quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A legalidade do tratamento das gémeas do Brasil lusodescendentes

 

Tem dado que falar e levado a que muita tinta venha correndo nas pantalhas da nossa praça o caso das duas meninas residentes em São Paulo, no Brasil, que sofrem de atrofia muscular espinal e que, no país de residência, estavam a ser tratadas com um medicamento disponível e, até então, considerado aplicável à doença e cuja próxima toma ocorreria a 17 de março de 2020.

Entretanto, em fins de 2019, a família teve conhecimento da existência, em Portugal, do Zolgensma, tratamento inovador, aprovado e em uso nos Estados Unidos da América (EUA), desde maio de 2019, e diligenciou no sentido de as crianças poderem ser tratadas com esse medicamento no Hospital de Santa Maria, estabelecimento integrado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, em Portugal. Porém, como se trata de crianças lusodescendentes naturalizadas no Brasil e residentes nesse país, precisavam de adquirir a nacionalidade portuguesa ou de residir em Portugal, para terem direito ao atendimento em Portugal.

É perfeitamente legal adquirir a nacionalidade portuguesa, residir em Portugal, ser tratado em Portugal com um medicamento do valor de cerca de dois milhões de euros e ser disponibilizado a crianças cadeiras de rodas elétricas e cadeiras de rodas manuais (Para quê seis: duas mais e quatro elétricas? Estas quatro nem foram levantadas.). Tudo isso terá acontecido, a coberto da legalidade, em favor de cada uma das gémeas.

Sendo assim, parece estranho que se fale de alegada especial intervenção do Presidente da República (PR), do filho e da nora (sendo que esta era conhecida da mãe das crianças em causa).

Só não o é, porque adquirir a nacionalidade portuguesa não é processo tão fácil e rápido para todas as pessoas: não residiam em Portugal, não era necessário agrupar a família, não havia iminência de contrato de trabalho para qualquer dos progenitores. Terá alguém, com influência, pressionado o consulado português em São Paulo para o apressamento do processo? A mãe das gémeas, num primeiro momento, apontou a nora do PR, o que veio a desmentir. Caberá a responsabilidade política à tutela ao tempo, designadamente ao ministro dos Negócios Estrangeiros e ou ao secretário de Estado das Comunidades?

O certo é que a primeira consulta, com o respetivo pai, no Hospital de Santa Maria, ainda em dezembro de 2019, ocorreu, tendo as meninas já a dupla nacionalidade (brasileira e portuguesa). Consta que o Infarmed autorizou a utilização do medicamento em tempo recorde e que, segundo revela o Expresso online, a 6 de dezembro do corrente ano, “a informação registada no processo clínico era de que a família se tinha mudado para Portugal para realizar a medicação com o Zolgensma” e que “o tratamento inovador foi então aprovado numa reunião com a direção da Neuropediatria e com e o diretor clínico do hospital”. De acordo com o processo, as meninas foram observadas em consulta no Hospital de Santa Maria, a 2 de janeiro de 2020, na sequência de uma primeira consulta feita com o pai em dezembro anterior. E os médicos escreveram, na história clínica das crianças, que nasceram e residiam em São Paulo, mas já tinham dupla nacionalidade.

As questões que se foram levantando prendiam-se com os altos custos do medicamento e com a dificuldade em atender todos os cidadãos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente crianças portuguesas com o mesmo problema, deixando-se entrever a hipótese de influência política, o que o advogado dos pais das crianças desmente, garantindo que as crianças até esperaram demasiado tempo para serem atendidas e que o tratamento só ocorreu em junho. Além disso, nenhum dos apontados no Brasil conhece o PR, o filho ou a nora.

Alegadamente, terá existido uma carta de médicos do hospital, que terá desaparecido, a contestar o tratamento às gémeas brasileiras, pela incerteza da compatibilidade do novo medicamento com o que fora ministrado no Brasil. Todavia, recentemente, alguém veio a terreiro esclarecer que a carta não visava tanto a não ministração do medicamento, mas a chamada de atenção para o contexto das contas hospitalares.   

Ao ser abordado sobre uma sua eventual intervenção no caso, o PR, num primeiro momento, declarou não se lembrar de qualquer intervenção no caso e que, se tivesse intervindo, obviamente se lembraria. Ora, se não se lembra, é porque não interveio. E, o ver-se incomodado com as insistências de alguma comunicação social, prometeu, não combatendo a liberdade de expressão, ir a tribunal defender a honra do Presidente da República.

Não obstante, a 4 de dezembro, inesperadamente, convocou os jornalistas para o Palácio de Belém, a quem revelou ter mandado examinar a linha do tempo nos registos da Presidência da República e ressalta um e-mail que o filho lhe enviou, em dezembro de 2019, a lamentar que a família das crianças não obtivera resposta nem do Hospital Dona Estefânia, nem do Hospital de Santa Maria. Face ao dito e-mail, o PR deu indicações ao chefe da Casa Civil para que a assessora para os Assuntos Sociais tentasse saber o que se passava. Depois, na posse da informação adequada, o chefe da Casa Civil enviou, a seu pedido, toda a documentação disponível para o chefe de gabinete do primeiro-ministro (PM), como é usual nos muitíssimos casos que são presentes ao chefe de Estado, acabando aí a intervenção da Presidência da República. É natural que não se recordasse, pois aquele foi um período agitado de posse do governo e tinha feito uma operação ao coração.

Questionado sobre a alegada intervenção do filho, respondeu que ninguém tem autoridade, seja filho ou quem for, para falar em nome do presidente; e, se alguém interveio indevidamente, tem de assumir essa responsabilidade. E, quanto a ter condições para continuar a exercer o cargo de presidente, diz que não há qualquer dúvida, reiterando o que dissera em tempo, ou seja, uma coisa é a família e outra é o presidente e quem foi eleito foi ele, não a família.

Porém, as coisas não param no PR, agora equiparado ao antigo ministro Pedro Nuno Santos, que também não se lembrava de ter, alguma vez, autorizado a indemnização de 500 mil euros a Alexandra Reis, mas, passado um mês, ao analisar a linha do tempo no WhatsApp, viu que a autorizara. Só que o ministro já se tinha demitido, mas o PR não tem de renunciar. 

Também a ministra da Saúde ao tempo veio a terreiro atestar a legalidade do tratamento do hospital às gémeas, que não houve qualquer intervenção política para a decisão clínica, que não deu qualquer indicação nesse sentido e que nunca falara com o PR sobre o caso.

Apontado o alegado facto de que a primeira consulta fora marcada por um secretário de Estado da Saúde, Jamila Madeira veio declarar que não se lembra de nenhuma sua intervenção relativa a este caso. E Lacerda Santos, que também não se lembra, diz que é impensável uma intervenção política condicionar a gestão hospitalar ou uma decisão médica. Não obstante, pediu uma relação do processo para ver se houve falha. 

A 6 de dezembro, o PM disse, no Porto, que o chefe de gabinete recebera um conjunto de documentos oriundos da Casa Civil do PR e, como é usual, foram remetidos para os respetivos ministérios, designadamente o Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado das Comunidades.  

Resta saber se houve pressões, de quem e junto de quem, tal como seria bom saber se e como alguém resistiu ou se todos foram na onda do temor reverencial, até porque estava tudo dentro da legalidade. As entidades que têm competência para fiscalizar as questões da saúde estão no terreno. Aguardam-se as conclusões.

No entanto, é estranho que o Ministério Público (MP) tenha avançado com um inquérito contra desconhecidos. Não entendo. As suspeitas recaem administrativamente sobre uma entidade com rosto, o então conselho de administração do centro hospitalar em causa, que tem o direito e devia ter a oportunidade de se defender, bem como o ensejo de apontar eventuais pressões.

Garante-se que nem o PR, nem o PM, nem a ministra, nem qualquer secretário de Estado marcaram qualquer consulta. Isso cabe ao médico, à equipa, ao funcionário ou à gestão de consultas. Contudo, pode haver o “pedido” de alguém, que, não necessariamente, uma unidade de saúde familiar ou um serviço de urgência.

***

Nem tudo o que está previsto num diploma legal é legítimo. Antes da lei, está a ética e a lei fundamental, que mandam aplicar a todos as leis nas mesmas circunstâncias e segundo as necessidades de cada um. Assim, Paulo Morais, presidente da Transparência e Integridade, Ação Cívica (TIAC), defende que a atuação do PR no caso das gémeas luso-brasileiras que receberam tratamento para a atrofia muscular espinal no SNS, configura o que a Transparency International (TI) define por corrupção.

Recordando que a TI apresenta a corrupção como “o abuso de poder delegado para benefício privado”, o professor na Universidade Portucalense, que foi candidato presidencial em 2016, acusa o PR de “destruir qualquer funcionamento de um Estado normal”, ao “meter uma cunha” pelas crianças residentes no Brasil que receberam tratamento para a doença neurodegenerativa em 2020.

“Não compete ao Presidente da República tratar de casos individuais”, vinca, referindo-se ao facto, assumido por Marcelo Rebelo de Sousa, de ter reencaminhado para a Casa Civil da Presidência da República e para a assessora para os Assuntos Sociais um e-mail do filho, onde se dava conta de que os pais das gémeas luso-brasileiras se queixavam de não terem obtido resposta do Hospital de Santa Maria, ao solicitarem o tratamento com o medicamento Zolgensma, um dos mais caros do Mundo. E o Palácio de Belém reencaminhou documentação sobre a situação clínica das crianças para os chefes de gabinete do primeiro-ministro e do secretário de Estado das Comunidades.

Paulo Morais defende, em declarações ao Diário de Notícias (DN), a 6 de dezembro, que qualquer “pedido de informação sobre doentes, alunos ou contribuintes individuais” tem o condão de “transformar a Presidência da República num alfobre de cunhas institucionalizado”.

Para o presidente da TIAC, o caso das gémeas luso-brasileiras pode representar um ponto de viragem no segundo e último mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. “O Presidente dos afetos acabou”, sentencia o professor, antecipando que o chefe de Estado possa vir a ser criticado na rua por quem acredite que “andou a tratar dos interesses dos amigos e dos familiares”, uma “atitude nada republicana”, que acaba por contribuir para uma “degradação da política”, quando a confiança dos Portugueses nas instituições “está abaixo de qualquer nível”.

Apesar de tudo, Paulo Morais sustenta que as situações que envolvem o PR e o PM “são diferentes”. No caso do PM, há a detenção do chefe de gabinete por suspeitas de envolvimento num caso de corrupção: “Se se verificar que houve efetivamente cunha e que quem meteu a cunha foi, por exemplo, o chefe da casa civil ou um assessor, o Presidente terá de fazer o mesmo que fez António Costa e apresentar a demissão.” Com efeito, “ele é responsável por tudo o que faz o chefe da casa civil. São pessoas que falam em nome dele. Uma coisa é uma secretária ou um adjunto qualquer. Outra coisa é um chefe de gabinete”, lembra o especialista, vincando que, “primeiro, há que ver se houve cunha ou não” e, se se confirmar que houve “e tiver sido de alguém próximo do presidente, ele terá de tirar as suas ilações”.

Luís de Sousa, investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa na área do combate à corrupção, também lembra que o PR “já veio negar” qualquer envolvimento no caso das gémeas e que não há sobre ele qualquer suspeita concreta ou qualquer investigação. Por isso, Marcelo Rebelo de Sousa “tem de continuar a fazer aquilo que são as suas funções, independentemente de o contexto lhe ser ou não favorável”, assim como o PM não pode parar, apesar de ter apresentado a demissão. “Se houver expediente que tenha de ser resolvido, ele tem de o resolver. As instituições não podem deixar de exercer as suas funções”, considera.

***

No entanto, descansemos. O Parlamento vai ser dissolvido, haverá eleições, novo Parlamento, novo governo e novas preocupações. E as gémeas serão esquecidas!

2023.12.06 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário