terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Fim do acordo com brasileiros dá ações contra Ordem dos Advogados

 

Na sequência de reunião de 7 de março de 2023, a pedido do Conselho Geral da Ordem dos Advogados (OA), entre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a congénere portuguesa, representadas pelos bastonários, para discutirem a revisão do acordo de reciprocidade, o Conselho Geral da OA deliberou, por unanimidade, fazer cessar o regime de reciprocidade com a congénere brasileira, tomada de posição com efeitos a partir de a 5 de julho, mas sem afetar os processos de inscrição de advogados que se encontrassem em curso, à data. Entre os motivos apontados, estão a diferença na prática jurídica em Portugal e no Brasil e as queixas recebidas.

“Sem embargo do espírito de cooperação e amizade que pontifica nas relações entre as duas ordens profissionais, perante a gravidade das questões identificadas e amplamente conhecidas, bem como pela especial repercussão social que delas decorre, designadamente, no que se refere à garantia de uma efetiva proteção dos interesses legítimos dos cidadãos de ambos os países, deliberou o Conselho Geral da OA, reunido em sessão plenária do dia 3 de julho de 2023, por unanimidade dos presentes, fazer cessar o regime de reciprocidade de inscrição de advogados atualmente em vigor”, lia-se no site oficial.

O regime de reciprocidade permitia a inscrição na OA em Portugal de um advogado brasileiro, sem que este tivesse de realizar um estágio ou a prova de agregação, e vice-versa.

Embora haja uma matriz de base comum aos ordenamentos jurídicos de ambos os países, em Portugal têm sido adotadas opções legislativas muito distintas das implementadas no Brasil, até por força da aplicabilidade e da transposição para o direito interno português do direito da União Europeia (UE), o que tem contribuído para que “ambos os ordenamentos jurídicos se afastem e tenham evoluído em sentidos totalmente diferentes”. Assim, a OA considerou que as normas jurídicas atualmente em vigor em alguns ramos do Direito num e noutro ordenamento jurídico “já não são sequer equiparáveis”.

“É do conhecimento geral que existe uma diferença notória na prática jurídica em Portugal e no Brasil, e bem assim dos formalismos e plataformas digitais judiciais, sendo efetivo o seu desconhecimento por parte dos advogados brasileiros e portugueses quando iniciam a sua atividade em Portugal ou no Brasil, verificando-se que ocorre, por isso mesmo, a prática de atos próprios de advogado de elevada complexidade técnica, por quem não dispõe da necessária formação académica e profissional, no âmbito dos ordenamentos jurídicos português e brasileiro”, justifica a OA, que sublinha as “sérias” e “notórias” dificuldades na adaptação dos advogados brasileiros ao regime jurídico portuguêsà legislação substantiva e processual e às plataformas jurídicas em uso corrente, “o que faz perigar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses e, de forma recíproca os dos cidadãos brasileiros”.

Sobressaem, segundo a OA, as inúmeras queixas que, recentemente, lhe foram transmitidas atinentes à utilização indevida do regime de reciprocidade em vigor, o qual só deverá produzir efeitos no âmbito da inscrição como advogado nas respetivas ordens profissionais e não para a obtenção de registo ou inscrição junto de outras OA ou associações profissionais equiparadas de outros Estados-membros da UE, que não são, nem nunca foram, parte deste acordo.

A OAB reagiu, de imediato, e mostrou-se “surpreendida” com a decisão. Em declarações ao jornal “O Globo” apontou “discriminação” e “mentalidade colonial”, admitindo que iria lutar pelos direitos dos brasileiros. “Estava em curso um processo de diálogo iniciado há vários meses com o objetivo de aperfeiçoar o acordo. A OAB, durante toda a negociação, opôs-se a qualquer mudança que validasse textos imbuídos de discriminação e preconceito contra advogadas e advogados brasileiros. A mentalidade colonial já foi derrotada e só encontra lugar nos livros de História, não mais no dia a dia das duas nações”, referiu a OAB.

Porém, logo a 5 de julho, em declarações à Lusa, Fernanda de Almeida Pinheiro, bastonária da OA lamentou os “comentários infelizes” de Beto Simonetti, bastonário da OAB, que sustentou que “a mentalidade colonial já foi derrotada e só encontra lugar nos livros de história”, falando em discriminação e preconceito contra profissionais brasileiros na revisão do acordo de reciprocidade. “Não há aqui nenhum colonialismo, arbitrariedade ou xenofobia”, afirmou a bastonária, justificando a quebra unilateral: “A legislação brasileira e a legislação portuguesa são completamente diferentes. Há muitos anos que vimos sentindo essa preocupação. Não é correto nem pode ser política de uma Ordem permitir que possam estar a exercer a profissão pessoas que não estejam técnica e juridicamente qualificadas para o efeito.”

Almeida Pinheiro referiu que “o acordo estava a ser utilizado de forma distorcida” por advogados brasileiros, que, detentores de cédula profissional portuguesa, procuravam outros países da UE para exercer advocacia: “Em momento algum, este acordo, que é de reciprocidade entre Portugal e Brasil, pode ser usado para exercer na UE.”

A bastonária negou que o homólogo brasileiro se tivesse oposto a qualquer mudança no acordo de reciprocidade, ao longo das conversações efetuadas nos últimos meses. “Essa comunicação da OAB não corresponde à verdade. Nunca o presidente da OAB disse que era contra a alteração do regime. Vir dizer publicamente que sempre foram contra isto é completamente falso”, frisou, criticando a postura de Simonetti, que, tendo uma reunião agendada com a OA para o dia 26 de junho, segundo Almeida Pinheiro, avisou, à meia-noite desse dia, que não poderia vir e alegou, dois dias depois, que não poderia assinar um entendimento já estabelecido em maio.

Recusando ser conivente com um acordo que entende não estar a respeitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e empresas e a “dignidade da advocacia” nos dois países, a bastonária assegurou que a denúncia do acordo não tem efeitos retroativos. “A única coisa que vai deixar de acontecer é esta exceção absoluta para os advogados brasileiros. Passa a ser uma regra igual para toda a gente”, concluiu. Ganha mais uns pontos o corporativismo interno!

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As conversações entre as instituições decorreram entre o mês fevereiro e o mês de junho de 2023. Apesar de admitir que têm mantido um diálogo aberto com a Ordem brasileira, a OA diz que, segundo informação que lhe foi remetida por e-mail, a 28 de junho de 2023, a OAB afirmou “não dispor de condições para poder proceder às alterações do atual regime de reciprocidade [e que mereceram o acordo de ambas as instituições a 23 de maio], nem no imediato, nem dentro de um prazo considerado por este como razoável”.

Cerca de 10% dos advogados registados em Portugal são brasileiros. Dados avançados, em dezembro de 2022, pela OA revelam que, de cerca de 34 mil profissionais inscritos, 3173 são brasileiros. Desses, quase 60% estão concentrados na região de Lisboa. Um aumento de quase 482%, já que, em 2017, eram apenas 536 os advogados brasileiros em Portugal. Em 2019, estavam inscritos 2270 brasileiros no total.

O acordo que existia entre a OA e a OAB favorecia a migração destes profissionais para Portugal, relativamente a outros. A reciprocidade entre Portugal e Brasil passou a constar no estatuto da OA, em dezembro de 2015. Atualmente, existem quase dois mil advogados nascidos em Portugal e que estão a exercer a profissão na Justiça brasileira.

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Entretanto, cinco meses depois, a Associação dos Advogados Estrangeiros em Portugal (AEEP) avançou com mais de 50 ações judiciais (53 ao todo) contra a OA – e o número continuará a crescer –, para exigir a nulidade da decisão.

Questionada pela Advocatus (secção do jornal ECO online), Jennifer Dallegrave, presidente da AEEP frisou que o número de ações judiciais intentadas contra a OA vai crescer. “Fui levantar o número atualizado. São 53 e a crescer… no tribunal administrativo e fiscal de Lisboa” referiu.

As ações visam o reconhecimento, pelos tribunais portugueses, da ilegalidade da revogação do acordo que, segundo a vice-presidente da AEEP, Kissila Valle, só podia acontecer por vontade legislativa da Assembleia da República (AR), e não por decisão unilateral de uma das partes.

Por sua vez, a OA diz que a decisão é legítima e irá defender-se em tribunal. “Realçamos que atualmente nenhum advogado brasileiro se encontra impedido de se inscrever na OA, podendo fazê-lo nos mesmos termos que qualquer outro advogado estrangeiro oriundo de país fora da UE, sendo totalmente bem-vindo pela OA, desde que cumpra os requisitos necessários”, refere.

João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA, explicou que a estrutura a que preside segue a decisão do Conselho Geral e não aceita advogados brasileiros. “Quanto aos outros Conselhos Regionais não sei o procedimento, mas o Conselho Regional de Lisboa não está aceitar inscrições, pois tal só criaria falsas expectativas, uma vez que o Conselho Geral, de acordo com o comunicado, indeferirá”, justificou.

Para a AEEP, a decisão em relação à inscrição de cerca de 100 advogados brasileiros “vem sendo arrastada pelos Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados portugueses, violando assim direitos fundamentais destes advogados brasileiros”, e “o protelar destes processos” explica-se com a vontade de aguardar pelo novo enquadramento jurídico das ordens profissionais.

O ponto final do regime de reciprocidade entre as duas ordens levanta a dúvida se a OA terá legitimidade para fazer cessar o acordo. Os advogados contactados pela Advocatus dizem que não. “Sendo a matéria de Associações Públicas reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea s) da Constituição da República Portuguesa, apenas a Assembleia da República poderá pôr fim ao regime de reciprocidade entre os advogados brasileiros e os advogados portugueses”, explicou Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha Ecija. Porém, o governo pode legislar sobre a matéria sob autorização da AR.

advogada referiu que as competências da OA, neste âmbito, se limitam a elaborar proposta de regulamento de registo e inscrição dos advogados provindos de outros Estados. Esta regulamentação consta dos artigos 17.º e seguintes do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários aprovado em Assembleia Geral da OA de 21 de dezembro de 2015.

Apesar de a OA ter competência para alterar o Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, no atinente à inscrição de advogados brasileiros, e até alterar ou fazer cessar o Acordo de Reciprocidade, tais competências são “meramente regulamentares”. “O que significa que está vedado a quaisquer dos seus órgãos cessar ou esvaziar o regime de reciprocidade imposto pelo n.º 1 do artigo 201.º dos Estatutos da Ordem dos Advogados, seja pela alteração ao Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, seja pela alteração ou cessação do Acordo de Reciprocidade”, esclareceu a advogada.

Convenhamos que esta argumentação é equívoca: ou a OA tem competência ou não tem. E, se a competência inscrita nos regulamentos contraria o Estatuto, é ilegal.

Também António Sarmento de Oliveira, da SPCB LEGAL, sustenta que a cessação deste regime de reciprocidade só pode ser estipulada por ato legislativo, por envolver alteração dos Estatutos. “Coisa diversa será a alteração das condições dessa reciprocidade, maxime as previstas no artigo 17.º do ‘Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários’, que estabelece que os advogados brasileiros que tenham formação superior realizada no Brasil ou em Portugal possam inscrever-se, com dispensa da realização de estágio e da obrigatoriedade de realizar prova de agregação na OA Portuguesa”, explicitou.

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O regime de reciprocidade em causa não foi revisto, mas eliminado ou esvaziado de sentido. Aliás, está subjacente o intuito da OA, como insinua a AEEP, de alterar os Estatutos dos Advogados. Porém, terá sido essa a causa do veto presidencial do diploma? Parece que as causas têm que ver mais com a definição dos atos próprios e com a formação. Guerrilhas de nada!  

2023.12.26 – Louro de Carvalho

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