Francisco,
pela Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio “Spiritus Domini”, de 10 de janeiro e divulgada no dia seguinte,
modifica o § 1 do Cân. 230 do Código de Direito Canónico (CIC).
Assim, onde
se lia:
“Os leigos
do sexo masculino, possuidores da idade e das qualidades determinadas por
decreto da Conferência episcopal, podem, mediante o rito litúrgico, ser
assumidos de modo estável para desempenharem os ministérios de leitor e de acólito;
porém, a colação destes ministérios não lhes confere o direito à sustentação ou
remuneração por parte da Igreja”,
Passa
a ler-se:
“Os leigos que tiverem a
idade e as aptidões determinadas por decreto da Conferência Episcopal podem ser
assumidos estavelmente, mediante o rito litúrgico estabelecido, nos ministérios
de leitores e de acólitos; no entanto, tal concessão não lhes atribui o direito
ao sustento ou à remuneração por parte da Igreja”.
Isto o fez o Santo Padre, tendo ouvido os
competentes dicastérios, e dispôs, do mesmo modo, a modificação das outras disposições, corroboradas pela
lei, que se referem a este cânone
Enfim,
bastou a eliminação do modificador (do sexo masculino) do nome “leigos” para abrir às mulheres a porta da
institucionalização nos ministérios de leitor/a e de acólito/a. Aparentemente
não haverá novidade para quem esteja desatento, visto que, na prática, as
mulheres já leem na Igreja e servem ao altar. Com efeito, o § 2 do mesmo cânone
do CIC já estabelecia:
“Os leigos, por deputação temporária, podem desempenhar nas ações
litúrgicas a função de leitor; da mesma forma todos os leigos podem desempenhar
as funções de comentador, cantor e outras, segundo as normas do direito”.
E o § 3
já ia ainda mais longe ao estipular:
“Onde as necessidades da Igreja o aconselharem, por falta de ministros,
os leigos, mesmo que não sejam leitores ou acólitos, podem suprir alguns
ofícios, como os de exercer o ministério da palavra, presidir às orações
litúrgicas, conferir o batismo e distribuir a sagrada Comunhão, segundo as
prescrições do direito”.
Ora, as
disposições do § 2 e
do § 3 mantêm-se inalteradas (no atinente a homens e a mulheres).
A
mudança, no entanto, é mais relevante do que parece. Com efeito, por norma,
eram instituídos no ministério de leitor e no de acólito apenas homens, de
acordo com a venerável tradição invocada por São Paulo VI na Carta Apostólica sob forma de Motu
Proprio “Ministeria quaedam” (15 de agosto de 1972), sendo que a institucionalização de tais ministérios, embora não exclusiva
para o efeito, era condição para o acesso ao diaconado e, consequentemente, ao
presbiterado e ao episcopado, a menos que dela a santa Sé viesse a dispensar.
Por outro lado, os homens que estivessem instituídos no ministério de leitor podiam
exercê-lo de forma estável e de preferência a outras pessoas, a menos que as
circunstâncias aconselhassem de outro modo. De igual maneira, sucedia com o
ministério de acólito.
E é de referir que ninguém era instituído no ministério de acólito sem ter sido
instituído no ministério de leitor e sem ter exercido funções inerentes a esse
ministério. Ora tudo isto que era aplicável aos homens mantém-se, passa a
aplicar-se às mulheres e postula-se, além disso, a maior frequência da
institucionalização e estabilização nestes ministérios laicais com base numa
formação específica mais sólida.
Tal formação há de relevar mais a conexão com o sacerdócio comum dos fiéis
batizados do que com o sacerdócio ministerial ordenado, como ainda deixa
transparecer o “Ministeria quaedam”,
cujo objetivo parecia esgotar-se na abolição da prima tonsura, das ordens
menores (ostiário, leitor, exorcista e acólito) e do subdiaconado, podendo as conferências episcopais
manter o subdiaconado em vez do acolitado, e na entrada no estado clerical pelo
diaconado.
***
Trata-se da 5.ª alteração ao CIC e da 4.ª introduzida pelo Papa Francisco.
As alterações ao CIC foram introduzidas pelas seguintes Cartas Apostólicas sob
forma de Motu Proprio: “Omnium in mentem”
(26 de outubro de 2009, de Bento XVI); “Mitis Iudex Dominus Iesus” (15 de agosto de 2015); “De concordia inter Codices”
(31 de maio de 31 de maio de 2016); “Authenticum charismatis”
(1 de novembro de 2020); e a atual “Spiritus Domini” (10 de janeiro de 2021).
***
Fundamenta-se a decisão papal na convicção de que “o Espírito do Senhor
Jesus, fonte perene da vida e missão da Igreja, distribui aos membros do Povo
de Deus os dons que permitem a cada um, de modo diverso, contribuir para a
edificação da Igreja e para o anúncio do Evangelho” – carismas, que
reconhecidos e instituídos pela Igreja, “são postos à disposição da comunidade
e da sua missão de forma estável”. Enquanto alguns têm origem no sacramento da
Ordem, outros foram instituídos mediante rito litúrgico que não assume a forma
de sacramento, mas se entende como decorrente do sacramento do Batismo e
constituindo forma peculiar do exercício do sacerdócio batismal e preciosa
ajuda ao ministério de bispo, presbítero e diácono.
A receção dos ministérios laicais de leitor e acólito, regulamentada no “Ministeria quaedam”, precedia em forma
de preparação a receção do Sacramento da Ordem, embora fosse conferida a outros
fiéis idóneos do sexo masculino. Entretanto, algumas Assembleias do Sínodo dos
Bispos realçaram a necessidade de aprofundamento do tema para responder à
natureza dos carismas e às exigências dos tempos em prol de oportuno apoio à
evangelização. E a doutrina evidenciou que determinados ministérios têm como
fundamento a condição comum de batizado e o sacerdócio real, recebido no
Sacramento do Batismo, pelo que são essencialmente distintos do ministério
ordenado, recebido com o Sacramento da Ordem. E a prática consolidada na Igreja
latina confirma que tais ministérios, baseados no Sacramento do Batismo, podem
ser confiados a todos os fiéis que forem idóneos, do sexo masculino ou feminino,
de acordo com o implicitamente previsto no § 2 do cânone 230.
A par da ““Spiritus Domini”, Francisco explica a
sua decisão em carta ao Cardeal Luis Ladaria, Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé (CDF).
Recorda que o n.º 117 da “Evangelii
gaudium” declara que o Espírito Santo, edificando e alimentando a comunhão
de todo o Povo de Deus, suscita nele dons e carismas diferentes e que, pelo
Batismo, Crisma e Eucaristia, os membros do Corpo de Cristo recebem do Espírito
do Ressuscitado, em diferentes graus e com diferentes expressões, os dons que
lhes permitem dar o seu contributo para a edificação da Igreja e para o anúncio
do Evangelho a todas as criaturas.
Refere que Paulo distingue dons de graça-carismas (charismata) e serviços (“diakoniai” – “ministeria”), pelo que, segundo a tradição da Igreja,
chamam-se ministérios as diferentes formas que os carismas assumem ao serem
reconhecidos publicamente e postos à disposição da comunidade e da sua missão
de forma estável.
Ora, nalguns casos, o ministério tem origem no sacramento da Ordem Sagrada:
os ministérios “ordenados” de bispo, presbítero e diácono; noutros casos, o
ministério é confiado, por ato litúrgico do bispo, a pessoa que recebeu o
Batismo e a Confirmação e em quem são reconhecidos carismas específicos, após
um adequado caminho de preparação: os ministérios “instituídos”. Muitos outros
serviços ou cargos são exercidos de facto por muitos membros da comunidade para
o bem da Igreja e, muitas vezes por um longo período e com grande eficácia, sem
que seja previsto rito particular para conferir o cargo.
Esclarece que o exercício dos ministérios, com a mudança das situações
eclesiais, sociais e culturais, assumiu diferentes formas, enquanto permaneceu
intacta a distinção (não só de grau) entre ministérios instituídos ou laicais
e ministérios ordenados. Os primeiros exprimem a condição sacerdotal e real
própria do batizado, ao passo que os segundos são próprios dos membros do Povo
de Deus que, como bispos e sacerdotes, recebem a missão de agir na pessoa de
Cristo Cabeça ou, como diáconos, estão habilitados a servir o Povo de Deus na
diaconia da liturgia, da palavra e da caridade” (cf Bento “Omnium in mentem”). Porem, é de reiterar que, segundo a “Lumen gentium” (constituição dogmática sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II), “estão ordenados uns aos outros e cada
um, a seu modo, participa no único sacerdócio de Cristo” (LG n. 10).
Frisa que a adaptação às exigências dos tempos a que procedeu o “Ministeria quaedam” não se deve ser
interpretar como superação da doutrina anterior, mas como implementação do
dinamismo caraterizador da natureza da Igreja, chamada com a ajuda do Espírito
de Verdade a responder aos desafios de cada época, em obediência à Revelação. Assim,
o documento de São Paulo VI configura dois ofícios, o do leitor e o do acólito,
o primeiro conexo com o ministério da Palavra, o segundo com o do ministério do
Altar, mas sem excluir outros ofícios a instituir pela Santa Sé a pedido das
Conferências Episcopais. Por outro lado, evidencia que “a variação nas formas
de exercício dos ministérios não ordenados não é mera consequência do desejo de
adaptação” às sensibilidades dos tempos e lugares, mas “é determinada pela
necessidade de permitir a cada Igreja particular, em comunhão com todas as
outras e tendo como centro de unidade a Igreja de Roma, viver a ação litúrgica,
o serviço aos pobres e o anúncio do Evangelho em fidelidade ao mandato de Cristo”.
É, pois, tarefa dos Pastores reconhecer os dons de cada batizado, orientá-los
para ministérios específicos, promovê-los e coordená-los para contribuírem “para
o bem da comunidade e para a missão confiada a todos os discípulos”. Todavia, o
compromisso dos fiéis leigos, que são a imensa maioria do povo de Deus, não
pode esgotar-se no exercício dos ministérios não ordenados, mas a configuração melhor
destes ministérios e a referência mais precisa à responsabilidade que nasce do
Batismo e da Confirmação para cada cristão ajudará a Igreja a redescobrir o
sentido de comunhão que a carateriza e a iniciar um renovado compromisso na
catequese e celebração da fé, podendo, nesta redescoberta, encontrar melhor
tradução a sinergia frutuosa resultante da ordenação mútua do sacerdócio ordenado
e do batismal. Tal reciprocidade, chamada a refluir, na distinção das tarefas,
para o serviço de fazer de Cristo o coração do mundo, alarga os horizontes da
missão da Igreja, impedindo-a de se fechar em lógicas estéreis de reivindicação
de espaços de poder e ajudando-a a experimentar-se como uma comunidade
espiritual que, segundo a Gaudium et Spes (Constituição Pastoral sobre
a Igreja no mundo atual), “caminha juntamente com toda a humanidade, participa da mesma sorte
terrena do mundo” (GS n. 40). E assim podemos compreender o significado da “Igreja em saída”.
Observa o Papa que, na onda de renovação criada pelo Vaticano II,
cresce o sentido de urgência em redescobrir a corresponsabilidade de todos os
batizados na Igreja e especialmente a missão dos leigos. Por isso, a Assembleia
Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazónica (6-27 de outubro de 2019), no capítulo V do documento final, assinala a necessidade de “novos
caminhos para a ministerialidade eclesial” para toda a Igreja, na variedade de
situações.
Embora a “Ministeria quaedam” reserve
a instituição do ministério do leitor e do acólito aos homens e, por
conseguinte, assim o estabeleça o cânon 230 § 1 do CIC, em
tempos recentes e em muitos contextos eclesiais, tem-se verificado que a libertação
de tal reserva pode contribuir para uma maior manifestação da comum dignidade
batismal dos membros do Povo de Deus. Assim, aquando da XII Assembleia
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre “A Palavra de Deus na
Vida e na Missão da Igreja” (5-26 de outubro de 2008), os Padres sinodais expressaram a esperança “de que o ministério do leitor
seja aberto também às mulheres”; e a Exortação Apostólica pós-sinodal “Verbum Domini” (30 de setembro de 2010) especificou que o exercício do múnus do leitor na
celebração litúrgica e de, forma particular, o ministério do leitor enquanto
tal, no rito latino é um ministério laical.
Explica o Pontífice que uma “venerável tradição da Igreja” considerou as ordens
menores (inclusive o leitorado e o acolitado) como etapas do percurso conducente às ordens maiores (subdiaconado, diaconado, presbiterado e episcopado) e, porque o Sacramento da Ordem estava
reservado aos homens, tal reserva aplicava-se às ordens menores. Contudo, uma
distinção mais clara entre as atribuições dos “ministérios não ordenados ou
laicais” e “ministérios ordenados” possibilita a dissolução da reserva dos
primeiros aos homens. E, se em relação aos ministérios ordenados a Igreja “não
tem de modo algum a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres” (cf São João Paulo II, Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis, 22 de maio de 1994), é possível e oportuno superar esta
reserva para ministérios não ordenados. Ora, apesar de tal reserva fazer
sentido num contexto particular, pode ser reconsiderada em novos contextos,
tendo como critério a fidelidade ao mandato de Cristo e o desejo de viver e
proclamar o Evangelho “para que possa ser escutado de forma religiosa, guardado
de forma santa e fielmente anunciado”.
E Francisco distingue a tradição venerabilis, evocada por São Paulo VI, da tradição veneranda
(ou seja, uma tradição que “deve” ser observada). A primeira pode ser reconhecida como
válida, mas não é vinculativa, pois a reserva aos homens não pertence à
natureza dos ministérios do leitor e do acólito. Ora, oferecer aos leigos de
ambos os sexos a possibilidade de acesso a estes ministérios em virtude da sua
participação no sacerdócio batismal aumentará o reconhecimento, também através
dum ato litúrgico (instituição), da preciosa contribuição que, durante
muito tempo, muitos leigos, incluindo mulheres, oferecem à vida e missão da
Igreja.
A decisão de conferir também às mulheres estes ofícios, que implicam
estabilidade, reconhecimento público e mandato do bispo, torna mais
eficaz na Igreja a participação de todos na evangelização e permite que as
mulheres tenham incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais
importantes e na liderança das comunidades, mas sem deixar de o fazer com o
estilo próprio da marca feminina. Assim, o sacerdócio do fiel (commune sacerdotium) e o sacerdócio do
ministro ordenado (sacerdotium ministeriale seu
hierarquicum) serão ordenados mais claramente um para os
outro (cf LG n. 10), para a edificação da Igreja e para o testemunho do Evangelho.
Caberá às Conferências Episcopais gizar critérios adequados para o
discernimento e preparação dos candidatos e candidatas para os ministérios de
leitor e de acólito, ou outros ministérios que considerarem instituir, segundo
o já disposto na Ministeria quaedam,
com prévia aprovação da Santa Sé e as necessidades de evangelização no seu
território; e a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos providenciará
a implementação desta reforma alterando a Editio typica do Pontificale
romanum ou “De Institutione Lectorum et Acolythorum”.
***
Avanço significativo. Mas o documento do não acesso de mulheres à Ordem sacra
não é dogma.
2021.01.13 – Louro de Carvalho
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