sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Faleceu o egrégio promotor do Mercado Único Europeu e do Euro

 

A 27 de dezembro de 2023, com 98 anos de idade, na sua residência em Paris, na França, faleceu Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia. E o presidente francês lamenta a perda do “estadista” e “arquiteto inesgotável” da Europa.

Jacques Lucien Jean Delors liderou o órgão executivo da União Europeia (UE) num período crucial para o desenvolvimento do projeto europeu (1985-1995), durante o qual foi concretizado o Mercado Único e foram lançadas as bases para a introdução do euro, em substituição das moedas nacionais, nos Estados-membros que aderiram à nova moeda, a pretensa moeda única.

Martine Aubry, filha de Jacques Delors (que, em 2008, foi eleita primeira secretária do Partido Socialista Francês) e presidente da Câmara de Lille, declarou à agência France Presse (AFP) que o pai “morreu esta manhã [27 de dezembro] na sua casa em Paris, enquanto dormia”.

Figura da construção do projeto europeu e considerado o “pai do euro”, Delors foi presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995 – mais tempo do que qualquer outro titular do cargo (tendo em conta o total de dias de desempenho). Através de nota do gabinete do primeiro-ministro, o governo português informou decretar um dia de luto nacional, sendo a data “fixada oportunamente, por coordenação europeia ou no dia do funeral”.

Nascido em Paris em 1925, licenciou-se em economia, na Sorbonne, e, em 1945, após a II Guerra Mundial, seguiu o pai numa carreira no Banco de França, de 1945 a 1962. Depois, tornou-se membro do Conselho Económico e Social e chefe de serviço dos Assuntos Sociais no Comissariado Geral do Planeamento, até 1969.

Sindicalista católico, aderiu ao Partido Socialista Francês (PSF) nos anos 1970. Foi membro do gabinete do primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas, de 1969 a 1972, como encarregado dos assuntos sociais e culturais e das questões económicas e financeiras. De 1974 a 1979, foi professor associado da Universidade de Paris-Dauphine. Após dois anos no Parlamento Europeu (PE), onde chefiou a Comissão dos Assuntos Económicos, foi ministro das Finanças, da Economia e do Orçamento do presidente François Mitterand, entre 1981 e 1984, tendo sido também presidente da Câmara de Clichy, de 1983 a 1984.

Como presidente da Comissão Europeia, a partir de 1985, estava convicto da necessidade de criar laços económicos e monetários mais profundos entre os Estados-membros da Comunidade Europeia. Estabeleceu os compromissos para a criação, em 1993, do mercado único europeu, uma das realizações mais importantes da UE, como destaca a Reuters.

Supervisionou um período de rápido alargamento, com a Comunidade Europeia de dez membros a aumentar para 12, com a adesão, em 1986, de Espanha e Portugal e, em 1995, da Suécia, da Áustria e da Finlândia.

Foi autor e organizador do relatório, para a UNESCO, da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, intitulado: “Educação, um Tesouro a descobrir” (1996), em que se exploram os Quatro Pilares da Educação (aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser). E, na década de 2000, foi também Presidente do Conselho de Emprego, de Receitas e da Coesão Social (CERC).

Nome incontornável da esquerda francesa, Delors frustrou as expectativas dessa ala partidária, ao recusar apresentar-se às eleições presidenciais de 1995, em França, apesar de as sondagens o darem como favorito. “Não me arrependo”, afirmou à revista “Le Point”, em 2021. “Estava demasiado preocupado com a independência e sentia-me diferente dos que me rodeavam. A minha forma de fazer política não era a mesma”, referiu.

Um outro motivo que o levou a declinar o convite para uma candidatura presidencial  foi não interferir na carreira política da sua filha Martine Aubry.

Manteve-se preocupado com as questões europeias, criando o Notre Europe ou The Jacques Delors Institute, o seu próprio grupo de reflexão, e apoiando grupos dedicados ao federalismo. Durante a crise da dívida europeia de 2010-2013, falou frequentemente sobre a convicção na moeda única, embora reconhecendo os defeitos enquanto projeto lançado com forte vontade política, mas com uma base económica insuficiente. E, em março de 2020, apelou aos chefes de Estado e de Governo da UE a que demonstrassem maior solidariedade, numa altura em que se debatiam para conseguir uma resposta comum à pandemia de covid-19.

O Presidente francês, Emmanuel Macron, prestou homenagem ao “estadista”, numa publicação na rede social X (antigo Twitter). “Arquiteto inesgotável da nossa Europa. Um lutador pela justiça humana. Jacques Delors foi tudo isto. O seu empenho, os seus ideais e a sua retidão inspirar-nos-ão sempre. Saúdo a sua obra e a sua memória e partilho a dor da sua família”, escreveu.

A presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, reagiu na rede social X: “Com a morte de Jacques Delors, a UE perdeu um gigante. Último cidadão honorário da Europa, trabalhou incansavelmente como presidente da Comissão Europeia e membro do Parlamento Europeu em prol de uma Europa unida. Gerações de europeus continuarão a beneficiar do seu legado.”

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, salientou que Jacques Delors “liderou a transformação da Comunidade Económica Europeia numa verdadeira União, fundada em valores humanistas e apoiada por um mercado único e uma moeda única, o euro”. “Foi um defensor apaixonado e prático da Comunidade até aos seus últimos dias. Grande francês e grande europeu, ficará na história como um dos construtores da nossa Europa”, realçou na rede social X.

Em comunicado, a presidente da Comissão Europeia recordou a “obra de vida”, assente numa UE “dinâmica e próspera”. Ursula von der Leyen elogia o “defensor incansável da cooperação entre as nações europeias e, posteriormente, do desenvolvimento da identidade europeia”, com “inteligência notável e uma humanidade sem paralelo”.

O chanceler alemão Olaf Scholz enalteceu-o enquanto “visionário”. “Jacques Delors defendeu a unificação europeia como ninguém: durante uma década, dirigiu a Comissão Europeia e, como visionário, tornou-se o construtor da UE como a conhecemos hoje”, afirmou na rede social X.

Também em Portugal têm sido várias as reações. Na mesma rede social X, o primeiro-ministro diz que a Europa perdeu “um dos maiores vultos da sua história contemporânea”. António Costa lembra que Delors, “um dos grandes impulsionadores da integração europeia, foi também e sobretudo um grande amigo de Portugal”.

O Presidente da República recorda-o como “grande mentor da evolução das Comunidades para uma União Europeia”, que encarna “a própria construção europeia”. “É um Homem com letra grande que nos deixou hoje”, refere, em nota divulgada na página da Presidência da República.

“Com a morte de Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia com quem tive a honra e o prazer de colaborar em tantas ocasiões, a Europa perdeu um dos seus mais extraordinários líderes. Alguém que combinava os ‘pequenos passos’ da integração europeia com o ideal de uma Europa unida”, declarou José Manuel Durão Barroso, antigo presidente da Comissão Europeia (2004-2014), em nota enviada à Lusa.

O presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, sublinha que Delors “marcou a história da Europa e a História de Portugal”. “Como antigo comissário europeu e vice-presidente do Delors Institute, apresento as minhas condolências à família Delors”, escreveu na rede social X.

“Jacques Delors é um dos grandes construtores da Europa. A Europa que sonhou e por que se bateu: a Europa social, a Europa da coesão, em que o crescimento económico e a justiça social formam um par. Obrigado!”, agradeceu o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na mesma rede social.

Os que trabalharam com Delors recordam um homem com inesgotável energia e dinamismo. Outros descrevem o homem pequeno e elegante como alguém capaz de aplicar “rudeza, delicadeza, perspicácia e habilidade diplomática”, tudo ao mesmo tempo, escreveu a Reuters.

“Não me escondo. Cometo erros, perco a paciência. Mas as pessoas dizem: ‘aquele tipo é humano’. Nunca serei um grande político, porque não consigo preocupar-me com a minha imagem”, disse de si próprio aquele que fez aprovar o Ato Único Europeu, em 1986, o qual levou à criação do Mercado Único Europeu, que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1993. 

“Foi protagonista na transformação da Comunidade Europeia em União Europeia (UE), encaminhando as nações da Comunidade para a moeda única e para uma maior cooperação ao nível da defesa”, refere a página “online” do Centro de Informação Europeia Jacques Delors.

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O constitucionalista Vital Moreira, que foi eurodeputado, de 2009 a 2014, e, nessa condição, presidente da Comissão de Comércio Internacional, sustenta que Delors, “depois dos ‘pais fundadores’ da integração europeia”, foi, como presidente da Comissão Europeia, “um verdadeiro refundador do que veio a ser a União Europeia”, no campo económico (mercado único, união económica monetária e euro), no campo social (protocolo social de 1992, instrumentos da coesão económica e social) e na integração política, “com a cidadania europeia e os direitos humanos, o avanço na democracia representativa (PE) e os novos ‘pilares’ da PESC (Política Externa e de Segurança Comum) e do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Sem a sua visão e impulso político, não teria existido o Tratado de Maastricht, de 1991, “que marca uma autêntica mudança de natureza da União, sum sentido parafederal”.  

Mais: “contribuiu, decisivamente, para levar a França a aceitar a ideia de soberania partilhada com a Alemanha e demais Estados-membros da União, tornando o eixo Paris-Berlim no verdadeiro motor da integração”. Ajudou a “conciliar a esquerda social-democrata europeia” com “a integração europeia” e com “a economia de mercado”, mercê da “junção das dimensões social e política à integração europeia”, até aí votada apenas à conclusão de um ‘mercado comum’. E, nesse aspeto, “lançou as bases dos passos seguintes do aprofundamento da integração europeia, tanto enquanto ‘Europa social’ (Tratado de Amesterdão) como enquanto ‘Europa política’ (Tratado de Lisboa)”.

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Na verdade, é justo celebrar a memória do homem que relançou a União Europeia (UE), a partir da Comunidade Económica Europeia, e que, depois de sair do cargo de presidente da Comissão Europeia continuou a trabalhar ativamente pelos valores europeus. E, mais do que isso, postula que a UE desenvolva, em termos de partilha e de solidariedade, projetos comuns em todas as áreas vitais; que seja mais federação de Estados soberanos, em vez de coleção de entidades nacionalistas e egoístas; que seja menos Europa de burocracia condicionante dos Estados-membros e mais Europa de cidadãos e de Estados democráticos e sociais; que ultrapasse as malhas do atraente neoliberalismo asfixiante da cidadania; e, sobretudo, que trave o combate duro contra o capitalismo financeiro, sem rosto, que diminui ou anula a capacidade interventiva dos poderes políticos e gera o desprezo dos valores inerentes à dignidade da pessoa humana e à sã convivência.

2023.12.29 – Louro de Carvalho

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