sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Um balanço de 2023, embora parcelar, em que nem tudo foi mau

 

Para 2023 ficar na História como ano que deixa poucas saudades, bastaria apontar a destruição e a mortandade da guerra na Ucrânia, que originou migração forçada e tráfico de crianças para a Rússia, e que está, agora, em situação de impasse. A esta inqualificável guerra adicionou-se, a partir de 7 de outubro, a guerra entre Israel e o Hamas, com a eliminação do Estado Palestiniano na mira, em que se vê todo o tipo de atrocidades bélicas e humanas.   

A par destes dramáticos acontecimentos, sobressaem as catástrofes naturais, os alarmantes recordes nas temperaturas do planeta, a continuação dos conflitos em países como a Síria, a República Centro-Africana e o Sudão, bem como a chegada ao poder da extrema-direita eivada de anarcopopulismo (caso da Argentina).  

Em Portugal, destaca-se a crise política, por atuação errática do Ministério Público (MP), de que resultou a demissão do governo e a dissolução da Assembleia da República (AR). E, na Igreja Católica, ressalta o conhecimento da dimensão dos abusos sexuais de menores.

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No entanto, nem tudo foi mau. A par de tantas coisas más, são de registar muitas coisas boas que ajudam a atenuar os efeitos das más notícias.

O Banco de Portugal (BdP) prevê que o Estado feche 2023 com um excedente orçamental de 1,1% do produto interno Bruto (PIB). É a segunda vez que tal acontece em democracia. Mário Centeno, governador do BdP recomendou cautela na utilização deste excedente. E o Orçamento do Estado prevê a criação de um fundo para financiar futuros investimentos.

O ano de 2023 foi aquele em que avançaram os projetos-piloto para testar a semana de quatro dias. Em Portugal, foram 39 empresas a participar, abrangendo mil trabalhadores. A maioria das empresas envolvidas considerou positiva a experiência, pois a reorganização do trabalho permitiu manter os níveis de produção com o mesmo número de trabalhadores, usando menos tempo, e os trabalhadores sentiram-se mais criativos e produtivos, menos cansados e ansiosos.

Completou-se, em 2023, o processo legislativo da Agenda do Trabalho Digno e de Valorização dos Jovens no Mercado de Trabalho, com o objetivo de melhorar as condições de trabalho e a conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional.

Na reta final do ano, a AR aprovou a lei que garante o direito à autodeterminação da identidade de género nas escolas, bem como a lei que proíbe “quaisquer práticas destinadas à conversão forçada da orientação sexual, identidade ou expressão de género”. E as terapias de conversão estão na mira da União Europeia (UE). Em novembro, um relatório do Parlamento Europeu (PE) defendeu que tais práticas devem ser banidas do espaço comunitário.

De 1 a 6 de agosto, a Igreja Católica, as autarquias e o governo realizaram a Jornada Mundial de Juventude (JMJ) em Lisboa, a mais bem organizada de todas as JMJ.

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Há várias décadas que a taxa de pobreza internacional tem vindo a cair. A crise pandémica inverteu a tendência, durante três anos, mas 2023 marca o ano em que, globalmente, se regressou aos valores pré-pandemia. Todavia, o Banco Mundial estima que 691 milhões de pessoas vivem em pobreza extrema, ou seja, 8,6% da população, comparado com 9,74%, em 2020. E alerta que as taxas globais escondem graves clivagens entre países, com o Médio Oriente, África (Norte e Subsaariana) e Sul da Ásia a ver pouca ou nenhuma melhoria. Erradicar a pobreza extrema globalmente até 2030 – objetivo da Organização das Nações Unidas (ONU) – permanece improvável sem atenção adicional a estes países, segundo os especialistas.

Mais de três anos depois de a covid-19 ter entrado para o léxico mundial, a Organização Mundial de Saúde (OMS), a 5 de maio, deu por finda a emergência global da pandemia, que infetou mais de 772 milhões de pessoas no Mundo, matando perto de sete milhões. Em Portugal, o vírus infetou mais de metade da população (5,5 milhões) e vitimou 26 mil pessoas.

No início do ano, o Papa disse, em entrevista, que as leis que criminalizam a homossexualidade são injustas. “Ser homossexual não é crime [...], mas pecado”, esclareceu. Uma declaração da Igreja Católica neste sentido era esperada desde 2019 e que é um progresso assinalável, face a 2008, com o Vaticano a recusar a declaração da ONU que apelava à descriminalização da homossexualidade. E o ano termina com Francisco a autorizar bênçãos a casais que vivem em situação irregular, para a Igreja, incluindo casais de pessoas do mesmo sexo. A Santa Sé foi mais longe do que temiam alguns e menos do que esperavam outros.

Após quase duas décadas de negociações, o Mundo alcançou um “acordo histórico” para proteger os oceanos. O Tratado do Mar Alto, adotado pelos 193 Estados-membros da ONU, cria a “onda comum de conservação e sustentabilidade no alto mar, para lá das fronteiras nacionais – cobrindo dois terços dos oceanos do planeta”. Entre os objetivos do documento, juridicamente vinculativo, consta a proteção de 30% dos oceanos, até 2030. Portugal antecipou a meta para 2026. E, no Algarve, foi criada uma nova Área Marinha Protegida, a primeira aprovada neste século.

Em julho, Portugal juntou-se ao crescente número de países que pedem “pausa precaucionária à mineração em mar profundo”, até que haja conhecimento científico suficiente para perceber os riscos desta prática. Isto, quando os Açores avançaram com a moratória que proíbe este tipo de exploração na região, até 2050.

Em terra, entrou em vigor a Lei Europeia da Desflorestação. Como vinca o PE, para defender o clima e a biodiversidade, lei obriga, a partir de 2025, as empresas a garantir que os produtos vendidos na UE não causaram desflorestação nem degradação florestal.

Embora a Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas, da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) revele que há mais de 44 mil animais em risco, 2023 foi o ano da recuperação de espécies. É o caso do Onyx (dado como extinto no estado selvagem, mas reintroduzido, com sucesso, no Chade) e da baleia azul (foram, novamente, encontrados exemplares no Oceano Índico, após terem sido dizimadas pela caça), entre outros.

No combate às alterações climáticas, o ano ficará marcado com os passos históricos dados na Cimeira do Clima da ONU (COP28). Reunidos no Dubai, os países estabeleceram um Fundo de Perdas e Danos. E, pela primeira vez, o texto final da Cimeira do Clima da ONU inclui menção a “uma transição para o abandono” dos combustíveis fósseis.

Embora as alterações climáticas continuem a inspirar muitos alertas, estes não foram os únicos sinais positivos, nomeadamente na redução de emissões de gases com efeito de estufa (GEE). Assim, a Califórnia aprovou a lei que exige que grandes empresas (como a Exxon, Apple, Disney e outras gigantes) divulguem informações sobre as suas emissões de carbono; o Equador votou, em referendo, contra exploração de petróleo na Amazónia; e a Suíça aprovou, também em referendo, a lei que estipula a neutralidade carbónica para 2050.

Voltaram a ser dados passos, em todo o Mundo, no combate à desigualdade de género e para salvaguardar os direitos das mulheres. Assim, a Austrália aprovou a lei de transparência sobre desigualdade salarial; a Espanha aprovou a criação da licença menstrual e permite o aborto aos 16 anos, sem autorização parental; a Índia criou uma quota que reserva 33% dos assentos no Parlamento para mulheres; a primeira-ministra da Islândia juntou-se à greve das mulheres contra as desigualdades; o México descriminalizou o aborto; e a África do Sul avançou com lei para se tornar o primeiro país a ter licença parental totalmente partilhada.

Segundo a UNICEF, agora, há mais 50 milhões de raparigas inscritas na escola do que em 2015. Apesar deste progresso, a ONU adverte que a África Subsaariana e o Afeganistão são áreas de particular preocupação para a exclusão das raparigas e jovens mulheres da educação, quando 16% das crianças e jovens de todo o Mundo ainda não vão à escola.

O ano de 2023 fica também para a História como o ano do futebol feminino. Com quase dois milhões de adeptos nos estádios da Austrália e Nova Zelândia, este Mundial bateu um recorde de público. Em média, cada jogo teve 26 mil pessoas nas bancadas. Para Portugal, esta foi a estreia na competição mais importante da modalidade. Telma Encarnação marcou o primeiro golo da seleção nacional a competição. A Espanha saiu vitoriosa, tendo a celebração ficado marcada pela polémica de o presidente da federação espanhola ter beijado uma jogadora. A controvérsia arrastou-se durante meses, mas Luis Rubiales foi afastado por três anos.

Na Europa, a explosão mediática da modalidade trouxe mais investimento. A UEFA vai abrir uma segunda competição de clubes e expandir a Champions, para incluir mais equipas.

Fruto dos esforços para cortar as emissões de químicos com efeitos prejudiciais, a ONU prevê que, se as atuais políticas permanecerem em vigor, a camada de ozono recuperará para os valores de 1980 (antes do aparecimento do buraco na camada de ozono), por volta de 2066, sobre a Antártida, até 2045, sobre o Ártico, e até 2040, para o resto do Mundo. A recuperação terá impacto na mitigação das alterações climáticas, evitando o aquecimento adicional de 0,5ºC.

Cientistas da Universidade de Edimburgo desenvolveram uma bactéria geneticamente modificada que se alimenta de plástico e o transforma numa matéria-prima utilizável no fabrico de outros produtos. O estudo divulgado na ACS Central Science vê a descoberta como solução para o problema das toneladas de resíduos de plástico que, todos os anos, acabam em aterros e no mar.

O ano fica também marcado por vários avanços na Medicina. No tratamento do cancro do colo do útero, os cientistas alcançaram o maior desenvolvimento dos últimos 20 anos. Os resultados dos ensaios clínicos mostram que a utilização de medicamentos já disponíveis e baratos antes da radioterapia traduziu-se na redução de 35% na taxa de morte e de reincidência da doença. E, nos EUA, foi aprovado o primeiro medicamento que desacelera os sintomas da Alzheimer. A avaliação da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) é esperada no início de 2024.

A OMS deu luz verde à vacina contra a malária, uma das doenças mais mortíferas em África. Vista como “grande avanço para melhorar a saúde infantil e a sobrevivência das crianças”, foi distribuída em 12 países (18 milhões de doses administradas a partir de 2024). Há que prevenir dezenas de milhares de mortes futuras por ano. E a OMS já pré-qualificou uma  segunda vacina.

Pela primeira vez, uma equipa de médicos de Nova Iorque transplantou um olho inteiro, para um paciente de 46 anos. Apesar de ainda não ser certo se o homem recuperará a visão, o órgão “demonstrou sinais extraordinários de saúde”. E o caso constituiu uma oportunidade única para estudar o olho humano e um passo importante na procura por uma cura para a cegueira.

Não é fenómeno novo, mas, em 2023 a Inteligência Artificial (IA) deu o salto para o grande público que a transformou na grande tendência tecnológica. Com um ano de vida, o ChatGPT é exemplo disso. A startup, avaliada em 80 mil milhões de dólares, superou os 100 milhões de utilizadores semanais. Mas a idade de ouro da IA vai além da ferramenta de bolso para responder a todas as perguntas. As possibilidades são infinitas e têm impacto nas nossas vidas.

A 15 de outubro, a Polónia foi a votos. O resultado foi uma geringonça de três partidos que fez retornar Donald Tusk ao poder e pôs fim a oito anos de governo conservador de direita. A viragem ao centro e a favor da UE foi aplaudida como sinal de esperança por toda a Europa, contrariando a ideia de que a Europa Central está a tornar-se irremediavelmente mais iliberal.

A greve dos atores e argumentistas congelou a máquina de Hollywood, durante seis meses, causando centenas de milhares de dólares em prejuízos para os estúdios e adiando inúmeras estreias. Os efeitos continuarão a sentir-se no início de 2024, agora que a indústria apressou a retoma das produções. Mas, para os mais de 11 mil argumentistas e cerca de 15 mil atores, a greve trouxe melhorias significativas e assegurou pagamentos residuais pela exibição dos seus conteúdos em plataformas de streaming e garantias relativamente à utilização de IA.

Foi fenómeno cultural incontornável de 2023 a estreia, num dia, dos dois filmes mais antecipados do ano, gerou frenesim mediático à volta de Barbie Oppenheimer, batendo recordes de bilheteira e levando de volta o público às salas de cinema, após a pandemia.

Cumprindo a uma obrigação dos Tratados (TFUE, artigos 77.º-80.º), o PE e o Conselho Europeu acordaram em aprovar um pacote legislativo sobre a política comum de imigração e de asilo. Sem prejuízo do incentivo à imigração regular, que preenche manifestas carências de mão-de-obra, e sem pôr em causa o direito ao asilo, um direito constitucionalmente protegido na Carta de Direitos Fundamentais da União, visa-se, entre outras coisas, melhorar o controlo à entrada, tornar mais expedito o procedimento de decisão do asilo e operacionalizar o retorno dos candidatos não admitidos, além de uma resposta mais eficaz a situações de crise.

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Enfim, 2023 foi um ano de avanço na promoção e na defesa dos direitos humanos, na atenção ao lado social e no progresso científico, mormente no que é útil à Humanidade. 

2023.12.28 – Louro de Carvalho

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