quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Presidente não respondeu a António Costa, nem à “campanha do PS”

 

Em artigo de 15 de dezembro no Expresso (acesso pago), a jornalista Ângela Silva regista “o silêncio incomodado de Marcelo Rebelo de Sousa, que tem espantado quem o tem visto, há anos, “a fazer política na rua”, comentando tudo e todos (governo, ministros e secretários de Estado, leis e regulamentos, casos e questões de justiça), muitas vezes, dizendo que não comenta.  

A expectativa no Palácio de Belém é que o Presidente da República (PR) mantenha o registo politicamente mais recatado até às eleições de 10 de março. Contudo, sem se calar, ainda no dia 14, disse publicamente que “preferia” António Costa a qualquer um dos candidatos à sua sucessão (Luís Montenegro agradecer-lhe-á a referência) e que o ainda primeiro-ministro (PM) daria um bom candidato presidencial, “se antes não chegar a presidente do Conselho Europeu” (António Costa a agradece-lhe, em vez de se enervar).

Porém, se o PM tem tantas qualidades, é de questionar por que motivo aceitou, de imediato o seu pedido de demissão e não incitou a continuar até as coisas ficarem mais esclarecidas. Além disso, se lhe merece tanto crédito, por que não aceitou a formação de um novo governo com o Partido Socialista (PS)?  

Crê-se que o PR gerirá a reta final do costismo sem responder aos ataques do PM, que o acusa de ser ‘o mau da fita’ desta crise política. Aliás, não é o único: Rui Rio que liderou o Partido Social Democrata (PSD) também não concorda com a dissolução da Assembleia da República (AR) como solução para esta crise política.

O PR declarou-se não responsável pela saída do PM. Insistiu: “Foi ele que se quis ir embora. Não fui eu que disse: vá-se embora.” Foi a resposta indireta aos que o acusam de ter criado a rutura.

Apontam, na Presidência da República, duas razões para esta gestão contida em que o chefe de Estado tenta evitar ser puxado para a “luta na lama”: quer manter a normalidade institucional mínima, porque tem de trabalhar com António Costa até março; e “responder ao PM teria sido entrar na campanha do PS”.

Numa das suas, agora mais raras, saídas – condicionadas pelas perguntas a que sabe ter de se sujeitar sobre o caso das gémeas, o PR recusou-se a comentar a entrevista de António Costa à TVI, em que o PM o culpou pela decisão errada de dissolver a AR, como libertou a frase ambígua: “O primeiro-ministro vai estar em funções ainda uns meses, diz o que pensa, e o Presidente respeita o pensamento do primeiro-ministro, mas não comenta.”

Este dito é entendido, no Palácio de Belém, do seguinte modo: António Costa sai daqui a quatro meses, o PR tem dois anos e meio pela frente e, a partir de março, trabalhará com o próximo PM. Em outras palavras: António Costa é passado, o seu ciclo como chefe de governo acabou, e Marcelo reserva-se para o novo ciclo. Nestes termos, o ambiente de disputa e de ressentimento do par que, durante anos, porfiou juras de coabitação desembocou na seguinte verificação: António Costa sonhava durar mais do que Marcelo, mas é Marcelo que durará mais do que Costa.

“Há aqui um separar de responsabilidades”, vincam fontes da Presidência da República, sendo que as responsabilidades do PM de gestão estão a acabar e as do PR continuarão, numa legislatura que ninguém sabe como será. António Costa desafiou-o a encontrar, no resultado das eleições antecipadas de março, uma solução estável, e o PR sabe que são grandes os riscos de isso não acontecer. Porém, a teoria do PM de gestão, segundo a qual o país teria a ganhar em ver a legislatura cumprir-se com Mário Centeno, é considerada absurda: “Um governo liderado por Centeno após a demissão de António Costa, sem eleições, e com Pedro Nuno Santos à solta, durava seis meses. E quem defendeu que a saída de um primeiro-ministro deve dar eleições foi o PS, quando Durão saiu e Santana o substituiu”, sublinham no Palácio, onde não é poupada a instabilidade desta maioria absoluta socialista que se demite ao fim de um ano e meio.  

Ora, esta é a maioria absoluta de um só partido, o que não acontecia com Durão e com Santana; e é de duvidosa licitude (não digo “legalidade”, nem “legitimidade”) a dissolução da AR em que há uma maioria de coligação.

O futuro é incerto, mas o chefe de Estado não tem alimentado tremendismos. Defensor de uma coligação pré-eleitoral PSD/IL/CDS para enfrentar o PS, considera irresponsável a decisão da Iniciativa Liberal (IL) de ir sozinha a votos e partilha com influentes vozes do PSD a convicção de que Luís Montenegro tem de jogar tudo no voto útil. Para tanto, é de lançar no debate público uma questão prática: se o PSD não tiver mais um voto do que o PS, o PR terá de indigitar Pedro Nuno Santos como primeiro-ministro (é ele que a direita conta encontrar no ringue). Assim, as pessoas têm de perceber que, se dispersarem o voto, até podem ter uma maioria de direita mas o indigitado será o outro, alerta um ‘barão’ do PSD. Ora, Marcelo não pensa diferente.

Numa disputa entre os dois maiores partidos que todas as sondagens dizem estar, para já, à pele, um único deputado chega para fazer a diferença e a convicção do PR é que, se o PSD ganhar e sendo a direita maioritária, não precisará de fazer nenhum acordo com André Ventura, bastando o Chega viabilizar que o PSD governe em minoria. E embora este ‘basta o Chega viabilizar’ seja um ponto de interrogação (Ventura ameaça exigir ministros), a convicção do Marcelo Rebelo de Sousa é que Montenegro não cederá e o Chega nunca votará ao lado do BE e do PCP contra um governo de direita. Olhando para a esquerda, o PR antevia Pedro Nuno como sucessor de António Costa, o que se confirmou, e acha-o vantajoso para o PSD, por poder afastar eleitorado mais moderado. Todavia, num cenário em que o PS ganhe, mas sem maioria, o PR poderia contar com a maio­ria de direita para derrubar o governo do PS. Só que Montenegro diz que, nesse caso, se demitiria e a direita voltaria a entrar em crise.

Até março, o chefe de Estado jogará sobretudo nos bastidores e antevê que o PM deixe de monopolizar a boca de cena, como tem feito, após a demissão. “Este protagonismo de agora não terá grande impacto nas eleições de 10 de março”, antecipava um dos mais próximos conselheiros de Marcelo, que apontava o dia 18, quando já se saberia (e soube) quem ganhou o PS, como o início do ciclo novo em que tudo se jogará entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro.

Quanto à coabitação sobrante entre o PR e o PM de gestão, Belém não prevê grandes perturbações. Andar António Costa em campanha é visto como normal, dada a necessidade de jogar a sua defesa pessoal, e não se anteveem tentativas de o PM pisar o risco da gestão. “Se o governo já decidia pouco, agora por maioria de razão...”, ironizam. O ciclo da dupla deslaçada está quase a acabar.

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Como era expectável, o PR não para de comentar. Se não o faz por si próprio, fá-lo através de megafones travestidos de heterónimos, como insinuou António Costa, ou de pseudónimos como diz Vital Moreira. Por mim, hesito em aplicar aos atores do presente fenómeno político o termo “heterónimo” ou o termo “pseudónimo”. Ao heterónimo corresponde outro nome, que significa uma personalidade diferente, com vida (conceção, gestação, nascimento, crescimento, atividade e falecimento) autónoma; o pseudónimo traduz uma personalidade que se oculta sobre um outro nome, mas conservando todas as caraterísticas da personalidade originária.   

Todavia, são vários os intervenientes no comentário em nome do PR: o Palácio de Belém; um sujeito indeterminado (subentendido em verbos, como “crê-se”, “apontam”, “sublinham”, “ironizam”, etc.); Presidência da República; fontes da Presidência da República; a voz passiva, como em “é considerada” e em “não é poupada”; Palácio; e Belém. Por outro lado, sem interveniente expresso, fica espelhado o pensamento do PR, inconsistente no que toca às hipóteses de formação de um governo após as eleições, consoante os seus resultados. Com efeito, nada garante que o PSD não se coligue com o Chega (as pressões internas são muitas) ou que Luís Montenegro se demita, se não tiver hipótese de formar governo só com o PSD ou se perder as eleições, mas a direita obtiver a maioria parlamentar.

Por tudo isto, parecendo que todas as declarações atribuíveis ao PR e espelhadas no artigo de Ângela Silva revelam o que se sabe do pensamento e da postura do chefe de Estado, e não qualquer desdobramento de personalidade, as que não atribuídas diretamente cabem na categoria do pseudónimo.

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O constitucionalista Vital Moreira (blogue “Causa nossa”) sublinha que Marcelo Rebelo de Sousa bate, “de longe, todos os recordes de declarações públicas de todos os PR precedentes”. E, não satisfeito com isso, usa “outros canais menos ortodoxos de comunicação com o público”. Tal é o caso de jornalistas que funcionam como seus “ventríloquos”, atribuindo as suas declarações, citadas entre aspas, para não ficarem dúvidas, a “fontes de Belém”, à “Presidência”, a “assessores” ou a “conselheiros” anónimos e, mesmo, aos “corredores” do Palácio. É de dizer: “Rabo escondido com o gato de fora!”

Ninguém fica bem na fotografia: o PR, por dar “tratamento privilegiado aos jornalistas e aos jornais que se prestam a tal jogo” e por não assumir a responsabilidade pessoal pelas opiniões veiculadas por tais pseudónimos; os jornalistas em causa, por se deixarem instrumentalizar como megafones de Belém e por violarem “um dos mais importantes deveres deontológicos do jornalismo, que é a identificação das fontes de opiniões”. Neste segundo aspeto, não estou certo de concordar com Vital Moreira. Efetivamente, servir de simples megafone de Belém ou do PR, sobretudo se houver contrapartidas, é indigno. Porém, no atinente aos deveres deontológicos, parece que o jornalista não deve ser obrigado a revelar as suas fontes, mormente se elas pedem o anonimato. É certo que esses pseudónimos agem mal, quando se dispõem a ser megafones do PR para os jornalistas. O temor reverencial e os intentos políticos não justificam tudo.     

Acresce que, sob tais pseudónimos, o PR leva ao exterior “comentários políticos que dificilmente ele poderia fazer em nome próprio, como é o caso da peça citada, incluindo a denúncia de uma suposta ‘campanha do PS’ contra ele, juízos sobre o Primeiro-Ministro ainda em funções ou sobre o novo líder do PS, ou opiniões sobre a estratégia eleitoral mais desejável para a oposição”.

E Vital Moreira sustenta: “Nada disso é compatível com o estatuto de neutralidade político-partidária que é inerente ao ‘poder moderador’ que a Constituição lhe confere, não sendo por acaso que Constant, o inventor desse ‘quarto poder, há dois séculos, o designou justamente como poder neutro. Se, entre nós, o PR não é eleito para governar ou cogovernar, nem para exercer tutela sobre o governo, tampouco é eleito para se imiscuir no combate político-partidário, muito menos em período eleitoral, o que torna ilegítima qualquer tomada de partido por parte de Belém.”

A quem perguntou se era a estas situações que o PM se queria referir, quando “mencionou os ‘heterónimos’ de Marcelo [Rebelo de Sousa]”, o constitucionalista admitiu que sim, mas julga (eu concordo) que “essa noção pessoana não convém a esta situação, pois os heterónimos têm personalidade própria, independente do seu criador, enquanto  aqui os tais jornalistas não passam de veículos, arautos, da ‘voz do dono’.”

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Não precisávamos de filmes destes!

2023.12.20 – Louro de Carvalho

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