos. E daí não vem qualquer mal à Humanidade. Aliás, o Cristianismo não é História, mas Vida que também faz a História e permite escrevê-la e reescrevê-la todos os dias. Por isso, o importante é assumir o espírito do Natal.

Todas as pessoas percebem e assumem que a esta quadra natalícia está inerente a partilha, que assenta na fraternidade universal e postula a proximidade das pessoas, pelo que se fazem as deslocações necessárias para a reunião de família, para o encontro de amigos, para a convivência de colegas de trabalho ou de clube.

Porém, não há muito tempo, começou a aproveitar-se esta época, de alguma pausa no trabalho, para férias e para turismo. Sobrepôs-se à partilha, à reunião e à proximidade o consumismo, expresso no afastamento dos amigos, da família e dos colegas. Muita gente quer viver a vida ao seu bel-prazer, a sós, longe de tudo e de todos, o que é legítimo, em caso de stresse, não de fuga.

Esta pode ser a forma mais severa do consumismo, mas este enxameou a sociedade e penetrou-a até aos rins e à medula dos ossos. É o negócio dos enfeites, das luzes, dos brinquedos, das promoções comerciais, das viagens. O comércio natalício pontifica e impõe-se, logo desde meados de outubro. Multiplicam-se os presépios como instrumentos de adorno, mesmo onde não há fé, nem ponta de religião. Nesse aspeto, o comércio, em nome do respeito pela tradição, vai travando alguma pretensão de alguns decisores políticos de tirar da ribalta social importantes motivos religiosos e culturais.    

Toda a gente dá prendas e pode zangar-se, caso não as receba. As prendas, mais do que um brinde ou uma recordação, tornam-se uma acumulação de presentes, uma moeda de troca, uma mostra de riqueza, um meio de reconhecimento (quando não de subserviência).

Ora, as prendas, em minha modesta opinião, só valem se forem expressão de partilha em família, na roda de amigos, na teia do companheirismo. E serão altamente meritórias se a elas for intimamente acoplada a solidariedade para com aqueles e aquelas que precisam.

Na verdade, famílias que não partilham, amigos que voltam as costas, uns aos outros, colegas de trabalho ou de clube que rivalizam ou se tramam não fazem Natal. E não há Natal, quando os pobres não têm casa, não têm comida, não têm roupa, não têm companhia. É que o dinamismo desta época impõe a proximidade na forma de generosidade, de afeição e de entrega.

O Natal é a festa da liberdade. Porém, só há liberdade, se a dignidade de todas as pessoas é reconhecida, promovida e defendida. E a dignidade de cada pessoa só se realiza com a satisfação das necessidades básicas da alimentação, do vestuário, da habitação, do trabalho, da educação, da saúde e da proteção na doença, na velhice e no desemprego. Só a partir daí vale a pena solicitar a participação expressa de todos na vida pública.

Dir-se-á que isto deve observar-se independentemente de haver Natal ou não. Claro que sim. Todavia, bem sabemos como isso falha nas nossas sociedades. Cresce o número de pobres e aumenta a sua pobreza, enquanto a riqueza de uns poucos engrossa, mormente quando as crises assolam os povos. A habitação, a saúde e a educação andam pelas ruas da amargura. E, no meio de tudo isto, enquanto surgem falsos pobres que se aproveitam indevidamente dos auxílios devidos aos pobres, os ricos acusam os pobres de serem culpados da sua indigência ou lhes prestam o favor da assistência caridosa, que os humilha e torna dependentes. Isso não é caridade, pois a caridade tem de conter em si a justiça: a ninguém pode faltar nada daquilo que realmente precisa. Não se pode esquecer a função social da propriedade, nem o destino universal dos bens. Não se pode dar a alguém, por caridade, o que lhe é devido por justiça. Não se deve ficar pelo assistencialismo, a não ser em situação de emergência mas tender à promoção da pessoa humana pela educação e pelo trabalho.

Estes valores devem ser cultivados no Natal, não para que fiquem encurralados na quadra natalícia, cessando quando o Natal passar, mas para que norteiem a vida de todos ao longo do ano inteiro. Por isso, é que o Natal é quando os homens quiserem. E eles (nós) devem querer que seja todos os dias, todas as semanas, todo o ano e todos os anos.

Todo este dinamismo implica a assunção permanente de um estilo de vida marcado pela simplicidade serena e pela humildade.

A simplicidade postula o reconhecimento de todos como pessoas usando, com parcimónia, dos recursos de que se dispõe e acautelando, sábia e equilibradamente, o futuro. É inimiga do discurso complicado, da acumulação desordenada ou ilegítima de recursos, da criação de factos desnecessários e da invenção de problemas onde esses não existem.

A humildade não consiste em negar as qualidades de que sejamos dotados ou ações meritórias a que tenhamos posto as mãos. Isso é falsa humidade. É a atitude de gato: este faz-se pequeno diante de quem o quer afagar, mas, à medida que se lhe passa a mão pelo lombo e pelo dorso, torna-se mais volumoso, alto e satisfeito.

A verdadeira humildade consiste em perceber que uns não mais do que os outros; em reconhecer as qualidades que temos, pondo-as ao serviço da comunidade; em reconhecer os nossos erros, tentando corrigi-los; e em agir como membros da comunidade a que pertencemos ou naquelas que nos acolhem. Dela é inimiga a prepotência, o excesso de protagonismo, a intriga, a soberba, a maledicência, o domínio, bem como a sujeição acrítica, a obediência cega e a subserviência.

São a simplicidade e a humildade que nos capacitam para a partilha e para a proximidade. E a partilha e a proximidade são fonte, fator e fautor de alegria.

Assim, o homem cônscio da sua dignidade é simples, humilde e alegre. A simplicidade não é artificial, a humildade é verdadeira e a alegria é genuína.

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Ao Natal está associada a paz que, é a consequência da fraternidade. Infelizmente, a fraternidade é negada e britada pela guerra, que está a funcionar em vários palcos – uma terceira guerra mundial aos pedaços, no dizer do Papa Francisco. E a guerra é antinomia da paz. Chega-se à guerra através da negação da partilha, do abandono da proximidade solidária, da recusa da reunião dialogal.

A guerra disputa territórios, mata pessoas, destrói património, vandaliza a Natureza, trata os outros como seres não humanos, escraviza, tolhe a liberdade.  

Educa-se, não para a convivência, mas para a competitividade, que dá em sobranceria, descamba em violência, acumula recursos, não olha a meios para atingir os fins. Praticamos a imposição, em vez do diálogo; criamos autómatos, em vez de pessoas verdadeiramente livres; somos caciques, em vez de políticos; servimo-nos, em vez de servir.  

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Contudo, o Mundo dispõe de muitos alfobres de pessoas simples, humildes e alegres, que lutam pela paz, através do diálogo, fazendo jus à fraternidade. Muitas agremiações são arautos e paladinos dos direitos humanos e da boa consciência. O que faz falta é multiplicar estas pessoas e estas agremiações e assumir os seus objetivos no quotidiano.

A boa consciência leva à partilha solidária, leva ao diálogo, leva à paz.

Os cristãos têm motivos de sobra para serem simples – a simplicidade dá serenidade à alma –, humildes e alegres. O Filho de Deus que Se fez homem, passou a existir no tempo e veio ao Mundo, como exemplo da simplicidade, da humildade, da serenidade. O presépio fala por si. E é da serenidade, da paz e da parcimónia de vida, que resulta a genuína alegria.

Efetivamente, Jesus Cristo, antes de o ser (homem), já o era (Deus). Pouco importa que tenha ou não havido erro no calendário gregoriano; o que interessa é o espírito do Natal.

Em tempos de guerra, de crises políticas e económico-sociais e de alterações climáticas, acompanhadas de catástrofes naturais, parece não haver razões para a esperança. Perdem-se os valore de vida. Todavia, quem usa da boa consciência, quem crê tem motivos para sorrir e para ousar na porfia da esperança. É a esperança que nos mantém vivos.

É neste sentido que desejo a todos os familiares, amigos e cúmplices no trabalho ou no lazer um Natal de simplicidade serena, de humildade verdadeira e de genuína alegria para todos os dias.

Humildade e alegria são, no dizer do meu conterrâneo Adriano Batista, as qualidades que mais faltam nas pessoas e que são o mais importante na vida. De acordo.

Boas Festas! Feliz Natal! Próspero Ano Novo!

2023.12.23 – Louro de Carvalho

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