domingo, 17 de dezembro de 2023

Como age e comunica o Ministério Público?

 

A 14 de dezembro, em entrevista ao Jornal de Notícias (JN), Rui Rio, ex-líder do Partido Social Democrata (PSD), defendeu que a procuradora-geral da República deveria sair, disse discordar da dissolução da Assembleia da República (AR) e alertou para a necessidade de esclarecimento total no caso das gémeas.

Efetivamente, Lucília Gago sabia ou devia saber que a inclusão, num comunicado de imprensa da Procuradoria-Geral da República (PGR) de parágrafo que revelava o curso de um inquérito ao primeiro-ministro (PM) no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por ser esse o foro competente, levaria à demissão do governo, pelo que não pode lavar as mãos como Pôncio Pilatos, dizendo que não foi responsável por nada e que o Ministério Publico (MP) tem de investigar sempre que haja suspeitas. O problema não está em investigar, mas na forma como o faz e como o comunica.

Ora, se as suspeitas não são sustentadas (surgiram de referências ao PM por parte de outros inquiridos no processo), embora a investigação devesse prosseguir, o facto não deveria ter sido publicitado até as suspeitas, eventualmente, terem consistência.

Quanto à discordância de Rui Rio, relativamente à dissolução da AR, é de toda a justiça reconhecer-lhe a razão. Com efeito, as eleições legislativas não gravitam em torno dos líderes dos partidos, mas dos partidos, pelo que o líder pode ficar impedido, renunciar, ser deposto no partido e o partido permanece. É temerário dissolver uma AR em que há uma força partidária com maioria absoluta. Argumentar com o passado não colhe, porque nunca um Presidente da República (PR) dissolveu a AR com a maioria absoluta de um só partido. E a dissolução da AR que dispunha duma maioria absoluta resultante de coligação é de legitimidade duvidosa.

Por sua vez, o PR não pode argumentar o que Partido Socialista (PS) é que, no passado, pedia eleições, mercê da saída do PM. A avaliação judiciosa cabe ao PR, não aos partidos, embora estes devam ser ouvidos. Neste caso, todos os partidos mostraram querer eleições, com exceção do PS, que não as queria, apesar de facilmente se conformar com a decisão presidencial. E o PR não pode argumentar que não mandou embora o PM: ele é que pretendeu sair. Na sua visão judiciosa, talvez pudesse segurá-lo até o STJ, eventualmente, apurar o fundamento das suspeitas.

O ex-líder do PSD evidencia a necessidade de total esclarecimento no caso das gémeas luso-brasileiras. Na verdade, estamos enredados nas afirmações de exceção e da sua negação. Todos os implicados dizem não ter havido favorecimento. Porém, não é tudo normal. Alguém usou o nome do PR, com ou sem consentimento dele, coisa que ele não fez parar. E os executores do tratamento de exceção misturaram decisão clínica (certa) com temor reverencial (indevido).  

É preciso esclarecer tudo. Os responsáveis devem fazer mea culpa; quem tem responsabilidade política deve tirar as consequências; e o MP não pode ficar no inquérito contra desconhecidos.

O constitucionalista Vital Moreira (blogue “Causa nossa”) não se surpreende com a posição de Rui Rio. Com efeito, foi dos primeiros dirigentes políticos a alertar para a deriva persecutória do MP contra os políticos stricto sensu e a equacionar reformas para a contrariar, nomeadamente alterando a composição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Por outro lado, “foi ele próprio vítima especial dos abusos do MP, em manifesta retaliação corporativa, aquando das buscas à sua casa, no Porto, acompanhadas pelas televisões na rua, previamente informadas”.

Por isso, o renomado constitucionalista, que defendeu idêntica posição, “logo após o golpe de Estado ‘a frio’ do MP que fez demitir António Costa”, sem qualquer esclarecimento adicional sobre o assunto e sem se saber que suspeita impende sobre o PM, entende que “só há razões para reforçar a exigência de demissão”.  Na verdade, a procuradora-geral de República “não é digna das responsabilidades institucionais que, inadvertidamente, lhe foram confiadas”. 

O MP, a coberto da imperiosidade de instaurar inquérito, mostra a propensão para diminuir ou eliminar as garantias mínimas de “imparcialidade contra a perseguição política” e, fazendo, espetáculo com a Justiça, sugere a condenação das pessoas na praça pública, antes do côngruo julgamento, com garantias de defesa e observando-se a presunção de inocência.

***

A Operação Influencer, que fez cair o governo, andou nas bocas do mundo e tem valido muitas críticas à atuação do MP, que mereceram resposta da procuradora-geral da República.

Entre os procuradores responsáveis pelo caso que abanou a política nacional, está Hugo Neto, que foi, segundo a revista Sábado, foi assessor do Ministério da Defesa Nacional e do Ministério da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, quando este era tutelado por Paulo Portas, num governo de coligação entre o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP). Em 2004, foi assessor do secretário de Estado da Defesa Nacional e Antigos Combatentes, José Manuel Pereira da Costa – que o agraciou com louvor público, “pelos serviços prestados” e, designadamente, por ter revelado “grande competência, extraordinário desempenho e invulgares qualidades pessoais –, tendo transitado, depois, para o gabinete do novo secretário de Estado da Defesa Nacional e Assuntos do Mar, Jorge Freitas Neto.

Já no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), enquanto investigador especializado em crime económico, esteve envolvido na investigação a Manuel Pinho, no processo EDP, tendo indiciado por corrupção passiva Artur Trindade, secretário de Estado da Energia do executivo do governo de coligação PSD/CDS liderado por Passos Coelho.

Foi também um dos magistrados do MP que foi alvo de Rui Pinto, tendo o ‘hacker’ português acedido à sua caixa de e-mail. E, em 2021, liderou as buscas à SAD (Sociedade Anónima Desportiva) do Futebol Clube do Porto (FCP) no âmbito das suspeitas em torno dos negócios do futebol que foram levantadas pelo “Football Leaks”. 

Não é caso único de ‘troca de cromos’ da magistratura para a política stricto sensu. A revista Sábado recorda os exemplos de Francisca Van Dunem, que passou de juíza a ministra da Justiça, ou de José João Abrantes, presidente do Tribunal Constitucional (TC) que, antes, trabalhou na Secretaria de Estado da Defesa de António Guterres (Já ninguém se lembra de Laborinho Lúcio, que passou de juiz a ministro e retornou). João Batalha, vice-presidente da Frente Cívica, assinala à Sábado que é “problema”. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) têm defendido um aperto das regras de portas giratórias. “Quem, no seu direito, interrompe a magistratura para um ministério, seja um gabinete ou um cargo político, não pode voltar”, sustenta. Por mim, entendo que o mal não está no exercício da magistratura em si, mas na forma como se exerce e em pedir ou aceitar escusa de intervir em processos em que a ação do magistrado possa levantar fundada suspeição.

***

O artigo 6.º do Estatuto do Ministério Público (EMP) assegura “o acesso, pelo público e pelos órgãos de comunicação social, à informação relativa à atividade do Ministério Público, nos termos da lei”. Para tanto, a PGR dispõe do Gabinete de Imprensa e Comunicação (GIC), a funcionar no gabinete do Procurador-Geral da República, e pode organizar gabinetes de imprensa e de comunicação junto das procuradorias-gerais regionais, sob a orientação dos procuradores-gerais regionais e a superintendência do Procurador-Geral da República – o que não existe.

Se informa dos inquéritos, também o deve fazer, para arquivamentos, condenações e absolvições.

O procurador Adão Carvalho, líder do SMMP, defende que, prevendo-se que um inquérito chegará ao conhecimento público, até pela sua conexão ou origem em outro inquérito que não está já sob segredo de Justiça e está acessível aos sujeitos processuais, envolvendo pessoas com especiais responsabilidades públicas, como os titulares de cargos políticos, a PGR deve informar os cidadãos do do inquérito, de modo objetivo e sucinto, designadamente identificando o crime ou crimes em investigação, o estado e o ou os visados nela. Isso não aconteceu em relação ao PM.

Porém, Adão Carvalho assume que “deveria existir é uma melhor capacidade de comunicação no que tange a esclarecer os cidadãos sobre os momentos do processo, o seu âmbito e finalidade, para melhor compreensão dos cidadãos e para que possam filtrar um conjunto de informações falsas, inverídicas ou inexatas com que são bombardeados nas redes sociais e na comunicação social”. E sustenta que a comunicação do MP com os cidadãos tem e deve melhorar, mas sem esquecer que, no processo penal, o MP “não é uma parte, mas uma verdadeira magistratura”.

Já Rui Costa Pereira, advogado da MFA Legal, assume-se crítico da forma como o MP exerce as suas atribuições em matéria de informação sobre a sua atividade, particularmente no processo criminal. “Do oito passou para o oitenta e a tendência é para piorar.”

As regras que regem o dever de comunicar e de informar do MP não mudaram tanto ao longo dos anos. E ditam que o MP tem o dever de informar em caso de necessidade de restabelecimento da verdade. Isso pressupõe que aos comunicados da PGR antecedam notícias ou informações públicas sobre os processos, não o inverso. Ao seguir a prática de informar os cidadãos antes dos órgãos de comunicação social, a PGR funciona como agência noticiosa e não como magistratura. “A Operação Influencer é talvez o exemplo mais infeliz desta prática errada”, adianta Rui Costa Pereira, que pensa não ter a PGR vontade em efetivamente informar. “Através dos comunicados, a PGR informa o que quer, quando quer e como quer. Sem ‘dar a cara’. Sem responder às perguntas e interrogações que esses comunicados levantam. Levando ao público a sua verdade, não necessariamente sinónima da verdade”, sustenta.

Alexandra Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha, na área de Criminal, Contraordenacional e Compliance, defende que “a nota para a comunicação social relativa à Operação Influencer seguiu o padrão normalmente utilizado pelo Gabinete de Imprensa”. E acrescenta: “Contudo, ao divulgar a invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção no contexto da Operação Influencer, é legítimo que se questione a forma e o conteúdo do comunicado, dadas as inevitáveis consequências políticas daí decorrentes, bem como a ausência de qualquer dever de divulgação dessa informação pelo Ministério Público”.

Referindo que a forma como o MP comunica “não se encontra prevista no respetivo Estatuto”, a advogada frisa que, nesta medida, “a PGR não se encontra impedida de realizar conferências de imprensa”. Ao invés dos países onde a prática é comum em investigações mediáticas, em Portugal a opção da PGR recai sobre os comunicados do GIC. Porém, ressalva: “As conferências de impressa implicariam sempre um foco direto de atenção e, consequentemente, uma maior mediatização do processo, o que conduziria ao aumento da pressão da opinião pública sobre as autoridades envolvidas, o que manifestamente se pretendeu evitar através da opção da PGR pelas notas para a comunicação social.”

Assim, quatro dias após o comunicado de 7 de novembro, o GIC do MP publicou um esclarecimento, que não seria necessário, se o comunicado tivesse sido claro. É o que diz Miguel Pereira Coutinho, advogado da Cuatrecasas, defendendo que, o MP “deve repensar a sua política de comunicação”, para que “a comunidade escrutine a sua atuação em cada processo”, e para que “não se gerem dúvidas quanto à forma como as investigações são conduzidas”.

Defende a ideia da designação de um porta-voz para dialogar com a comunicação social, sobretudo quando estão em causa processos de elevado eco público, e para dar explicações quanto a questões processuais e para fazer pedagogia sobre o funcionamento da justiça penal e as suas várias fases. Assim, evitar-se-ia que se gerassem erros na comunicação social.

Sobre a realização de conferências de imprensa pela PGR, o advogado entende que, pelo menos, quando ocorram grandes operações de buscas ou detenções em larga escala, em processos de elevado interesse público, se justificaria essa prestação de esclarecimentos por parte do MP, em vez de transferir esse ónus para a Polícia Judiciária (PJ). Além disso, pelo menos, no início do mandato e no seu fim, a PGR deveria prestar contas na AR, relativamente à sua atividade de orientação do MP e de exercício da ação penal, independentemente de para tal ser chamada.

***

Criticar o MP não é eliminá-lo ou diminuí-lo (nem dizer que todos os procuradores agem sempre mal), mas remetê-lo para o seu enquadramento constitucional, reforçar a separação dos poderes, a cooperação institucional e respeitar os detentores de cargos soberania. Autonomia não é independência e implica a subordinação hierárquica e a prestação de contas.

2023.12.16 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário