quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

A presidência portuguesa da UE vista por entidades eclesiais

 

É verdade que atualmente uma presidência rotativa semestral do Conselho da União Europeia não tem o mesmo significado que dantes, já que agora o Conselho tem um presidente em regime de permanência. Porém, como quem toma as decisões setoriais é o Conselho de Ministros da respetiva área e as grandes decisões são tomadas nas cimeiras de chefes de Estado e de Governo, os grandes temas passam pela presidência rotativa semestral. Por consequência, os olhos estão postos no que Portugal poderá fazer dos princípios de janeiro ao dia 30 de junho.

Uns dizem que dos vários objetivos que Portugal tem em agenda alguns são ambiciosos e mesmo demasiado idealistas, ao passo que outros colocam muita esperança no desempenho português, dada a importância dos temas e tendo em conta as três presidências portuguesas anteriores, embora alguns dossiês melindrosos já tenham ido resolvidos pela presidência alemã, competindo a Portugal concretizá-los.

Assim, os líderes europeus já acordaram no QFP 2021-2027 (Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027) e no #PróximaGeraçãoEU (fundo de recuperação europeu); a Comissão Europeia chegou a acordo com o Reino Unido sobre a relação futura com a UE; e arrancou oficialmente o processo de vacinação contra a covid-19 nos Estados-membros.

A partir de agora, Portugal tem de coordenar com a Comissão os próximos passos, desde logo, a aprovação do PRR nacional em cada Estado-membro (que Bruxelas avaliará) – para, depois, se desembolsar a primeira tranche dos apoios (cerca de 10% do total da subvenção nacional); e a Comissão há de concluir o processo para ir aos mercados financeiros endividar-se em nome da UE.

No quadro da política externa da UE, Portugal protagonizará: a amarração, em Sines, dum grande cabo submarino (EllaLink) a ligar a Europa às Américas através de Fortaleza, no Brasil; a ligação da UE à Índia, com vista à cooperação entre a UE e a Índia no desenvolvimento de inteligência artificial ou da ciência de dados; o encontro dos líderes europeus com a União Africana; a conclusão dos acordos de comércio com a Austrália e a Nova Zelândia; a abertura do primeiro acordo comercial da UE com Marrocos; e a retoma das boas relações entre a UE e os EUA com a nova presidência Biden.

Não obstante, o Governo de Costa quer deixar a sua “marca” ao priorizar a implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, a cuja vastidão e complexidade já tive ocasião de me referir, quando esmiucei as três grandes categorias em que se agrupam os 20 princípios que enformam tal pilar, sendo de realçar o investimento em prol do bem comum, de modo que ninguém fique para trás e, a par disto e em função disto, a minimização das alterações climáticas e a transição digital, na linha da cultura do cuidado.

E é nesta linha de ambição que têm vindo a lume alguns testemunhos de entidades ligadas à Igreja católica. De facto, os cristãos não são do mundo, mas estão no mundo.

Assim, Pedro Vaz Patto, presidente da CNJP (Comissão Nacional de Justiça e Paz), acredita que a Presidência portuguesa da UE – pela ligação do país a Moçambique – dará mais visibilidade ao problema de Cabo Delgado e será mais determinante na procura de soluções. E, convicto de que “isso é providencial”, supõe que será uma grande oportunidade, pois os deputados portugueses no PE (Parlamento Europeu), de todos os partidos, “têm demonstrado uma sensibilidade por esta questão que não existe noutros países, especialmente pelos laços culturais e históricos que temos com Moçambique”. Porém, assinalando que, em África, também em países que não são de língua portuguesa, há situações que justificam maior atenção da comunidade internacional, exemplifica com algumas epidemias, mais mortíferas que a da covid, que, não tendo a mesma dimensão mundial, causam males muito graves, às vezes até desconhecidos dos europeus. Portanto, a relação da UE com África pode abrir mais largas perspetivas.

Por seu turno, a COMECE (Comissão dos Episcopados Católicos da Comunidade Europeia) saudou, em nota enviada à agência Ecclesia, o programa “ambicioso” de Portugal para a sua presidência rotativa do Conselho da UE, que se iniciou neste mês de janeiro com o lema ‘Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital’ e com o objetivo de não deixar ninguém para trás, “nestes tempos difíceis para indivíduos e famílias por causa da pandemia de covid-19, em particular aqueles que se encontram em situações mais vulneráveis”.

E a nota deste organismo que congrega os bispos católicos da UE, sublinha a implementação de instrumentos políticos e objetivos que “conduzam a um melhor cuidado da Criação”, considera que “os esforços da União Europeia devem prosseguir nesse sentido” e sustenta que “a liderança global da União Europeia proposta pela presidência portuguesa é um forte impulso”.

Frisa a COMECE que “qualquer verdadeiro progresso digital e tecnológico deve basear-se na proteção e promoção da dignidade humana e do bem comum” e que a proposta de reforço dos direitos fundamentais no contexto digital é um passo positivo que merece apoio”.

E, observando que a Europa deve assumir um papel de liderança “na promoção de uma ordem internacional regulada, baseada numa cooperação de confiança e em parcerias justas”, a COMECE elogia as prioridades da presidência portuguesa e as propostas de ação “alinhadas com esses objetivos, de forma a criar relações pacíficas, justas e prósperas entre os Estados”. Na verdade, a este respeito, como refere o texto da aludida nota, “assume particular importância o trabalho da presidência portuguesa no sentido de se conseguir, finalmente, uma abordagem europeia conjunta da migração e do asilo, tendo em conta as diversas realidades e sensibilidades”.

Em relação à situação provocada pelo ‘Brexit’, esta comissão dos episcopados católicos deseja uma “relação estreita e amigável entre a União Europeia e o Reino Unido”, contando com “a experiência e o bom trabalho da presidência portuguesa para iniciar este caminho”.

Ademais, sabe-se que, a 18 de janeiro, se reunirá uma delegação da COMECE e da Conferência Europeia das Igrejas Cristãs com a representação permanente portuguesa, em Bruxelas.

Também José Pedro Frazão, jornalista da Rádio Renascença, disse à Ecclesia que a presidência portuguesa tem como desafios as migrações e desigualdades sociais – “um processo que tem marcado passo e gerado grandes divisões na Europa, sendo talvez por isso que, na sua ótica, “não está na primeira linha dos grandes objetivos desta presidência”.

O jornalista, falando do impacto da pandemia, com a urgência da recuperação económica e do plano de vacinação, refere que será muito importante “tentar perceber se a Europa vai conseguir vacinar de forma substancial os europeus, durante o primeiro semestre”, uma vez que “há processos que aguardam ratificação e burocracias a ultrapassar que são essenciais para que o dinheiro chegue aos Estados-membros para que a tal bazuca se torne realidade”.

Comentando o ‘Brexit’, Frazão reconhece o desafio de Portugal assumir uma Europa com menos um país, mas entende que a saída do Reino Unido pode até facilitar alguns processos. E, apesar de enaltecer “o exemplo da aposta verde, um esforço ecológico que se vai começar a concretizar em 2021 e que pode ficar mais facilitado”, identifica outras vertentes mais complexas como a aposta no digital e adianta que “a Comissão Europeia vai dar tópicos quanto aos impostos a cobrar aos gigantes tecnológicos e este parece ser um tema difícil de gerar consensos”. Porém lamenta que as relações com África permaneçam afastadas das ações imediatas da UE e adverte que “não podemos esquecer que este é um tema ligado às migrações, mas também à recuperação económica”.

Por fim, é de registar que, já a 4 de janeiro, o Padre Hermínio Rico, jesuíta que reside em Bruxelas, sócio do presidente da Conferência Europeia de Provinciais da Companhia de Jesus, com sede na capital belga, e antigo diretor da revista ‘Brotéria – Cristianismo e Cultura’, dizia à Ecclesia que a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia pode ajudar a mudar perspetivas e a recuperar os “sonhos” do projeto comunitário, podendo ser até “uma boa oportunidade para nós, portugueses, evoluirmos um bocadinho na forma como olhamos para a União Europeia”. Com efeito, para o religioso, “não são ‘eles’, que nos dão coisas, a União Europeia é algo de que fazemos parte”.

O Padre Rico fala dum ano especial em contexto da pandemia, com consequências na saúde e na vida social, e da saída do Reino Unido da União Europeia.

Questionado sobre o lema da presidência portuguesa, “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital”, declarou que “o importante é promover uma Europa, toda ela, que flua dos valores que levaram à constituição da Comunidade Europeia, primeiro, e depois da União Europeia”. Na verdade, a seu ver, estão em causa os valores de paz, após guerras “fratricidas”, e a possibilidade “de união e progresso em comum”, que se alargou ao Leste, após a queda do Muro de Berlim, além do modelo económico europeu, que procura “continuar a equilibrar o aspeto da justiça social com o desenvolvimento”.

Refere que a consciência ecológica se tornou “uma urgência”, graças à ajuda do Papa Francisco e da sua encíclica ‘Laudato Si(2015).

O Padre Rico convida a fazer reviver o “espírito inicial da União Europeia”, os seus “ideais e sonhos”, como recordava a  mensagem que o Papa assinou no 50.º aniversário das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a UE: “Uma Europa solidária, uma Europa acolhedora, uma Europa que promova a dignidade de todas as pessoas”.

Nesta Europa, segundo o antigo diretor da revista ‘Brotéria – Cristianismo e Cultura’, os cidadãos são chamados a reconhecer um fundo comum e de capacidade de diálogo, sem que ninguém tenha de prescindir “daquilo que é”, pois “a Europa constrói-se, sobretudo, através do encontro entre europeus”, sendo esta consciência particularmente viva nas novas gerações.

Ora, é preciso que a presidência portuguesa atinja os objetivos, cabendo ao Governo conduzir o processo, agarrar os grandes temas, não se perdendo em erros, contradições e favoritismos, e incumbindo aos outros órgãos de soberania e a todas as entidades públicas e privadas a sincera cooperação sem tempo para separatismos e minudências, embora sem renúncia à crítica democrática, que deve ser orientada para o burilamento dos grandes temas.

2021.01.07 – Louro de Carvalho

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