domingo, 31 de janeiro de 2021

“Direito a desligar”: primeiro, é preciso cumprir a Lei, que é suficiente

 

O teletrabalho é, de momento, a realidade para milhares de portugueses, que nem sempre têm facilidade em deixar o trabalho de parte, pois, num espaço pessoal, torna-se mais difícil definir os limites de início e fim do dia de trabalho. Com efeito, muitas vezes, o escritório está montado em lugares da casa que também são de descanso, pelo que o “direito a desligar” ou a possibilidade de ficar offline é um dos temas que tem merecido destaque e discussão.

pandemia trouxe vários desafios ao mercado de trabalho e a necessidade de rever ou clarificar as leis que o regulam, por exemplo através do “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”, cujo projeto-plano foi apresentado a 25 de novembro aos parceiros sociais.

O art.º 169.º do Código de Trabalho (CT) prevê as mesmas regras de limites do período normal de trabalho para o trabalho presencial e à distância, mas a questão do “direito a desligar” tem merecido cada vez mais destaque, se bem que, para muitos juristas, a lei que existe é suficiente. Porém, mais que olhar para a legislação sobre o direito a desligar, importa levar a sério o horário de trabalho, o seu registo e controlo – um desafio mais cultural que legal, como refere Ângela Afonso, advogada associada da sociedade de advogados SLCM, ao discorrer:

Importa recordar que ainda somos um país em que são aceitáveis as pausas para café, para fumar e conversar ou até a utilização da Internet e redes sociais para fins não profissionais, durante o horário de trabalho. Em contrapartida, é socialmente bem visto estar constantemente ligado ao trabalho, contrariamente ao que sucede noutros Estados Europeus.”.

Apesar de lhe ser inerente o “direito a desligar”, o teletrabalho trouxe vantagens, como a possibilidade de maior capacidade de gestão do tempo, mais flexibilidade e facilidade em conciliar a vida pessoal e profissional. E, além de tais possibilidades constituírem benefícios, também representam desafios no mercado de trabalho para os quais o “Livro Verde para o Futuro do Trabalho” deve garantir soluções.

Segundo a lei, o trabalho prestado fora do horário laboral é tido como “suplementar”, pelo que se aplica apenas em casos de exceção, para responder a um aumento súbito e pontual do volume de trabalho ou para prevenir prejuízos graves para a empresa ou serviço. Mas à distância, as horas de trabalho parecem estender-se, por exemplo, para quem tem a cargo obrigações familiares. E isso impõe a revisão dos mecanismos de controlo da atividade e dos tempos de trabalho, essenciais para assegurar o respeito pelos tempos de trabalho e de descanso, para o que não basta a previsão do direito a desligar formulado de forma vaga e indefinida.

Também por lei, o trabalhador, fora do seu horário de trabalho, não tem de estar disponível para a prestação de trabalho, por exemplo, para acompanhar e responder a emails ou telefonemas, nem pode ser penalizado por, nos períodos de descanso, desligar os equipamentos digitais.

Ora, as empresas ou serviços e trabalhadores já dispõem dos mecanismos necessários para a criação de regras de organização e funcionamento das estruturas tendentes à materialização desse direito e para controlarem o cumprimento dessas regras. Basta que tudo fique acertado em sede de contratação coletiva e nos contratos individuais de trabalho.

O teletrabalho veio para ficar e, para muitas empresas e serviços, vai continuar, pelo menos, ao longo deste ano, trazendo ainda mais desafios para quem gere pessoas à distância. Por isso, há diretores de recursos humanos que reconhecem a necessidade de se pensar sobre o direito dos trabalhadores a ficar offline para salvaguardar a conciliação entre a vida pessoal e familiar e realçam algumas falhas na lei. Com efeito, certas matérias em termos de direito de trabalho ou fiscal, sobretudo as atinentes à gestão de tempos no trabalho ou ao local de trabalho, estão muito assentes no modelo do escritório e registo de tempos, sendo que algumas das regras têm difícil aplicação em contexto de trabalho que se realize a partir de diferentes locais ou até países.

Por outro lado, o “direito a desligar” afigura-se como “uma obrigação” imposta pela crise causada pela pandemia, pois, todos fomos obrigados a parar ou abrandar e a atentar no valor e importância de outras áreas fundamentais da dimensão humana. Na verdade, uma sociedade equilibrada, culta, saudável e disponível para o desenvolvimento dos cidadãos e do coletivo postula que aprendamos a “desligar’. De facto, quem valorizou esta experiência oferecerá resistência em voltar a padrões que lhes retirem este equilíbrio.

O reforço da utilização de ferramentas digitais em teletrabalho traz novas preocupações de regulação da sua atualização, relacionadas com o “direito a desligar” e o reforço da proteção dos mecanismos de conciliação da vida profissional com a vida pessoal.

Mais que o direito a desligar computador e telemóvel a determinada hora, as pessoas pretendem sentir a capacidade de organizarem melhor o seu tempo de trabalho e o seu tempo livre, pelo que a regulamentação do direito a desligar deve responder às necessidades do trabalhador. 

Em entrevista à “Pessoas” em dezembro passado, o advogado Guilherme Machado Dray, Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e coordenador do grupo de trabalho para o “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”, considerou não ser necessária lei específica para o teletrabalho, mas há quem defenda que este documento poderá ajudar a esclarecer os desafios do teletrabalho e salvaguardar os direitos dos trabalhadores.

Assim, o documento poderá identificar uma parte significativa dos trabalhadores que não desligará por fatores exógenos que não têm a ver com a lei e constituir uma forma de colocar por escrito soluções para os desafios atuais do mundo do trabalho, garantindo que há ferramentas para responder às novas formas de organização do tempo de trabalho que permitam uma conciliação mais efetiva entre a vida profissional, pessoal e familiar e um modo de controlar a atividade e os tempos de trabalho nesta modalidade. E, ainda, abrirá caminho para esclarecer e reforçar pontos relevantes a respeitar como os respeitantes à confidencialidade, disponibilidade, saúde mental nas organizações e gestão de equipas à distância. E, como a nada mudou em termos formais, espera-se que o grupo de trabalho que está a elaborar o “Livro Verde para o Futuro do Trabalhoenuncie tópicos que nunca foram discutidos a fundo e legislados, por serem, até há pouco, aplicáveis apenas a uma minoria de empresas e serviços.

***

Apesar de haver lei, nos últimos dois meses, quase 40% da população empregada portuguesa foi contactada por motivos profissionais durante o período de descanso. Quase 30% dizem trabalhar sempre ou muitas vezes sob pressão de tempo. E os dados do INE (Instituto Nacional de Estatística) revelam que 13,2% dos trabalhadores foram contactados pelos empregadores foram mesmo levados a trabalhar fora do horário normal.

Segundo o “Inquérito ao Emprego”, 55,3% da população empregada nunca foi contactada profissionalmente fora do horário de trabalho. Em sentido inverso, quase 40% dos trabalhadores receberam este tipo de contactos: 20,2% uma ou duas vezes; 5,3% mais que duas vezes, mas sem expectativa de diligências; 13,2% mais do que duas vezes e com expectativa de diligências. Por atividade económica, a maior percentagem (83,3%) verificou-se na agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca e a menor (31%) nas atividades imobiliárias. Este dado é deveras relevante agora que o direito a desligar está em discussão, após ter sido inscrito na lei francesa. Em Portugal, vários partidos (PS, PCP e BE) tentaram seguir esse exemplo em sede de revisão do CT, mas a norma acabou por não ser aprovada, por divergências na sua formulação.

Não obstante, ainda que não esteja expressamente previsto na lei, o direito à desconexão já está inscrito, por exemplo, no acordo de empresa do BdP (Banco de Portugal), estipulando a proibição de o empregador exigir que o trabalhador se mantenha conectado nos períodos de descanso.

Os dados do INE indicam que 28,8% dos trabalhadores dizem trabalhar sempre, ou muitas vezes, sob pressão de tempo, “tendo de terminar tarefas e trabalhos ou tomar decisões dentro de prazos considerados insuficientes”. E o INE destaca:

Nos três níveis de escolaridade considerados, a percentagem é maior entre aqueles que têm ensino superior (41,8%) e menor entre aqueles com escolaridade até ao ensino básico – 3.º ciclo (18,6%). Entre as atividades económicas com valores significativos, a maior percentagem verificou-se nas atividades financeiras e de seguros (52,3%).”.

Não obstante, 63,3% dos trabalhadores garantem que o seu horário diário é só pontualmente alterado (uma vez por mês ou nunca) devido às exigências do trabalho, dos clientes ou dos superiores hierárquicos. Em sentido inverso, 19,6% dos trabalhos veem os seus horários mudados por essas razões todas as semanas e 5,3% todos os meses. São mais as mulheres quem menos vezes tem de alterar as suas horas habituais de trabalho (66,4%, contra 60,2% dos homens), sendo nas indústrias transformadoras que se regista o maior número destas situações.

Quanto à definição do horário, para 64,7% dos trabalhadores, o horário é decidido, não pelo próprio, mas pelo empregador, clientes ou disposições legais. No entanto, 67,6% dizem que é fácil ou muito fácil ausentar-se, por motivos pessoais ou familiares, do seu local de trabalho por um curto período de tempo (uma ou duas horas), avisando no próprio dia ou na véspera. E, para 42,8% da população empregada (46,2% entre os homens e 39,4% entre as mulheres)é fácil ou muito fácil tirar um ou dois dias de férias planeados com pouca antecedência. Porém, esta percentagem é mais baixa (39,9%) entre os trabalhadores por conta de outrem.

***

Em vésperas de assumir a Presidência da UE, mais precisamente a 25 de novembro de 2020, o Governo abriu os trabalhos para a elaboração do “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”.

E Guilherme Machado Dray, na referida entrevista, entre outras coisas, refere que a pandemia “veio dar quase uma legitimidade acrescida, por força da massificação do teletrabalho”.

Não contendo o livro propostas legislativas, todavia, contempla áreas importantes, como as atinentes à digitalização, trabalho nas plataformas digitais, microtarefas nas plataformas digitais, teletrabalho, privacidade e vantagens/desvantagens associadas a estes elementos, como quer a Ministra do Trabalho. E, em nome da dignidade do trabalho, há que promover a inclusão e a universalização da Segurança Social e debelar a precariedade e o trabalho informal.

O grupo de trabalho olhará o regime legal existente para o teletrabalho – criado em 2003 e retocado em 2009, em consonância com a UE, que deu três opções aos Estados-membros: códigos de conduta, negociação coletiva ou via legislativa. E Portugal optou pela via legislativa, designadamente o CT, em 2003. Porém, visto que a covid-19 fez com que o teletrabalho passasse de residual a massificado, é preciso “capitalizar tudo o que há de bom no teletrabalho – do ponto de vista ambiental, redução de tráfego urbano diário, redução de emissões de CO2, fixação das pessoas no interior e zonas rurais e desfavorecidas”. Por outro lado, é de relevar que, para os trabalhadores, também tem aspetos positivos, nomeadamente o não terem de se deslocar diariamente para o local de trabalho, a redução do tempo de commuting, o aumento da qualidade de vida, a maior conciliação com a vida familiar, o aumento da liberdade de trabalho. Ao invés, é de anotar que o teletrabalho tem desvantagens associadas: maior isolamento, maior dificuldade de ascensão na carreira – por força do isolamento –, algum ostracismo, trabalho para lá do limite do período normal do trabalho e questões de privacidade por intrusão de software no domicílio do trabalhador. São matérias constantes do CT, mas que precisam de reforço, por exemplo no quadro da privacidade, segurança e saúde no trabalho e limitação do tempo de trabalho/direito à desconexão.

E afirma o advogado-académico que o Estado Social tem de olhar a nova e numerosa vaga de trabalhadores independentes e trazê-los para dentro do sistema, de forma que, em poucos anos, não fiquem sem apoio social. Não se trata de o Estado dar uma forma paternalista de proteção, mas de cumprir o dever de proteção para com os cidadãos em situação de vulnerabilidade.

O Livro Verde terá linhas de orientação sobre o direito de desligar. Uns dizem que tal direito já está no CT, outros pensam que não e outros acham que isso deve ser clarificado. Com efeito, houve muitas pessoas que trabalharam muito além das 8 horas diárias e mantiveram contacto permanente com o empregador porque não havia contacto físico e presencial e, portanto, estendeu-se para lá do normal – o que pode justificar uma intervenção legislativa.

Reconhece o académico que a pandemia aumenta a desigualdade na medida em que tem um reflexo económico que pode, por sua vez, implicar uma perda ou redução de emprego em várias empresas e serviços. Por isso, o Governo tentou atuar – e atuou – através de vários regimes de lay-offs, precisamente para preservar o emprego. Obviamente, em situações de crise, os mais desfavorecidos tendem a ficar ainda mais e, se não houver uma intervenção do Estado na linha do apoio social, há um risco grande de a desigualdade aumentar.

Adverte Gray que uma coisa são as medidas conjunturais como as que estão a ser tomadas, como o lay-off simplificado ou o apoio à reforma progressiva ou o desfasamento de horários, e outra “são reformas estruturantes e que tendem a ficar para o futuro do Código do Trabalho”.

Sobre o desenho de nova legislação do teletrabalho, aponta que o CT é uma base muito boa, pois tem regras sobre vários aspetos: liberdade de celebração, reserva de privacidade, afiliação sindical dos teletrabalhadores, o princípio da igualdade, etc.. E dá às partes a oportunidade de fixarem o modo de teletrabalho por acordo entre as partes, que o podem fazer parcial ou integralmente, e incentiva a que haja sempre períodos de permanência do teletrabalhador na empresa, a qual deve promover o contacto com o trabalhador, e até com deslocações semanais à empresa, para evitar o isolamento do teletrabalhador. Haverá, porém, conveniência em clarificar um ou outro ponto e até partir para o aumento dos casos de isenção do horário de trabalho.

É de clarificar se um percalço, que é acidente de trabalho se ocorrer na empresa ou serviço, também o será se ocorrer em casa no horário de trabalho, como são de clarificar todos os aspetos conexos com a segurança e a saúde no trabalho respeitantes a esta modalidade. E, se for preciso ou conveniente, faça-se lei, mas, sobretudo, cuide-se da formação e da ética laboral.

Do “Livro Verde para o Futuro do Trabalho” foi apresentado pelo Governo o projeto-plano. O projeto devidamente afinado será apresentado aos parceiros sociais até ao fim do 1.º trimestre. E o produto final estará pronto antes do fim do ano.

Prosit!

2021.01.31 – Louro de Carvalho 

Sem comentários:

Enviar um comentário