sábado, 2 de dezembro de 2023

Irmã Seli Thomas quer as religiosas em ação contra o tráfico humano

 

 

A irmã Seli Thomas, religiosa indiana das Irmãs Catequistas de Maria Imaculada Auxiliadora, da Família Salesiana, no encontro da AMRAT – Talitha Kum, aliança internacional de religiosas contra o tráfico, que decorreu, na Índia, no último fim de semana de novembro, considerou: “Mais de 100 mil religiosas estão na Índia. […] Se todas trabalhássemos, juntas, no combate ao tráfico, através do nosso próprio ministério, poderíamos salvar muitas vidas.”.

A situação é grave. O Índice Global de Escravatura estima que, só naquele país asiático, haja onze milhões de pessoas, incluindo crianças e adolescentes, sujeitas a formas de escravatura moderna. E, ao mesmo tempo, é neste país que existe o maior número de freiras do Mundo, tendo estado presentes no encontro 170 religiosas, em representação de 80 congregações diferentes.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), há quase 28 milhões de pessoas em situação de escravatura, em todo o Mundo – a maioria das situações acontece em alguns dos países mais ricos – e, destes, mais de três milhões são crianças. E a Organização Internacional do Trabalho (OIT) assegura que o número de pessoas forçadas a trabalhar aumentou significativamente, ao longo dos últimos anos, tendo o acréscimo sido de 10%, nos últimos quatro anos. Destes milhões de pessoas que são forçadas a trabalhar sem qualquer dignidade, 3,3 milhões são crianças.

Estes números, que são alarmantes, levantam sérias preocupações entre as entidades mundiais, que apontam a pobreza extrema, a falta de oportunidades económicas, a desigualdade social, a migração forçada, a corrupção, a impunidade dos exploradores, a demanda de produtos e serviços baratos, as guerras, as alterações climáticas e as pandemias, como as principais causas deste flagelo global.

“Sabemos que temos de proteger as pessoas contra as vulnerabilidades que estão no cerne do trabalho forçado. Temos de melhorar as práticas de recrutamento, que têm de ser justas e éticas. Temos de reforçar a inspeção do trabalho e a aplicação da lei. Todas estas coisas, sabemos o que funciona, só não o estamos a fazer o suficiente”, afirmou Guy Ryder, diretor-geral da OIT.

Segundo esta organização, a grande maioria das situações que se verificam atualmente acontece nos países mais ricos do planeta, tais como o Dubai e a China. O país da península arábica tem sido alvo de intenso escrutínio, devido às situações reportadas por vários trabalhadores envolvidos nos trabalhos de construção dos estádios utilizados no Mundial de futebol. Já na China, as situações apontadas estão relacionadas com o trabalho forçado de milhares de pessoas que se encontram detidas, por motivos religiosos e étnicos.

A escravatura trabalhista moderna assenta em práticas de trabalho forçado e de exploração laboral que se assemelham à escravidão histórica: salários de miséria (injustos), que geram condições de vida precárias e dificuldades financeiras; jornada de trabalho excessiva (longas horas sem descanso adequado, sem folgas regulares e sem compensação adicional); condições de trabalho perigosas (risco para a saúde e para a segurança: falta de equipamento de proteção adequado, exposição a substâncias tóxicas, ausência de medidas de segurança); restrição da liberdade de movimento (com ameaça, violência ou confisco de documentos de identidade); trabalho infantil (sobrecarga e fuga à educação); e discriminação e abuso (tratamento discriminatório com base em etnia, género, religião ou política; e abuso físico, sexual ou psicológico).

Todavia, nem só de escravatura trabalhista se trata. Junta-se-lhe, por exemplo o casamento forçado. Assim, os dados da ONU revelam que cinquenta milhões de pessoas foram forçadas a trabalhar ou a casar em 2021.

As principais formas de escravatura moderna, além do trabalho forçado, são: a utilização de crianças em conflitos armados, como escudo humano ou como combatentes (crianças-soldado); o tráfico de pessoas; a exploração sexual e a prostituição forçada; a venda de crianças; e a servidão por dívidas.

A ONU quer erradicar o flagelo até 2030, mas, em 2022, havia, em situação de escravatura moderna, mais 10 milhões de pessoas do que as estimativas de 2016. Cerca de 28 milhões eram pessoas submetidas a trabalhos forçados e 22 milhões casadas contra sua vontade. Mulheres e meninas representam mais de dois terços das pessoas forçadas ao casamento e quase quatro em cada cinco estavam em situação de exploração sexual comercial. No total, representam 54% dos casos de escravidão moderna.

A pandemia – que proporcionou a deterioração das condições de trabalho e o aumento do endividamento dos trabalhadores – fortaleceu as fontes da escravidão moderna em todas as suas formas. Nos últimos anos, a multiplicação das crises – além da pandemia, os conflitos armados e as alterações climáticas – provocaram perturbações sem precedentes, em termos de emprego e de educação, o agravamento da pobreza extrema, o aumento de migrações forçadas e perigosas, a explosão de casos de violência de género.

Em todo o mundo, quase uma em cada 150 pessoas é considerada um escravo moderno.

O diretor-geral da OIT, considerando “chocante que a situação da escravatura moderna não esteja a melhorar”, vem apelando aos governos, aos sindicatos, às organizações patronais, à sociedade civil e ao cidadão comum para que combatam “esta violação fundamental dos direitos humanos”.

A OIT propõe uma série de ações, incluindo melhorar e fazer cumprir as leis e inspeções laborais, acabar com o trabalho forçado imposto pelo Estado, expandir as proteções sociais e fortalecer as proteções legais, aumentando a idade legal do casamento para 18 anos, sem exceção.

Reduzir a vulnerabilidade dos migrantes ao trabalho forçado e ao tráfico de pessoas depende, acima de tudo, de políticas nacionais e estruturas legais que respeitem, protejam e cumpram os direitos humanos e liberdades fundamentais de todos os migrantes.

As mulheres e as crianças permanecem desproporcionalmente vulneráveis. Assim, quase um em cada oito trabalhadores forçados é uma criança e mais da metade deles são vítimas de exploração sexual comercial. Também os trabalhadores migrantes têm mais de três vezes mais probabilidades de serem submetidos a trabalho forçado do que os adultos não migrantes.

António Vitorino, antigo diretor-geral da Obra Internacional das Migrações (OIM) apelava a que toda a migração “seja segura, ordenada e regular”.

A Ásia e o Pacífico têm mais de metade do total de trabalhadores forçados do mundo. A Coreia do Norte, a Eritreia e a Mauritânia são os países mais afetados pela escravatura moderna, segundo o Índice Global de Escravidão. A Coreia do Norte tem a taxa mais alta, com 104,6 pessoas em situação de escravidão moderna por mil habitantes. A seguir, vêm a Eritreia (90,3) e a Mauritânia (32), que foi o último país, em 1981, a tornar ilegal a escravidão hereditária.

Portugal surge referenciado com 3,8 pessoas por mil habitantes – de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), de 2021, a população residente foi estimada em 10.421.117 habitantes – o que, feitas as contas, indica que haverá, na condição de escravatura moderna, 39,6 mil pessoas no país, número superior aos do Burkina Faso, Togo, Essuatíni ou Serra Leoa, entre outros.

O relatório, realizado pela associação Walk Free, define a escravidão moderna como “trabalho forçado, casamento forçado, servidão por dívida, exploração sexual” ou ainda “venda e exploração de crianças”. Muitos dos países mais afetados estão em regiões consideradas voláteis, passando por conflitos ou instabilidade política, com grandes populações vulneráveis, como refugiados ou trabalhadores migrantes.

Também entre os 10 países mais afetados estão a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, onde a “kafala”, sistema de tutela dos empregados, limita os direitos dos trabalhadores migrantes. Nestas posições de destaque, estão também a Turquia, “que acolhe milhões de refugiados sírios”, o Tajiquistão, a Rússia e o Afeganistão.

Embora o trabalho forçado seja mais comum em países pobres, tem vínculos profundos com as necessidades dos países mais ricos, estando dois terços dos casos de trabalho forçado ligados a cadeias internacionais de fornecimento de produtos. Assim, os países do G20 importam 468 mil milhões de dólares (434 mil milhões de euros) de bens que podem ter sido produzidos com trabalho forçado, um valor acima dos 354 mil milhões (328 mil milhões) assinalados pelo relatório anterior. Os produtos eletrónicos continuam a ser os de maior risco, seguidos por roupas, óleo de palma e painéis solares.

“A escravidão moderna permeia todos os aspetos da nossa sociedade. Está presente nas nossas roupas, nos nossos aparelhos eletrónicos e tempera a nossa comida”, disse a diretora da associação Walk Free, Grace Forrest, que sublinhou: “Fundamentalmente, a escravidão moderna é uma manifestação de extrema desigualdade. É um espelho erguido ao poder, que reflete quem, numa dada sociedade, tem e quem não tem este poder.”

***

É no sentido do apelo da OIT à cooperação da sociedade civil, do exercício da cidadania ativa, da solidariedade ditada pelo serviço evangélico e da virtualidade do trabalho em rede, adotado e promovido pela AMRAT – Talitha Kum, que a irmã Seli quis motivar as cem mil religiosas da Índia a abraçar o desafiante ministério da luta contra a exploração de pessoas, dando a conhecer o projeto que implementou em Krishnagar, Bengala Ocidental, e que visa resolver as principais causas da exploração: a pobreza e o desemprego.

A religiosa partilhou o modo como ela e as restantes irmãs da comunidade começam por entrar nos bairros de prostituição, onde aconselham e ajudam as mulheres que ali são exploradas a enviar os filhos para a escola. Depois, nas escolas, a congregação – que pertence à família Salesiana – tem um programa de capacitação e um espaço onde as crianças podem conversar com as irmãs, “porque muitas vezes as crianças não estão seguras nem em casa”, alertou. Além disso, como é formada em Direito, a irmã Seli presta assistência jurídica gratuita e dinamiza seminários e oficinas sobre a migração segura e o tráfico de seres humanos nas aldeias, para os professores e para os estudantes.

Vencedora do galardão “Bem Comum” na primeira edição dos Prémios Antitráfico às Irmãs (SATA, na sigla inglesa), há um mês, Seli Thomas viu reconhecida a sua “coragem e criatividade” no combate à exploração de pessoas. Só através do programa que implementou em Krishnagar, já terá “salvado a vida” a, pelo menos, 500 mulheres, como indica a organização dos prémios. 

Questionada sobre a razão de ter abraçado esta missão, aquando da atribuição do prémio, a irmã Seli respondeu com a pergunta: “Quando vejo sofrimento à minha volta… como posso permanecer numa zona de conforto?” E partilhou a história de uma das vítimas que conseguiu salvar: uma mulher de cerca de 30 anos que veio vê-la em lágrimas. “Irmã, onde é que esteve todos estes anos?”, perguntou-lhe. “Se eu a tivesse conhecido antes, nunca me teria tornado uma profissional do sexo, não teria sido vítima de traficantes, vendida e revendida por homens repetidamente desde os 12 anos de idade.” Para a irmã Seli, foi um testemunho “destruidor e doloroso” de ouvir: “Tudo o que pude fazer foi confortá-la, mas a dor dela levou-me a continuar.”

Agora, assegura, é isto que quer fazer “pelo resto da vida”: “Eu sei que não posso mudar o Mundo inteiro. O que posso fazer é provocar alguma mudança e dar esperança àqueles que se desesperam, e salvar algumas vidas do tráfico, uma pessoa de cada vez.” Foi por isso que deixou o apelo às restantes religiosas do país: para que, juntas, possam salvar muitas mais pessoas.

É um desafio premente lançado aos cristãos, aos demais cidadãos, aos Estados, aos empregadores, aos sindicatos e às outras organizações.

2023.12.02 – Louro de Carvalho

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