terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Que dizer da mensagem primeiro-ministro no Natal de 2023?

 

Obviamente não gostei, nem creio que alguém tenha gostado. Porém, nas atuais circunstâncias políticas era difícil o primeiro-ministro (PM) formalmente demissionário (já estava demissionário de facto desde 7 de novembro) – com um Parlamento, onde o seu partido tem maioria absoluta, estar sob o látego da agenda de dissolução e conhecendo-se já o seu sucessor na liderança partidária – enviar ao país uma mensagem política realista.

Se António Costa tivesse enveredado pela via do discurso programático, seria acusado de propaganda eleitoral e de tirar o protagonismo ao sucessor de partido. Se tivesse começado a elencar os projetos deixados a meio ou até em intenção, estaria a vitimizar-se ou seria a carpideira do velório em que o prostraram alguns dos correligionários e amigos, incluindo, no rol destes últimos, o chefe de Estado, que lhe reconhece competência para o exercício de qualquer cargo em Portugal e na Europa, e os promotores de justiça, a quem não quis incomodar, sob o lema “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”. Se tivesse elencado, em concreto, os erros cometidos, uns reconhecer-lhe-iam humildade, mas outros acusá-lo-iam de não acreditar no que estava a fazer, governando ao sabor da maré. Por outro lado, disparar em todas as direções responsabilidade e culpas pelo estado atual do país, impeditivas de boa governação, seria deselegante nesta época de Natal, sobretudo por estar à beira de precipitado fim de mandato.  

Assim, optou – mal ou bem – por elencar alguns dos méritos dos Portugueses no enfrentamento de várias crises e na capacidade de resiliência do povo, bem como por exprimir confiança e apelar a ela, na convicção de que, juntos, somos capazes de resolver todos os problemas.

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Não obstante, António Costa despede-se cheio de confiança: “Temos muito trabalho em curso que não podemos parar”, disse.

Na sua última mensagem de Natal como chefe de governo lembrou algum do trabalho feito e indicou rumo a seguir, vincando a confiança no futuro, em Portugal e nos Portugueses

Confiança e otimismo são palavras que o PM gosta de usar, configurando uma atitude constante do político que, agora, chega ao fim de uma fase relevante da sua vida política.

Na breve mensagem de Natal, divulgada na noite de 25 de dezembro, foi pródigo no uso da palavra “confiança”, lembrando alguns dos sucessos governativos, dando três razões para a sua confiança nos Portugueses e no país e indicando que é preciso continuar pelo mesmo trilho.

Temos muito trabalho em curso, que não podemos parar”, afirmou o PM, assinalando o seu nono e último Natal como PM, como que a indicar, discretamente, o futuro e a traçar o caminho a quem lhe suceder. Há um ano, com a guerra em curso na Europa, mas com a maioria absoluta recém-conquistada, “confiança” foi a palavra forte da sua mensagem. E nem a guerra em curso no Médio Oriente, nem a interrupção da maioria absoluta, devido a um processo judicial em que é suspeito lhe quebraram a confiança que diz ter no futuro e nos Portugueses. “Não desistimos de continuar a melhorar o que há que melhorar, de fazer o que está por fazer, de sonhar e continuar a construir um país melhor”.

Sem os especificar, reconhece que há “problemas que ainda temos de ultrapassar”, mas sustenta que “terá de haver sempre força e determinação para os enfrentar”, não podendo parar no “muito trabalho”. “Perante as adversidades temos o dever de ser persistentes e de nunca desistir. E é por isso que a mensagem que vos quero deixar é, mais uma vez, uma mensagem de confiança”, afirmou António Costa, vincando que, nestes oito anos, partilhou com os Portugueses “momentos muito diversos: momentos de profunda tristeza e de enorme incerteza, mas, também, momentos de esperança e de grande alegria”. Recordou as angústias de pandemia e a tragédia dos incêndios, mas desfiou os seus sucessos: “Temos conseguido mais e melhor emprego; diminuímos a pobreza e reduzimos as desigualdades; recuperámos a tranquilidade no dia a dia das famílias; juntos, temos atraído mais investimento das empresas e conquistado mais exportações; repusemos direitos e equilibrámos as contas públicas.”

As contas públicas ocuparam boa parte da mensagem, com o PM cessante a congratular-se por Portugal ter conseguido “libertar-se de décadas de crónicos défices orçamentais”. Foi com os seus governos, primeiro, com Mário Centeno e, agora, com Fernando Medina, que foram alcançados excedentes. “Foi essa libertação que nos tem permitido reduzir a nossa dívida pública”, argumentou, respondendo a quantos o acusam de conseguir esses resultados, devido à enorme carga de impostos. “Não foi assim”, disse António Costa. “Fizemo-lo com base no crescimento económico, na valorização dos rendimentos daqueles que trabalham e daqueles que vivem das suas pensões”, afirmou, defendendo que ter “menos dívida significa maior credibilidade externa, mas significa, acima de tudo, maior liberdade para os Portugueses”.

A “liberdade de escolher como utilizar o que se poupa no serviço da dívida” é um dos seus motivos de orgulho e uma das razões que invoca para a confiança no futuro e que inclui a “confiança de que vamos continuar a convergir com os países mais desenvolvidos da União Europeia”.

Porém, a razão mais importante para o PM ter confiança nos Portugueses é a que implica a recuperação de outro défice. “O nosso nível de qualificações aproxima-se dos melhores padrões europeus. Recuperámos um défice que tinha séculos. E esta recuperação deve-se ao extraordinário esforço das famílias, dos jovens e, de forma persistente, das políticas públicas nas últimas duas décadas”, disse, lembrando que “o abandono escolar precoce caiu para valores claramente abaixo da média europeia, o número de jovens no ensino superior ultrapassou essa média europeia”.

“No conjunto da população ativa, em duas décadas, triplicámos o número das pessoas que concluíram o ensino secundário. É esta mudança estrutural na nossa sociedade que nos permite ter um novo modelo de desenvolvimento assente no conhecimento, na inovação e que rompe com um modelo do passado de baixos salários, abrindo perspetivas de empregos com futuro para as novas gerações”, salientou. E isto é verdade, digo eu, a que se contrapõem realidades negativas.

A outra razão para a “confiança” do ainda PM no futuro é a capacidade que acredita deixar a Portugal para enfrentar a crise do clima. “Combater as alterações climáticas é o maior desafio da nossa geração e Portugal é o país da União Europeia em melhores condições para alcançar a neutralidade carbónica até 2045”, frisou, orgulhando-se de deixar o país com capacidade para produzir, com origem em renováveis, 63% da eletricidade que consome, subindo essa capacidade para 80%, até 2026, que seria o ano do fim desta legislatura, agora interrompida.

Costa não chega a 2026 como PM, mas garante que, nestes anos, reforçou a sua confiança nos Portugueses. E conclui: “É com esta confiança reforçada em cada um de vós, na nossa capacidade coletiva, em Portugal, que me despeço desejando um feliz Natal, um excelente ano de 2024 e a certeza de que os Portugueses continuarão a fazer de cada ano novo um ano ainda melhor.”

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A reação dos partidos foi imediata. Desde logo, Paulo Rangel, vice-presidente do Partido Social Democrata (PSD), também porfiou a confiança nos Portugueses, mas condicionou-a à mudança resultante do 10 de março de 2024, como o término da governação do Partido Socialista (PS). Com efeito, na sua ótica, “estes oito anos trouxeram-nos a uma situação de impasse”. O PM elogiou os progressos nas qualificações, mas estão “os alunos sem professores” e “os professores sem qualquer incentivo” (já não é bem assim).

O PSD criticou a referência do PM às contas certas, atirando que “foram alcançadas com base na destruição, abandono e desistência sistemática dos serviços públicos”. Além disso, frisou que, na mensagem de Natal, faltou “uma palavra” para os profissionais de saúde, para os sem-abrigo, para os que se confrontam com a crise na habitação e para o aumento da pobreza e do risco de pobreza, especialmente neste último ano e meio.

André Ventura, presidente do Chega, disse que António Costa “consegue, na sua última mensagem, falhar os dois tópicos principais que era importante tratar e a olhar para o futuro: a crise das instituições e a confiança na justiça, que levou ao fim do seu governo, e o profundíssimo sistema degradado em que a nossa saúde se encontra”. O PM revelou uma “profunda incapacidade de fazer um exercício de autorresponsabilidade, um juízo crítico de autorresponsabilização”.

No entender de Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal (IL), esta foi “uma mensagem que encerra um capítulo”, sendo o fundamental “transmitir confiança e esperança num Portugal diferente”. O PM não falou do essencial: a crise na habitação, os baixos rendimentos, a classe média asfixiada por rendimentos baixos e por impostos altos, degradação das instituições e dos serviços públicos (saúde, educação, transportes e justiça). Sobre isto, no dizer da IL, não houve uma palavra. Só se aproveita o autoelogio, o que António Costa tem feito sempre ao longo destes oito anos.

“Nesta última mensagem de Natal, o primeiro-ministro não fez nenhuma referência aos problemas que as pessoas enfrentam em Portugal, problemas que foram agravados com a maioria absoluta, apesar de ter tido todas as condições políticas e recursos extraordinários”, afirmou Marisa Matias, do Bloco de Esquerda (BE). Para o BE, a maioria absoluta “foi um tempo intranquilo”, marcado pelo “rodopio de ministros” e por um “sobressalto permanente” na vida das pessoas, com a crise da habitação e os problemas sentidos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) A estes dois temas centrais, segundo Marisa Matias, o PM não fez qualquer referência, antes fugiu deles.

Para o dirigente comunista Jaime Toga, o PM fez “uma declaração que não bate certo com a vida das pessoas”. Falou de contas certas, mas não do “desacerto das contas da vida das pessoas”.

Inês Sousa Real, do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), disse que “foi uma oportunidade perdida e desperdiçada”. E defendeu a importância de discutir soluções em vez de centrar a discussão nas coligações que será possível fazer. “É fundamental que, ao invés de perdermos tempo a discutir entre a esquerda e a direita e qual vai ser a solução para o país, se uma coligação à esquerda ou à direita, que estivéssemos a discutir aquilo que é a visão e o projeto de país que queremos de facto para Portugal”, afirmou, sublinhando a falta dos temas “saúde” e “habitação”.

Em defesa e elogio do ainda PM só saiu o PS, com João Torres, secretário-geral adjunto do partido e vice-presidente da sua bancada parlamentar, a prometer continuar “o legado” de oito anos de governo de António Costa e a qualificar de “maledicência” as reações da oposição. Foi uma “mensagem de grande lucidez, mas também de grande esperança no futuro”, propondo-se o PS continuar este trabalho, a desenvolver “este legado” e “a trabalhar com base na estabilidade, na previsibilidade e na segurança que os Portugueses exigem dos políticos”, disse o deputado.

O deputado disse que António Costa “entregará um país inquestionavelmente melhor do que aquele que encontrou no final de 2015”. E, em resposta a toda a oposição, que criticou a mensagem, por alegadamente descolar da realidade, João Torres afirmou: “Ao longo do último ano e meio, [a oposição] está hoje especializada na maledicência.”

É verdade, mas é o papel da oposição criticar o governo. Contudo, não deveria omitir os dados positivos relevantes da governação, que desliza “sempre” sobre o fio da navalha.

Enfim, da direita à esquerda, todos os dirigentes que falaram vincaram o que dizem julgar ser um afastamento da realidade por parte do PM, que emitiu a última mensagem de Natal nestas funções.

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Percebo a postura cordata do PS, mas não sei se o discurso delicodoce em torno do legado de Costa não contém um ingrediente que lhe dá cor de vazio e de amargo. O caso não será para menos, mas falta chama ao discurso, talvez por causa da mediocridade e da insensatez que se instalaram na órbita do governo. Acontece em todos os partidos ditos da governação, mas a este o escrutínio formal e informal não deu tréguas e só vê nuvens negras no horizonte.

2023.12.26 – Louro de Carvalho

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