domingo, 3 de dezembro de 2023

Estudo ambiental contraindica Alcochete para novo aeroporto

 

A 2 de dezembro, o Diário de Notícias (DN) dá conta da reportagem da TVI, em outubro, segundo a qual um documento de dezembro de 2010, agora recuperado por uma associação ambientalista, alertava para o abate de mais de 250 mil sobreiros no Campo de Tiro de Alcochete (CTA). Enfim, mais um ponto a engrossar a discussão sobre o novo aeroporto de Lisboa (NAL), que teima em não passar do papel à fase de projeto e à do consequente desenvolvimento.

Desde abril, estão em cima da mesa nove opções para a instalação da infraestrutura que, há 54 anos, é badalada pelo poder político e pelos agentes económicos. Várias hipóteses de localização do NAL foram enfraquecendo, mercê das contraindicações ambientais e ou da mudança dos interesses que se vão sobrepondo uns aos outros. E a que levanta preocupação, agora, que se suspeita da escolha por parte da comissão técnica independente (CTI), criada para o efeito, é a do CTA, cujos danos ambientais, se for a escolhida pelo próximo governo, levarão ao abate de 250 mil sobreiros, espécie protegida pela nossa legislação e com grande relevo para o ecossistema natural. “É distintamente um impacto brutal”, vincava o presidente do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA).

Só a construção do aeroporto implica abater 90 mil árvores, a que se juntam 166 mil sobreiros ameaçados pela implantação da cidade aeroportuária e dos acessos rodoviários.

Segundo Inês Sousa Real, líder do PAN, será um “desastre ambiental”, sendo “absolutamente inaceitável” que se penhore, assim, “um património natural como este”. “É fundamental garantir que o desenvolvimento do país não é feito à conta dos sacrifícios ambientais. […] O país precisa de uma nova solução aeroportuária, mas não à custa do abate de 250 mil sobreiros”, reforçava.

Se a solução CTA for a opção recomendada CTI, que analisa as diferentes possibilidades, desde outubro de 2022, o abate do ecossistema de montado na área será uma medida sem precedentes, agudizando o problema ecológico criado pela autorização, nos últimos 13 anos, do abate de cerca de 35 mil sobreiros (sete vezes menos do que o previsto em 2010, no CTA).

Para o professor catedrático Filipe Duarte Santos, como as outras localizações em cima da mesa, Alcochete “tem aspetos mais positivos e menos positivos”, mas ser uma zona de montado “é um aspeto negativo”. E lembra o também presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) que é preciso aguardar o relatório da CTI e a subsequente discussão pública, pois há que separar o aconselhamento baseado na ciência da decisão política. “Haverá um governo que irá decidir depois. A ponderação dos vários critérios é uma questão política”, esclarece.

Catarina Grilo, diretora de Conservação e Políticas da Associação Natureza Portugal (ANP), que trabalha em associação com a World Wide Fund for Nature (WWF), diz que a associação aguarda, “com serenidade e expectativa”, o relatório final da CTI, com apresentação prevista para 5 de dezembro. Porém, sublinha: “Deve-se ter sempre em conta o quadro geral das alternativas de localização em cima da mesa e uma panóplia de critérios para considerar que determinadas opções de localização são aceitáveis ou não.”

Não são apenas os ambientalistas a mostrar reticências sobre este cenário. Pedro Nuno Santos, então ministro das Infraestruturas, disse na Assembleia da República (AR), em março de 2021, que a opção do CTA iria “arrasar mil hectares de sobreiros”.

O Ministério do Ambiente e da Ação Climática, questionado se autorizaria o abate de 250 mil sobreiros, se Alcochete fosse a opção do governo, esclareceu que a CTI foi escolhida para desempenhar uma missão e que o Ministério não comentará até à conclusão do trabalho.

Para João Joanaz de Melo, presidente do GEOTA, cético da necessidade de nova infraestrutura aeroportuária, a discussão do NAL está inquinada desde o início. Antes de discutir a localização, há coisas a fazer. Uma delas é uma rede ferroviária intercidades que ligue as principais cidades, portos e aeroportos do país. A prioridade, segundo o investigador, deve ser reduzir a carga na Portela, acabar com as rotas noturnas e utilizar aeroportos complementares, como o de Beja, solução também defendida pela líder do PAN.

O GEOTA recusa também a ideia de transformar o NAL num grande hub internacional, tendo “as maiores dúvidas de que isso seja do interesse do país como modelo de desenvolvimento”.

Na verdade, a CTI recomendou que as operações na Portela fossem otimizadas e que as pistas de Beja fossem usadas como complemento à oferta disponível. Independentemente da solução que for recomendada pela CTI, o GEOTA defende que devem ser considerados os critérios ambientais. “Um fator importante é não interferir com áreas protegidas naturais.”

A associação Zero não se pronuncia, para já, sobre as hipóteses da construção do novo aeroporto e remete uma posição para quando for divulgado o relatório final da CTI. Porém, sobre a importância do sobreiro como agente do ecossistema, Paulo Lucas, da direção da ZERO, sustenta que tais árvores “são importantes para a preservação da biodiversidade”, pois, até do ponto de vista do fornecimento de serviços de ecossistema, a espécie “permite a regulação do ciclo de nutrientes e a regulação hidrológica”. Catarina Grilo, partilhando desta opinião, acrescenta que “a eliminação destas árvores terá impacto também em termos de sequestro de carbono”, mas sustenta que é possível reconstruir um montado, embora o processo seja complexo.

João Joanaz de Melo adverte que o ecossistema de montado tem “enorme valor de conservação”, bem como aspetos económicos e sociais que não devem ser desconsiderados, nomeadamente os postos de trabalho associados à retirada da cortiça e a riqueza deste material para os proprietários. O problema não é o abate de algumas árvores, mas a destruição de um ecossistema que “pode levar muitas dezenas ou até centenas de anos a recuperar”.

A escolha da localização para o NAL tem sido marcada por avanços e recuos, sem uma decisão. Em 2022, Pedro Nuno Santos, já referido, anunciava a construção imediata do aeroporto complementar do Montijo e o início dos trabalhos em Alcochete. “Já chega, já chega! O país anda, há anos, a discutir o aeroporto. Já é tempo a mais. Há uma decisão tomada e vamos avançar”, declarava à RTP. Todavia, já depois do anúncio, o primeiro-ministro (PM) ordenou a revogação do despacho assinado pelo ministro, que se desculpou em conferência de imprensa reconhecendo “erros de comunicação” no governo. O PM não exigiu a demissão do ministro, mas disse que o erro estaria “corrigido” com a revogação do despacho.

No final de 2022, o governo criou a CTI, liderada por Rosário Partidário, a quem incumbe a análise das opções viáveis para a nova localização. Em abril deste ano, a CTI confirmou estarem a ser estudadas nove localizações: Aeroporto Humberto Delgado + Montijo, Montijo + Aeroporto Humberto Delgado, Alcochete, Aeroporto Humberto Delgado + Santarém, Santarém, Aeroporto Humberto Delgado+ Alcochete, Pegões, Aeroporto Humberto Delgado + Pegões e Rio Frio + Poceirão. São as opções que restaram do lote de 17, considerado no início.

O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, tem pedido “rapidez” na decisão, mas, recentemente, em entrevista à SIC Notícias, recusou a ideia de que a infraestrutura não seja construída em Lisboa. “Quero que o novo aeroporto seja na região de Lisboa, com um hub aqui. Vendas Novas ou Alcochete? Não me posso posicionar sem ter estudado os projetos. Mas acho calamitoso que não sejam feitas obras no Aeroporto da Portela”, declarou.

O ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, disse, no encerramento do debate parlamentar sobre a proposta do Orçamento do Estado para 2024, que a decisão será tomada “ao fim de 50 anos de indecisão” e que, além das obras ferroviárias e do planeamento dos investimentos portuários, estão em curso melhorias no Aeroporto Humberto Delgado e será tomada uma decisão que tem estado indefinida, há mais de 50 anos. Todavia, a decisão já não será, tomada pelo XXIII Governo Constitucional.

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Para a associação ambientalista Zero, o aeroporto Humberto Delgado apresenta o prejuízo acumulado da exposição ao ruído na saúde das pessoas de quase nove mil milhões de euros, de 2015 até agora. E o excesso de ruído tem impacto em 380 mil habitantes de Lisboa, de Loures e de Almada. Por isso, a 31 de outubro, pedia o encerramento do aeroporto de Lisboa.

“A Zero espera que, na sequência da Avaliação Ambiental Estratégica em curso, se inicie a contagem decrescente para o encerramento urgente e definitivo do Aeroporto Humberto Delgado, acabando de vez com os seus custos sociais incomportáveis”, afirmava.

Esses custos “dariam para pagar, pelo menos, dois novos aeroportos em local adequado com o menor impacto possível sobre a saúde humana”. E a associação especificava: “Os custos aproximados acumulados neste período de 7 anos e 10 meses, a preços correntes, são superiores a 8500 milhões de euros, o que significa, excluindo os anos de pandemia em que a atividade aeroportuária foi atípica, que estamos perante um prejuízo de cerca de 1300 milhões de euros por ano, o que equivale a mais de 3,5 milhões de euros por dia.”

“A exposição prolongada ao ruído de aviões nas áreas afetadas da grande Lisboa tem várias consequências adversas na saúde, desde logo distúrbios do sono, interferindo na qualidade e na quantidade de descanso necessário para um funcionamento saudável do organismo”, observava, garantindo que tal exposição aumenta o stresse, contribui para problemas cardiovasculares, como hipertensão e doenças cardíacas, e prejudica a saúde mental, causando distúrbios de ansiedade e depressão. “(...) Imóveis próximos do aeroporto ou debaixo da rota de voos têm em geral preços mais baixos em comparação com as restantes áreas da cidade. Esta subvalorização do património imobiliário terá custado 167 milhões de euros em 2019”, explicava.

Na análise da Zero, o custo social foi quantificado através de metodologia presente em estudos internacionais, com base em “relações dose-efeito” da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Foram quantificados os custos associados às perturbações do sono, incomodidade, cardiopatia isquémica, hipertensão, perda de produtividade e subvalorização do património imobiliário (os dois últimos fatores não foram avaliados para o estudo do tráfego noturno). A Zero estima que os custos do ruído do Aeroporto da Portela, calculados segundo as recomendações da OMS, saiam bastante agravados, face aos custos apurados, e, quando o aeroporto encerrar, haverá “várias dezenas de milhões de euros em prejuízo irrecuperável para os cidadãos afetados”.

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O Professor Vital Morreira, no “Causa nossa”, questiona “o sacrifício de 1/4 de milhão de sobreiros, face ao grandioso projeto de edificar uma esplendorosa Lisboa II na outra margem do Tejo, promovido por um poderoso lobby financeiro-imobiliário, sem precedentes na História do país, a cujo ‘comité LNEC [Laboratório Nacional de Engenharia Civil] /Alcochete’ o governo decidiu entregar a chamada CTI”.

Um membro da CTI, em conflito de interesses, descartou a questão dos sobreiros e falou de o risco de o relatório ser metido na gaveta pelos decisores políticos. O renomado constitucionalista sustenta que seria esse o destino de um relatório que ficará como “exemplo de flagrante violação qualificada do princípio constitucional da imparcialidade na administração pública em Portugal”. E chama “despudor institucional” ao facto de um membro da CTI “defender implicitamente um dos projetos, a três dias da publicação do relatório, pré-anunciando o seu sentido”.

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O NAL deve ser construído – falta muito para dispensamos os combustíveis de origem fóssil e a rede rodoferroviária suficiente está atrasadíssima – a localização deve ser na região de Lisboa. Haverá sempre danos colaterais, que importa evitar, reduzir e compensar. O drama do abate de árvores é penoso, mas relativo, pois muitas não estão em plena vitalidade e é possível compensar o abate um pouco mais longe. E é inevitável a edificação da cidade aeroportuária.

Os interesses económicos existirão sempre, tal como existiam na OTA. E a parcialidade dos estudos, proverbial, fica disfarçada na confissão de “independência” dos autores.   

2023.12.03 – Louro de Carvalho

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