terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Ataques menorizam, descredibilizam ou destroem o Ministério Público

 

Na sequência das críticas surgidas à Operação Influencer, que levou à demissão do primeiro-ministro (PM) e à marcação de eleições legislativas antecipadas, a procuradora-geral da República disse, a 11 de dezembro, estar “bem ciente da responsabilidade” do Ministério Público (MP). E, mais do que isso, denunciou ataques ao MP, garantindo que esta magistratura vai continuar “inquebrantável e incólume” às críticas que surgiram após a Operação Influencer, que levou à queda do governo.

“Estão, hoje, bem patentes as profundas e entrecortadas raízes dos ataques desferidos a uma magistratura com provas dadas e que permanecerá inquebrantável e incólume a críticas desferidas por quem a visa menorizar, descredibilizar ou mesmo, ainda que em surdina ou subliminarmente, destruir”, afirmou Lucília Gago, em discurso na sede da Polícia Judiciária (PJ), em Lisboa.

E acrescentou: “É de lamentar e refutar abordagens bipolares que tanto parecem enaltecê-lo como, quando fustigado por vendavais que incidem e impacientam certos alvos de investigações, o passam a considerar altamente questionável e inoperante, clamando por redobradas explicações, nunca suscetíveis, desse ponto de vista, de atingir o limiar da suficiência.”

Estas declarações ocorreram no dia em que o PM reiterou a sua indisposição contra o parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR), de 7 de novembro, que o visou na investigação conexa com a Operação Influencer. “O que se pode é perguntar a quem fez o comunicado, a quem tomou a decisão posterior de dissolver a Assembleia da República [AR], se fariam o mesmo perante aquilo que sabem hoje”, disse o PM à CNN Portugal, na residência oficial de São Bento, antes de participar no debate parlamentar que antecede a próxima cimeira europeia.

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Esta (in)oportuna troca de galhardetes obnubilou a relevância da conferência “A defesa da integridade e da transparência no desporto”, com que se pretendeu assinalar o Dia Internacional de Combate à Corrupção, que se comemora a 9 de dezembro.

Na abertura da conferência, Lucília Gago, vincava que o 9 de dezembro de 2003 “ficará para a História como o momento em que a Humanidade deu mais um passo importante no caminho de construção de uma comunidade global, assente na dignidade da pessoa humana, na qual o desenvolvimento individual deverá ocorrer no seio de instituições justas”. Referia-se à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, aberta à assinatura de todos os Estados, nessa data, representando um avanço civilizacional, porque vai muito além de instrumento de luta contra um determinado fenómeno criminal.

No seu preâmbulo, ressalta que “a gravidade dos problemas e das ameaças que a corrupção coloca à estabilidade e segurança das sociedades […] mina as instituições e os valores da democracia, os valores éticos e a justiça e compromete o desenvolvimento sustentável e o Estado de direito”. Por isso, é “um instrumento de proteção dos princípios e valores fundamentais, entroncando, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), promulgada a 10 de dezembro de 1948, que trouxe uma luz de dignidade e humanidade a um tempo em que a escuridão das atrocidades da guerra estava ainda muito presente”. Porém, “esses tempos sombrios parecem querer voltar”.

Aplaudiu o tema escolhido para a celebração deste Dia Internacional contra a Corrupção, ao invés de quem pensa que seria mais avisado refletir sobre problemas de integridade e de infiltração de fenómenos corruptivos no sistema financeiro, na administração do Estado, nas autarquias locais, na justiça e no setor privado. Porém, como diz, nenhum setor é alheio ou imune à corrupção, pelo que é necessário abordar esta temática no desporto. Com efeito, é preciso criar “uma comunidade global de pessoas norteadas pelos princípios e valores fundamentais”.

A respeito do desporto, lembrou as palavras do Prémio Nobel da Paz Nelson Mandela, quando referia: “O desporto tem o poder de mudar o Mundo. Tem o poder de inspirar. Tem o poder de unir as pessoas de uma forma que poucas outras coisas conseguem. Fala para os jovens numa linguagem que eles entendem. O desporto consegue criar esperança onde antes existia apenas desânimo. É mais poderoso que os governos em quebrar barreiras raciais.”

Os valores associados ao desporto possuem conteúdo jurídico, de fonte normativa, nas suas diversas dimensões. A Carta Europeia do Desporto revista, adotada a 13 de outubro de 2021 pelo Conselho da Europa, é exemplo paradigmático de um instrumento que reconhece os valores associados ao desporto como elemento integrante da concretização de direitos humanos (por exemplo, pelo combate à discriminação, pela proteção de pessoas vulneráveis, pelo combate à arbitrariedade e a outros abusos violadores do sentido de justiça) e de promoção dos valores da ética no desporto e da integridade. O artigo 8.º da Carta Europeia do Desporto (revista) merece destaque “nesta dialética com a Convenção de Mérida, na lógica de convocação da integridade pessoal, competitiva e organizacional que tem na corrupção a sua maior ameaça”.

Na verdade, a corrupção, aniquilando a integridade do desporto, “impede o contributo deste para o desenvolvimento humano”, pelo “estímulo dos valores éticos e morais associados à dignidade da pessoa e à proteção de todos os envolvidos contra qualquer prática abusiva”.

A noção de integridade assume diversas variações, mas, na ótica dos que têm a responsabilidade de intervir no contexto da ação penal, a integridade no desporto é enquadrada em três pilares fundamentais: o da integridade das pessoas envolvidas, designadamente no domínio das garantias de proteção contra qualquer forma de abuso ou violência e de proteção da sua segurança; o da integridade das competições, com especial enfoque na manipulação do resultado desportivo, da utilização de doping ou qualquer ato ou omissão intencional que vise uma alteração irregular do resultado desportivo; e o da integridade das organizações e entidades que intervêm no desporto e da necessidade de pautarem a conduta por padrões de boas práticas eticamente orientadas. Nesta variedade de setores potencialmente abrangidos pelo conceito de integridade no desporto, sobressai o pilar associado à integridade das competições, designadamente no respeitante à manipulação do resultado desportivo. Por isso, as instituições de Justiça têm de compreender que os tempos mudam e, com eles, os fenómenos criminais. Assim, cumpre aos operadores judiciários, sobretudo ao MP e à PJ, constante atualização, nomeadamente pelo desenvolvimento de atuação que permita considerar os fenómenos contemplados na Convenção de Macolin (Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Desportivas).

Os fenómenos criminais associados ao financiamento das organizações desportivas, às apostas nas competições desportivas e ao branqueamento das vantagens de infrações penais relativas à manipulação de competições desportivas são domínios onde se exige o aperfeiçoamento dos mecanismos de deteção e de investigação especialmente orientados e adaptados.

Neste âmbito, é de assinalar que Portugal, através da PGR, é membro fundador da Rede MARS, uma rede de Magistrados do Ministério Público criada sob a autoridade do Acordo Parcial Alargado sobre o Desporto (EPAS) do Conselho da Europa, para reforçar a cooperação internacional e o intercâmbio de informações para a proteção da integridade do desporto. E a PGR, reconhecendo o especial papel do MP neste domínio, continuará a colaborar com a plataforma nacional, nos termos oportunamente protocolados ou nos que venham a ser legalmente definidos. Porém, defende Lucília Gago, “só uma atuação estratégica, especialmente vocacionada para intervir diretamente nas causas da corrupção no desporto poderá […], contribuir decisivamente para alcançar a desejada eficácia neste domínio”.

Entretanto, a líder do MP seleciona, como principais causas da corrupção associada ao desporto, a intenção de obter vantagem desportiva ilegítima e a intenção de obter vantagem económica indevida. Assim, intervir, de forma decisiva, nas causas destes fenómenos criminais implica garantir que a investigação conduzida pelo MP, enquanto titular da ação penal, permite extrair todas as consequências jurídicas do crime no âmbito da responsabilização penal e na responsabilização patrimonial dos agentes do crime.

Quando as motivações dos agentes do crime são norteadas pela intenção de manipulação dos resultados desportivos, para, assim, obter benefícios ilegítimos na competição desportiva, a intervenção do sistema formal de Justiça, designadamente no domínio do exercício da ação penal, deve passar pela necessidade de, a nível cautelar e da pena aplicada, estimular consequências legalmente previstas, designadamente no âmbito da suspensão de participação em competições desportivas. Esta resposta exige, no domínio da violação da integridade desportiva, adequada articulação com as demais entidades que intervêm no âmbito da aplicação das sanções por infrações disciplinares desportivas.

Já quando a motivação dos agentes do crime tem por base a intenção de obter benefício económico, o exercício da ação penal só ficará totalmente realizado quando for possível garantir que o crime não compensa. Tal objetivo alcança-se pela investigação patrimonial e financeira que permita confiscar todas as vantagens económicas obtidas pelos agentes do crime. Esta necessidade de aplicar os mecanismos de recuperação de ativos é crucial no âmbito dos ilícitos penais praticados no contexto das apostas desportivas ilegais. Eliminar o lucro obtido por estes agentes do crime é a única forma não ingénua de combater tais ilícitos.

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Foi quase no término da sua intervenção que a procuradora-geral da República enviou os fogachos ao poder político stricto sensu, afirmando-se “bem ciente da responsabilidade” do MP “enquanto magistratura a quem foi confiado um conjunto muito alargado de atribuições em diferentes domínios, especialmente no que concerne à defesa da integridade, designadamente da desportiva, mas não só”. Tal responsabilidade, sustentou, “será sempre exercida com objetividade e assumida num quadro de permanente empenho em assegurar a criação de uma sociedade livre, justa e solidária, assente na dignidade da pessoa humana, em cumprimento dos valores essenciais previstos no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa [CRP]”.

Também, de forma tímida, a oradora fez um certo mea culpa, tímido e tardio. Sublinhou que o modelo constitucional, “conferindo-lhe autonomia”, atribui ao MP “a direção da investigação criminal, norteada pelo princípio da legalidade”. Este “perfila-se como absolutamente idóneo e apto à cabal realização da Justiça”. Porém, esta verdade não dispensa, antes consente e reclama “permanente reflexão, responsável e sem tabus, visando com seriedade o aprimoramento do modelo”. Aqui a oradora parece alinhar na onda dos que pensam que fazer voltar o MP ao enquadramento constitucional é atacá-lo, como acima se descreveu.  

Por fim, equacionou a relação do MP com a PJ. Esta, em especial no combate à corrupção e na criminalidade afim, assume “inegável centralidade”, face ao conhecimento e à grande experiência que detém, aos meios técnicos e humanos alocados, que se propõe reforçar, e aos resultados que alcança, bem como à circunstância de “constituir o órgão de polícia criminal ao qual está conferida competência reservada para a investigação”. Resta saber, então, por que motivo a PGR deixou a PJ fora da Operação Influencer e chamou a Polícia de Segurança Pública (PSP).

É, pois, irónico dizer que o MP tem, “no combate a este fenómeno criminal, um parceiro de eleição, absolutamente preferencial e cuja experiência e ‘know how’ não são, nem poderiam ser nunca, desconsiderados”.

Oxalá o diretor nacional da PJ não esteja equivocado, ao pensar que a sua corporação jamais ficará fora da investigação à corrupção (incluindo o fenómeno corruptivo no desporto) e, ao mesmo tempo, ao admitir, que o MP, como líder da ação penal, pode escolher quem lhe aprouver para cooperar. Em que ficamos? Estamos a menorizar o MP ou a querê-lo no seu lugar?

2023.12.12 – Louro de Carvalho

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