O teletrabalho é, de momento, a realidade para milhares de portugueses, que
nem sempre têm facilidade em deixar o trabalho de parte, pois, num espaço
pessoal, torna-se mais difícil definir os limites de início e fim do dia de trabalho.
Com efeito, muitas vezes, o escritório está montado em lugares da casa que também
são de descanso, pelo que o “direito a desligar” ou a possibilidade de ficar offline é um dos temas que tem merecido destaque e
discussão.
A pandemia trouxe vários desafios ao mercado de trabalho e a
necessidade de rever ou clarificar as leis que o regulam, por exemplo
através do “Livro Verde para o Futuro do
Trabalho”, cujo projeto-plano foi apresentado a 25 de novembro aos
parceiros sociais.
O art.º 169.º do Código de Trabalho (CT) prevê as mesmas regras de limites do período normal
de trabalho para o trabalho presencial e à
distância, mas a questão do “direito a desligar” tem merecido cada vez mais
destaque, se bem que, para muitos juristas, a lei que existe é suficiente.
Porém, mais que olhar para a legislação sobre o direito a desligar, importa
levar a sério o horário de trabalho, o seu registo e controlo – um desafio mais
cultural que legal, como refere Ângela Afonso, advogada associada da sociedade
de advogados SLCM, ao discorrer:
“Importa recordar que ainda somos um país em
que são aceitáveis as pausas para café, para fumar e conversar ou até a
utilização da Internet e redes sociais para fins não profissionais, durante o horário de trabalho. Em contrapartida, é
socialmente bem visto estar constantemente ligado ao trabalho, contrariamente
ao que sucede noutros Estados Europeus.”.
Apesar de lhe ser inerente o “direito a desligar”, o teletrabalho trouxe vantagens, como a possibilidade de maior
capacidade de gestão do tempo, mais flexibilidade e facilidade em conciliar a
vida pessoal e profissional. E, além de tais possibilidades
constituírem benefícios, também representam desafios no mercado de trabalho para
os quais o “Livro Verde para o Futuro do
Trabalho” deve garantir soluções.
Segundo a lei, o trabalho prestado fora do horário laboral é
tido como “suplementar”, pelo que se aplica apenas em casos de exceção,
para responder a um aumento súbito e pontual do volume de trabalho ou para
prevenir prejuízos graves para a empresa ou serviço. Mas à distância, as horas
de trabalho parecem estender-se, por exemplo, para quem tem a cargo obrigações
familiares. E isso impõe a revisão dos mecanismos de
controlo da atividade e dos tempos de trabalho, essenciais para assegurar o
respeito pelos tempos de trabalho e de descanso, para o que não basta a
previsão do direito a desligar formulado de forma vaga e indefinida.
Também por lei, o trabalhador, fora do seu horário de trabalho, não tem de estar disponível para a prestação de trabalho,
por exemplo, para acompanhar e responder a emails ou telefonemas, nem pode ser penalizado por, nos períodos de descanso, desligar os
equipamentos digitais.
Ora, as empresas ou serviços e trabalhadores já dispõem dos mecanismos
necessários para a criação de regras de
organização e funcionamento das estruturas tendentes à materialização desse
direito e para controlarem o cumprimento dessas regras. Basta que tudo
fique acertado em sede de contratação coletiva e nos contratos individuais de
trabalho.
O teletrabalho veio para ficar e, para muitas empresas e serviços, vai
continuar, pelo menos, ao longo deste ano, trazendo ainda mais desafios
para quem gere pessoas à distância. Por isso, há diretores de recursos humanos que reconhecem a necessidade de se
pensar sobre o direito dos trabalhadores a ficar offline
para salvaguardar a conciliação entre a vida pessoal e familiar e realçam
algumas falhas na lei. Com efeito, certas matérias em termos de direito de
trabalho ou fiscal, sobretudo as atinentes à gestão de tempos no trabalho ou ao
local de trabalho, estão muito assentes no modelo do escritório e
registo de tempos, sendo que algumas das regras têm difícil aplicação em
contexto de trabalho que se realize a partir de diferentes locais ou até
países.
Por outro lado, o “direito a desligar” afigura-se como “uma
obrigação” imposta pela crise causada pela pandemia, pois, todos fomos
obrigados a parar ou abrandar e a atentar no valor e importância de outras
áreas fundamentais da dimensão humana. Na verdade, uma sociedade equilibrada,
culta, saudável e disponível para o desenvolvimento dos cidadãos e do coletivo
postula que aprendamos a “desligar’. De facto, quem valorizou esta
experiência oferecerá resistência em voltar a padrões que lhes retirem este
equilíbrio.
O reforço da utilização de ferramentas digitais em teletrabalho traz novas preocupações de
regulação da sua atualização, relacionadas com o “direito a desligar” e o reforço
da proteção dos mecanismos de conciliação da vida profissional com a vida
pessoal.
Mais que o direito a desligar computador e telemóvel a determinada hora, as
pessoas pretendem sentir a capacidade de organizarem melhor o seu tempo de
trabalho e o seu tempo livre, pelo que a regulamentação do direito a desligar
deve responder às necessidades do trabalhador.
Em entrevista à “Pessoas” em
dezembro passado, o advogado Guilherme Machado Dray, Professor Auxiliar da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa e coordenador do grupo de trabalho para o “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”, considerou não ser necessária lei específica para o teletrabalho,
mas há quem defenda que este documento poderá ajudar a esclarecer os
desafios do teletrabalho e salvaguardar os direitos dos trabalhadores.
Assim, o documento poderá identificar uma parte significativa dos
trabalhadores que não desligará por fatores exógenos que não têm a
ver com a lei e constituir uma forma de colocar por escrito soluções
para os desafios atuais do mundo do trabalho, garantindo que há
ferramentas para responder às novas formas de organização do tempo de trabalho
que permitam uma conciliação mais efetiva entre a vida profissional, pessoal e
familiar e um modo de controlar a atividade e os tempos de trabalho nesta
modalidade. E, ainda, abrirá caminho para esclarecer e reforçar pontos
relevantes a respeitar como os respeitantes à confidencialidade, disponibilidade,
saúde mental nas organizações e gestão de equipas à distância. E, como a
nada mudou em termos formais, espera-se que o grupo de trabalho que
está a elaborar o “Livro Verde para o
Futuro do Trabalho” enuncie tópicos que nunca foram discutidos a
fundo e legislados, por serem, até há pouco, aplicáveis apenas a uma minoria de
empresas e serviços.
***
Apesar de haver lei, nos últimos dois meses, quase 40% da população
empregada portuguesa foi contactada por motivos profissionais durante o
período de descanso. Quase 30%
dizem trabalhar sempre ou muitas vezes sob pressão de tempo. E os dados
do INE (Instituto
Nacional de Estatística) revelam que 13,2% dos trabalhadores foram contactados pelos empregadores foram
mesmo levados a trabalhar fora do horário normal.
Segundo o “Inquérito ao Emprego”, 55,3% da população empregada nunca foi contactada
profissionalmente fora do horário de trabalho. Em sentido inverso, quase
40% dos trabalhadores receberam este tipo de contactos: 20,2% uma ou duas vezes; 5,3% mais que duas vezes, mas sem
expectativa de diligências; 13,2% mais do que duas vezes e
com expectativa de diligências. Por atividade económica, a maior
percentagem (83,3%) verificou-se na agricultura, produção animal, caça, floresta e
pesca e a menor (31%) nas atividades
imobiliárias. Este dado é deveras relevante agora que o direito a desligar está em discussão, após ter sido
inscrito na lei francesa. Em Portugal, vários partidos (PS, PCP e
BE) tentaram seguir esse exemplo em
sede de revisão do CT, mas a norma acabou por não ser aprovada, por
divergências na sua formulação.
Não obstante, ainda que não esteja expressamente previsto na lei, o
direito à desconexão já está inscrito, por exemplo, no acordo de empresa do BdP
(Banco de
Portugal), estipulando a proibição de o empregador exigir que o trabalhador se mantenha
conectado nos períodos de descanso.
Os dados do INE indicam que 28,8% dos trabalhadores dizem
trabalhar sempre, ou muitas vezes, sob pressão de tempo, “tendo de
terminar tarefas e trabalhos ou tomar decisões dentro de prazos considerados
insuficientes”. E o INE destaca:
“Nos três níveis de escolaridade
considerados, a percentagem é maior entre aqueles que têm ensino superior
(41,8%) e menor entre aqueles com escolaridade até ao ensino básico – 3.º
ciclo (18,6%). Entre as atividades económicas com valores significativos, a maior percentagem verificou-se nas atividades financeiras e de
seguros (52,3%).”.
Não obstante, 63,3% dos trabalhadores garantem que o seu
horário diário é só pontualmente alterado (uma vez por mês ou nunca) devido às exigências do trabalho, dos clientes ou dos
superiores hierárquicos. Em sentido inverso, 19,6% dos trabalhos veem os
seus horários mudados por essas razões todas as semanas e 5,3%
todos os meses. São mais as mulheres quem menos vezes tem de alterar as suas horas
habituais de trabalho (66,4%, contra 60,2% dos homens), sendo nas indústrias transformadoras que se regista
o maior número destas situações.
Quanto à definição do horário, para 64,7% dos trabalhadores, o horário é decidido, não pelo próprio,
mas pelo empregador, clientes ou disposições legais. No entanto, 67,6% dizem
que é fácil ou muito fácil ausentar-se, por motivos pessoais ou familiares, do
seu local de trabalho por um curto período de tempo (uma ou
duas horas),
avisando no próprio dia ou na véspera. E, para 42,8% da população empregada (46,2% entre
os homens e 39,4% entre as mulheres), é fácil ou muito fácil tirar um ou dois dias de férias planeados
com pouca antecedência. Porém, esta percentagem é mais baixa (39,9%) entre os trabalhadores por conta de outrem.
***
Em vésperas de assumir a Presidência da UE, mais precisamente a 25 de
novembro de 2020, o Governo abriu os trabalhos para a elaboração do “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”.
E Guilherme Machado Dray, na referida entrevista, entre outras coisas,
refere que a pandemia “veio dar quase uma legitimidade acrescida, por força da
massificação do teletrabalho”.
Não contendo o livro propostas legislativas, todavia, contempla áreas
importantes, como as atinentes à digitalização, trabalho nas plataformas
digitais, microtarefas nas plataformas digitais, teletrabalho, privacidade e
vantagens/desvantagens associadas a estes elementos, como quer a Ministra do
Trabalho. E, em nome da dignidade do trabalho, há que promover a inclusão e a
universalização da Segurança Social e debelar a precariedade e o trabalho
informal.
O grupo de trabalho olhará o regime legal existente para o teletrabalho –
criado em 2003 e retocado em 2009, em consonância com a UE, que deu três opções
aos Estados-membros: códigos de conduta, negociação coletiva ou via
legislativa. E Portugal optou pela via legislativa, designadamente o CT, em
2003. Porém, visto que a covid-19 fez com que o teletrabalho passasse de
residual a massificado, é preciso “capitalizar tudo o que há de bom no
teletrabalho – do ponto de vista ambiental, redução de tráfego urbano diário,
redução de emissões de CO2, fixação das pessoas no interior e zonas rurais e
desfavorecidas”. Por outro lado, é de relevar que, para os trabalhadores,
também tem aspetos positivos, nomeadamente o não terem de se deslocar
diariamente para o local de trabalho, a redução do tempo de commuting, o aumento da qualidade de
vida, a maior conciliação com a vida familiar, o aumento da liberdade de
trabalho. Ao invés, é de anotar que o teletrabalho tem desvantagens associadas:
maior isolamento, maior dificuldade de ascensão na carreira – por força do
isolamento –, algum ostracismo, trabalho para lá do limite do período normal do
trabalho e questões de privacidade por intrusão de software no domicílio do
trabalhador. São matérias constantes do CT, mas que precisam de reforço, por
exemplo no quadro da privacidade, segurança e saúde no trabalho e limitação do
tempo de trabalho/direito à desconexão.
E afirma o advogado-académico que o Estado Social
tem de olhar a nova e numerosa vaga de trabalhadores independentes e trazê-los para dentro do sistema, de forma que, em
poucos anos, não fiquem sem apoio social. Não se trata de o Estado dar uma
forma paternalista de proteção, mas de cumprir o dever de proteção para com os
cidadãos em situação de vulnerabilidade.
O Livro Verde terá linhas de orientação sobre o direito de desligar. Uns
dizem que tal direito já está no CT, outros pensam que não e outros acham que
isso deve ser clarificado. Com efeito, houve muitas pessoas que trabalharam
muito além das 8 horas diárias e mantiveram contacto permanente com o
empregador porque não havia contacto físico e presencial e, portanto,
estendeu-se para lá do normal – o que pode justificar uma intervenção legislativa.
Reconhece o académico que a pandemia aumenta a desigualdade na medida em que tem um reflexo
económico que pode, por sua vez, implicar uma perda ou redução de emprego em
várias empresas e serviços. Por isso, o Governo tentou atuar – e atuou –
através de vários regimes de lay-offs, precisamente para preservar o emprego.
Obviamente, em situações de crise, os mais desfavorecidos tendem a ficar ainda
mais e, se não houver uma intervenção do Estado na linha do apoio social, há um
risco grande de a desigualdade aumentar.
Adverte Gray que uma coisa são as medidas conjunturais como as que estão a ser
tomadas, como o lay-off simplificado ou o apoio à reforma progressiva ou o
desfasamento de horários, e outra “são reformas estruturantes e que tendem a
ficar para o futuro do Código do Trabalho”.
Sobre o desenho de nova legislação do
teletrabalho, aponta que o CT é uma base muito boa, pois tem regras sobre vários aspetos: liberdade de
celebração, reserva de privacidade, afiliação sindical dos teletrabalhadores, o
princípio da igualdade, etc.. E dá às partes a oportunidade de fixarem o modo
de teletrabalho por acordo entre as partes, que o podem fazer parcial ou
integralmente, e incentiva a que haja sempre períodos de permanência do teletrabalhador
na empresa, a qual deve promover o contacto com o trabalhador, e até com
deslocações semanais à empresa, para evitar o isolamento do teletrabalhador. Haverá,
porém, conveniência em clarificar um ou outro ponto e até partir para o aumento
dos casos de isenção do horário de trabalho.
É de clarificar se um
percalço, que é acidente de trabalho se ocorrer na empresa ou serviço, também o
será se ocorrer em casa no horário de trabalho, como são de clarificar todos os
aspetos conexos com a segurança e a saúde no trabalho respeitantes a esta
modalidade. E, se for preciso ou conveniente, faça-se lei, mas, sobretudo, cuide-se
da formação e da ética laboral.
Do “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”
foi apresentado pelo Governo o projeto-plano. O projeto devidamente afinado
será apresentado aos parceiros sociais até ao fim do 1.º trimestre. E o produto
final estará pronto antes do fim do ano.
Prosit!
2021.01.31 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário