segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O “julgamento do século” do Estado da Cidade do Vaticano

 

O cardeal Giovanni Angelo Becciu, antigo superpoderoso número três da Santa Sé, no final do “julgamento do século”, por gestão danosa dos fundos da Secretaria de Estado e por venda de um imóvel de Londres, foi condenado a cinco anos e seis meses de reclusão, com interdição perpétua de exercer cargos públicos, mais oito mil euros de multa. O cardeal foi considerado culpado de dois peculatos – pelo investimento inicial no imóvel da Sloane Avenue, pelos 125 mil euros enviados à cooperativa Spes, de Ozieri, do seu irmão Antonino, e de uma fraude agravada.

Os advogados do prelado reiteram “a sua inocência” e anunciam: “Vamos recorrer”. Porém, o promotor de justiça Alessandro Diddi diz-se “finalmente sereno”, porque a sentença lhe dá razão.

Depois de um total surpreendente de 30 meses, 85 audiências que se estenderam por cerca de 600 horas de tribunal, 69 testemunhas e quase 150 mil páginas de documentação, o ““julgamento do século” do Vaticano atingiu um crescendo no dia 16 de dezembro, à noite, com vereditos de culpa contra o cardeal Angelo Becciu e contra oito dos outros nove réus. De certo modo, os resultados marcaram um presente de aniversário antecipado para o Papa, cujo 87.º aniversário ocorreu a 17 de dezembro. Com efeito, Francisco deu início a tudo isto em abril de 2021, ao alterar a lei do Estado da Cidade do Vaticano, permitindo ao seu tribunal civil julgar os casos de cardeais e de bispos que trabalham no Vaticano.

Contudo, essa longa jornada não acabou, tão rápido, de um dia para a noite. Na verdade, não há apenas um, mas vários sapatos a abandonar, sugerindo que as consequências podem levar ainda mais tempo para acontecer do que o julgamento em si.

Desde logo, há a considerar o processo de apelação. Um advogado de Becciu já anunciou planos para recurso e é provável que, pelo menos, alguns dos outros réus que foram condenados no processo lhe sigam o exemplo. Não teremos de esperar muito para descobrir: segundo as regras processuais do Vaticano, alguém condenado por um crime pelo tribunal civil tem só três dias para decidir se vai interpor recurso, e o domingo conta. Por isso, o prazo vai até ao dia 19. Como brincou um observador, o domingo pode ser o Dia do Senhor em qualquer outro lugar da cristandade, mas, aparentemente, não, no sistema jurídico do Vaticano.

Presumivelmente, qualquer recurso que Becciu e os outros interponham será ouvido pelo Tribunal de Apelações do Estado da Cidade do Vaticano, composto por seis juízes, três clérigos e três leigos. O presidente é o arcebispo espanhol Alejandro Arellano Cedillo, enquanto o promotor de justiça é o jurista leigo italiano Raffaele Coppola.

Se os tribunais chegarem a conclusões diferentes, também é possível que o “supremo tribunal” do Estado da Cidade do Vaticano, conhecido como Tribunal da Cassação, seja chamado a julgar o conflito. Esse tribunal é atualmente liderado pelo cardeal americano Kevin Farrel e inclui os cardeais Matteo Zuppi, de BolonhaPaolo Lojudice, de Siena, e Mauro Gambetti, vigário geral do Estado da Cidade do Vaticano, juntamente com dois juristas leigos.

Além disso, há também a questão de manter os veredictos, para a qual o Vaticano pode precisar de ajuda internacional. Além das penas de prisão proferidas na noite do dia 16, o tribunal também ordenou o confisco de cerca de 180 milhões de dólares em bens e o pagamento de cerca de 220 milhões de dólares em danos. Se realmente quiser reaver algum desse dinheiro, presumivelmente o Vaticano precisará de solicitar que os seus vereditos sejam reconhecidos por outros Estados onde os fundos são realmente depositados, como a Suíça e o Reino Unido.

O histórico do Vaticano em tribunais estrangeiros sobre o acordo de Londres é misto. Em janeiro de 2022, um tribunal suíço rejeitou um apelo do financista Raffaele Mincione para desbloquear ativos no valor de cerca de 70 milhões de dólares, que tinham sido congelados, em 2021, a pedido do Vaticano, rejeitando a alegação de Mincione de que não conseguiria um julgamento justo no Vaticano. Por outro lado, os tribunais do Reino Unido deram, por duas vezes, retrocesso aos pedidos de cooperação do Vaticano.

Em março de 2021, o juiz Tony Baumgartner do Tribunal da Coroa de Southwark reverteu a apreensão de bens pertencentes a outro financista e réu italiano, Gianluigi Torzi, concluindo que os arquivos do Vaticano, no caso, estavam cheios de “não divulgações e declarações falsas” que Baumgartner chamou de “terríveis”. Mais recentemente, um tribunal britânico diferente confirmou o pedido de Mincione de acesso a textos e e-mails confidenciais entre o cardeal italiano Pietro Parolin e o arcebispo venezuelano Edgar Peña Parra, os dois principais funcionários da Secretaria de Estado, como parte de uma reconvenção de Mincione, por violação de reputação. Assim, se o Vaticano procurar o reconhecimento das sentenças em tribunais estrangeiros, diferentes juízes analisarão as mesmas provas, podendo tirar conclusões diferentes.

Há também a questão de saber se, esgotados todos os recursos, alguém irá realmente para a cadeia. No passado, as pessoas condenadas por crimes pelo tribunal do Vaticano e sentenciadas à prisão não passavam tempo real atrás das grades. Em dezembro de 2012, por exemplo, Bento XVI perdoou Paolo Gabriele, seu antigo mordomo, condenado a 18 meses de prisão, por passar documentos confidenciais no primeiro escândalo “Vatileaks”.

Em 2016, Francisco concedeu clemência ao monsenhor espanhol Lucio Ángel Vallejo Balda, condenado, no segundo escândalo “Vatileaks”, a 18 meses de prisão, dando-lhe liberdade condicional, embora sem extinguir a pena. A corré de BaldaFrancesca Chaouqui, uma ex-funcionária de relações públicas, foi condenada a 10 meses, mas o tribunal suspendeu a pena.

Assim, mesmo que todas as penas de prisão atribuídas pelo tribunal se mantenham, não é automático que sejam efetivamente cumpridas. As incertezas seriam ainda mais agravadas se, entretanto, houvesse transição no papado, pois um novo papa poderia ter uma visão diferente.

Parece, pois, claro que, embora as decisões do tribunal do Vaticano estejam agora registadas, o caso ainda não foi analisado pelo tribunal mais amplo da opinião pública.

O legado contestado do julgamento ficou imediatamente claro a 16 de dezembro. Poucas horas após a divulgação dos veredictos, o diretor editorial do Vaticano, Andrea Tornielli, publicou um ensaio no site Vatican News sob o título “Um julgamento que garantiu os direitos de todos”, insistindo que foi um “julgamento justo” marcado por “pleno respeito pelos direitos dos réus”. “A génese deste processo mostrou que a Santa Sé e o Estado da Cidade do Vaticano possuem os ‘anticorpos’ necessários para identificar alegados abusos ou impropriedades”, escreveu Tornielli. “O processo de julgamento atesta que a justiça é administrada sem atalhos, seguindo o código processual, respeitando os direitos de cada pessoa e a presunção de inocência.”

Tornielli sentiu a necessidade de dizer tudo isso claramente, porque sabe que muitos observadores têm dúvidas. Desde o início, os críticos afirmaram que o julgamento foi fatalmente falho, porque alguns consideraram as provas pouco convincentes e porque não há separação de poderes entre o executivo e o judiciário no sistema do Vaticano, tendo o Papa usado, repetidamente, a sua autoridade de modos que os críticos dizem que empilhou as cartas a favor da acusação.

Essa foi a essência, por exemplo, de um comentário postado, apenas 20 minutos depois do ensaio de Tornielli, por Luis Badilla, um veterano jornalista chileno residente em Roma, que administra o blogue amplamente lido Il Sismografo. Badilla chamou abertamente o julgamento de “completamente não confiável”. “Esta engenhoca é um drama roteirizado pelo soberano e nada mais”, zombou Badilla. “Tudo é feito de papel machê [massa feita com papel picado embebido na água, coado e depois misturado com cola e gesso], e cada elemento foi criado com arte, mesmo com efeito retroativo, para um único propósito: servir a narrativa do Papa Francisco sobre a luta contra a corrupção.”

“A condenação de Becciu não é a verdadeira questão central”, escreveu Badilla. “O problema é um tribunal subjugado ao soberano.”

Este debate sobre a legitimidade do sistema de justiça civil do Vaticano continuará, certamente, considerando que Francisco parece comprometido com o que foi apelidado de vaticanização da Santa Sé, ou seja, sujeitar o governo universal da Igreja e o seu pessoal, às leis e julgamentos do Estado da Cidade do Vaticano. O resultado prático é que, doravante, sempre que for alegada má conduta por parte de um potentado da Cúria, provavelmente será aguardado um dia no tribunal ou, como neste caso, cerca de dois anos e meio, o que muitos não querem.

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Becciu, ex-substituto para Assuntos Gerais e ex-prefeito para as Causas dos Santos, é o primeiro cardeal da história da  Igreja Romana a ser condenado criminalmente no Vaticano por um órgão judiciário composto por leigos. O Tribunal do Vaticano presidido por Giuseppe Pignatone, com Venerando Marano e Carlo Bonzano, emitiu sentenças totalizando 37 anos e um mês de reclusão. O único acusado absolvido, entre os dez, foi monsenhor Mauro Carlino. Três anos e nove meses de prisão foram impostos à ex-gerente Cecilia Marogna. A mulher, suposta especialista em inteligência, originalmente acusada de peculato pelos 575 mil euros obtidos da Secretaria de Estado, por meio de Becciu, para supostas finalidades humanitárias, que acabaram por ir, em boa parte, para a sua empresa eslovena Logsic em despesas pessoais, foi condenada por fraude agravada, em cumplicidade com Becciu: a motivação de que o dinheiro seria usado para favorecer a libertação de uma freira colombiana sequestrada no Mali foi considerada “não correspondente à verdade”.

Entre os demais condenados, o consultor Enrico Crasso apanhou sete anos de prisão; o corretor Raffaele Mincione cinco anos e seis meses; o funcionário do Vaticano Fabrizio Tirabassi, sete anos e seis meses; o advogado Nicola Squillace, um ano e 10 meses (suspensos); o outro corretor Gianluigi, seis anos. Para René Bruelhart e Tommaso Di Ruzza, respetivamente ex-presidente e ex-diretor da Autoridade de Informação Financeira (AIF), a autoridade antilavagem de dinheiro do Vaticano, o Tribunal determinou uma multa de 1750 euros.

Além disso, foi ordenado o confisco das quantias que constituem o corpo dos delitos contestados num total superior a 166 milhões de euros. Os réus foram, por fim, condenados, solidariamente, à indemnização por danos em favor das partes civis – Secretaria de Estado, Administração do Património da Sé Apostólica (Apsa), Instituto para as Obras de Religião (IOR) e Autoridade de Supervisão e Informação Financeira (ASIF) – calculados, no total, em mais de 200 milhões de euros. Todos preveem recurso para o Tribunal de Apelações e até para o Tribunal de Cassação.

“Reiteramos a inocência do cardeal Becciu e iremos recorrer”, declarou o defensor, o advogado Fabio Viglione. “Respeitamos a sentença, mas certamente recorreremos”. Depois, numa nota, com a colega Maria Concetta Marzo, escreveu: “Há uma profunda amargura, depois de 86 audiências, em constatar que a inocência do cardeal Becciu não foi proclamada pela sentença, apesar de todas as acusações se terem revelado completamente infundadas. As provas que surgiram no julgamento, a génese das acusações contra o cardeal, resultado de uma demonstrada maquinação contra ele e a sua inocência, permitem-nos olhar para o recurso com inalterada confiança”. Por seu turno, o procurador-geral Diddi afirma: “Acredito que a abordagem foi consistente e isso para mim é o mais importante. Nesses processos nunca se deve festejar o resultado, um ministério público nunca pode ficar feliz pelas condenações. O que me satisfaz é que o longo e meticuloso trabalho foi consistente, apesar das objeções que foram levantadas contra nós nos últimos anos: disseram que somos incompetentes, ignorantes, mas, na realidade o resultado dá-nos razão. Agora estou sereno.”

Foi “um processo que garantiu os direitos de todos”, refere o portal da Santa SéVatican News.

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Enfim, os homens e mulheres da Igreja não estão imunes. Haja a justiça adequada!

2023.12.18 – Louro de Carvalho

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