quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Mulheres têm acesso institucional a ministérios de leitor/a e de acólito/a

 

Francisco, pela Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio “Spiritus Domini”, de 10 de janeiro e divulgada no dia seguinte, modifica o § 1 do Cân. 230 do Código de Direito Canónico (CIC).

Assim, onde se lia:

Os leigos do sexo masculino, possuidores da idade e das qualidades determinadas por decreto da Conferência episcopal, podem, mediante o rito litúrgico, ser assumidos de modo estável para desempenharem os ministérios de leitor e de acólito; porém, a colação destes ministérios não lhes confere o direito à sustentação ou remuneração por parte da Igreja”,

Passa a ler-se:

Os leigos que tiverem a idade e as aptidões determinadas por decreto da Conferência Episcopal podem ser assumidos estavelmente, mediante o rito litúrgico estabelecido, nos ministérios de leitores e de acólitos; no entanto, tal concessão não lhes atribui o direito ao sustento ou à remuneração por parte da Igreja”.

Isto o fez o Santo Padre, tendo ouvido os competentes dicastérios, e dispôs, do mesmo modo, a modificação das outras disposições, corroboradas pela lei, que se referem a este cânone 

Enfim, bastou a eliminação do modificador (do sexo masculino) do nome “leigos” para abrir às mulheres a porta da institucionalização nos ministérios de leitor/a e de acólito/a. Aparentemente não haverá novidade para quem esteja desatento, visto que, na prática, as mulheres já leem na Igreja e servem ao altar. Com efeito, o § 2 do mesmo cânone do CIC já estabelecia:

Os leigos, por deputação temporária, podem desempenhar nas ações litúrgicas a função de leitor; da mesma forma todos os leigos podem desempenhar as funções de comentador, cantor e outras, segundo as normas do direito”.

E o § 3 já ia ainda mais longe ao estipular:

Onde as necessidades da Igreja o aconselharem, por falta de ministros, os leigos, mesmo que não sejam leitores ou acólitos, podem suprir alguns ofícios, como os de exercer o ministério da palavra, presidir às orações litúrgicas, conferir o batismo e distribuir a sagrada Comunhão, segundo as prescrições do direito”.

Ora, as disposições do § 2 e do § 3 mantêm-se inalteradas (no atinente a homens e a mulheres).

A mudança, no entanto, é mais relevante do que parece. Com efeito, por norma, eram instituídos no ministério de leitor e no de acólito apenas homens, de acordo com a venerável tradição invocada por São Paulo VI na Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio “Ministeria quaedam (15 de agosto de 1972), sendo que a institucionalização de tais ministérios, embora não exclusiva para o efeito, era condição para o acesso ao diaconado e, consequentemente, ao presbiterado e ao episcopado, a menos que dela a santa Sé viesse a dispensar. Por outro lado, os homens que estivessem instituídos no ministério de leitor podiam exercê-lo de forma estável e de preferência a outras pessoas, a menos que as circunstâncias aconselhassem de outro modo. De igual maneira, sucedia com o ministério de acólito.

E é de referir que ninguém era instituído no ministério de acólito sem ter sido instituído no ministério de leitor e sem ter exercido funções inerentes a esse ministério. Ora tudo isto que era aplicável aos homens mantém-se, passa a aplicar-se às mulheres e postula-se, além disso, a maior frequência da institucionalização e estabilização nestes ministérios laicais com base numa formação específica mais sólida.

Tal formação há de relevar mais a conexão com o sacerdócio comum dos fiéis batizados do que com o sacerdócio ministerial ordenado, como ainda deixa transparecer o “Ministeria quaedam”, cujo objetivo parecia esgotar-se na abolição da prima tonsura, das ordens menores (ostiário, leitor, exorcista e acólito) e do subdiaconado, podendo as conferências episcopais manter o subdiaconado em vez do acolitado, e na entrada no estado clerical pelo diaconado.

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Trata-se da 5.ª alteração ao CIC e da 4.ª introduzida pelo Papa Francisco. As alterações ao CIC foram introduzidas pelas seguintes Cartas Apostólicas sob forma de Motu Proprio: “Omnium in mentem(26 de outubro de 2009, de Bento XVI); “Mitis Iudex Dominus Iesus(15 de agosto de 2015); “De concordia inter Codices(31 de maio de 31 de maio de 2016);  “Authenticum charismatis(1 de novembro de 2020); e a atual “Spiritus Domini(10 de janeiro de 2021).

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Fundamenta-se a decisão papal na convicção de que “o Espírito do Senhor Jesus, fonte perene da vida e missão da Igreja, distribui aos membros do Povo de Deus os dons que permitem a cada um, de modo diverso, contribuir para a edificação da Igreja e para o anúncio do Evangelho” – carismas, que reconhecidos e instituídos pela Igreja, “são postos à disposição da comunidade e da sua missão de forma estável”. Enquanto alguns têm origem no sacramento da Ordem, outros foram instituídos mediante rito litúrgico que não assume a forma de sacramento, mas se entende como decorrente do sacramento do Batismo e constituindo forma peculiar do exercício do sacerdócio batismal e preciosa ajuda ao ministério de bispo, presbítero e diácono.

A receção dos ministérios laicais de leitor e acólito, regulamentada no “Ministeria quaedam”, precedia em forma de preparação a receção do Sacramento da Ordem, embora fosse conferida a outros fiéis idóneos do sexo masculino. Entretanto, algumas Assembleias do Sínodo dos Bispos realçaram a necessidade de aprofundamento do tema para responder à natureza dos carismas e às exigências dos tempos em prol de oportuno apoio à evangelização. E a doutrina evidenciou que determinados ministérios têm como fundamento a condição comum de batizado e o sacerdócio real, recebido no Sacramento do Batismo, pelo que são essencialmente distintos do ministério ordenado, recebido com o Sacramento da Ordem. E a prática consolidada na Igreja latina confirma que tais ministérios, baseados no Sacramento do Batismo, podem ser confiados a todos os fiéis que forem idóneos, do sexo masculino ou feminino, de acordo com o implicitamente previsto no § 2 do cânone 230.

A par da ““Spiritus Domini”, Francisco explica a sua decisão em carta ao Cardeal Luis Ladaria, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF).

Recorda que o n.º 117 da “Evangelii gaudium” declara que o Espírito Santo, edificando e alimentando a comunhão de todo o Povo de Deus, suscita nele dons e carismas diferentes e que, pelo Batismo, Crisma e Eucaristia, os membros do Corpo de Cristo recebem do Espírito do Ressuscitado, em diferentes graus e com diferentes expressões, os dons que lhes permitem dar o seu contributo para a edificação da Igreja e para o anúncio do Evangelho a todas as criaturas.

Refere que Paulo distingue dons de graça-carismas (charismata) e serviços (“diakoniai” – “ministeria”), pelo que, segundo a tradição da Igreja, chamam-se ministérios as diferentes formas que os carismas assumem ao serem reconhecidos publicamente e postos à disposição da comunidade e da sua missão de forma estável.

Ora, nalguns casos, o ministério tem origem no sacramento da Ordem Sagrada: os ministérios “ordenados” de bispo, presbítero e diácono; noutros casos, o ministério é confiado, por ato litúrgico do bispo, a pessoa que recebeu o Batismo e a Confirmação e em quem são reconhecidos carismas específicos, após um adequado caminho de preparação: os ministérios “instituídos”. Muitos outros serviços ou cargos são exercidos de facto por muitos membros da comunidade para o bem da Igreja e, muitas vezes por um longo período e com grande eficácia, sem que seja previsto rito particular para conferir o cargo.

Esclarece que o exercício dos ministérios, com a mudança das situações eclesiais, sociais e culturais, assumiu diferentes formas, enquanto permaneceu intacta a distinção (não só de grau) entre ministérios instituídos ou laicais e ministérios  ordenados. Os primeiros exprimem a condição sacerdotal e real própria do batizado, ao passo que os segundos são próprios dos membros do Povo de Deus que, como bispos e sacerdotes, recebem a missão de agir na pessoa de Cristo Cabeça ou, como diáconos, estão habilitados a servir o Povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e da caridade” (cf Bento “Omnium in mentem”). Porem, é de reiterar que, segundo a “Lumen gentium(constituição dogmática sobre a Igreja,  do Concílio Vaticano II), “estão ordenados uns aos outros e cada um, a seu modo, participa no único sacerdócio de Cristo” (LG  n. 10).

Frisa que a adaptação às exigências dos tempos a que procedeu o “Ministeria quaedam” não se deve ser interpretar como superação da doutrina anterior, mas como implementação do dinamismo caraterizador da natureza da Igreja, chamada com a ajuda do Espírito de Verdade a responder aos desafios de cada época, em obediência à Revelação. Assim, o documento de São Paulo VI configura dois ofícios, o do leitor e o do acólito, o primeiro conexo com o ministério da Palavra, o segundo com o do ministério do Altar, mas sem excluir outros ofícios a instituir pela Santa Sé a pedido das Conferências Episcopais. Por outro lado, evidencia que “a variação nas formas de exercício dos ministérios não ordenados não é mera consequência do desejo de adaptação” às sensibilidades dos tempos e lugares, mas “é determinada pela necessidade de permitir a cada Igreja particular, em comunhão com todas as outras e tendo como centro de unidade a Igreja de Roma, viver a ação litúrgica, o serviço aos pobres e o anúncio do Evangelho em fidelidade ao mandato de Cristo”. É, pois, tarefa dos Pastores reconhecer os dons de cada batizado, orientá-los para ministérios específicos, promovê-los e coordená-los para contribuírem “para o bem da comunidade e para a missão confiada a todos os discípulos”. Todavia, o compromisso dos fiéis leigos, que são a imensa maioria do povo de Deus, não pode esgotar-se no exercício dos ministérios não ordenados, mas a configuração melhor destes ministérios e a referência mais precisa à responsabilidade que nasce do Batismo e da Confirmação para cada cristão ajudará a Igreja a redescobrir o sentido de comunhão que a carateriza e a iniciar um renovado compromisso na catequese e celebração da fé, podendo, nesta redescoberta, encontrar melhor tradução a sinergia frutuosa resultante da ordenação mútua do sacerdócio ordenado e do batismal. Tal reciprocidade, chamada a refluir, na distinção das tarefas, para o serviço de fazer de Cristo o coração do mundo, alarga os horizontes da missão da Igreja, impedindo-a de se fechar em lógicas estéreis de reivindicação de espaços de poder e ajudando-a a experimentar-se como uma comunidade espiritual que, segundo a Gaudium et Spes (Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual), “caminha juntamente com toda a humanidade, participa da mesma sorte terrena do mundo” (GS n. 40). E assim podemos compreender o significado da “Igreja em saída”.

Observa o Papa que, na onda de renovação criada pelo  Vaticano II, cresce o sentido de urgência em redescobrir a corresponsabilidade de todos os batizados na Igreja e especialmente a missão dos leigos. Por isso, a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazónica (6-27 de outubro de 2019), no capítulo V do documento final, assinala a necessidade de “novos caminhos para a ministerialidade eclesial” para toda a Igreja, na variedade de situações.

Embora a “Ministeria quaedam  reserve a instituição do ministério do leitor e do acólito aos homens e, por conseguinte, assim o estabeleça o cânon 230 § 1 do CIC, em tempos recentes e em muitos contextos eclesiais, tem-se verificado que a libertação de tal reserva pode contribuir para uma maior manifestação da comum dignidade batismal dos membros do Povo de Deus. Assim, aquando da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja (5-26 de outubro de 2008), os Padres sinodais expressaram a esperança “de que o ministério do leitor seja aberto também às mulheres”; e a Exortação Apostólica pós-sinodal “Verbum Domini (30 de setembro de 2010) especificou que o exercício do múnus  do leitor na celebração litúrgica e de, forma particular, o ministério do leitor enquanto tal, no rito latino é um ministério laical.

Explica o Pontífice que uma “venerável tradição da Igreja” considerou as ordens menores (inclusive o leitorado e o acolitado) como etapas do percurso conducente às ordens maiores (subdiaconado, diaconado, presbiterado e episcopado) e, porque o Sacramento da Ordem estava reservado aos homens, tal reserva aplicava-se às ordens menores. Contudo, uma distinção mais clara entre as atribuições dos “ministérios não ordenados ou laicais” e “ministérios ordenados” possibilita a dissolução da reserva dos primeiros aos homens. E, se em relação aos ministérios ordenados a Igreja “não tem de modo algum a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres” (cf São João Paulo II, Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis, 22 de maio de 1994), é possível e oportuno superar esta reserva para ministérios não ordenados. Ora, apesar de tal reserva fazer sentido num contexto particular, pode ser reconsiderada em novos contextos, tendo como critério a fidelidade ao mandato de Cristo e o desejo de viver e proclamar o Evangelho “para que possa ser escutado de forma religiosa, guardado de forma santa e fielmente anunciado”.

E Francisco distingue a tradição venerabilis, evocada por São Paulo VI,  da tradição veneranda (ou seja, uma tradição que “deve” ser observada). A primeira pode ser reconhecida como válida, mas não é vinculativa, pois a reserva aos homens não pertence à natureza dos ministérios do leitor e do acólito. Ora, oferecer aos leigos de ambos os sexos a possibilidade de acesso a estes ministérios em virtude da sua participação no sacerdócio batismal aumentará o reconhecimento, também através dum ato litúrgico (instituição), da preciosa contribuição que, durante muito tempo, muitos leigos, incluindo mulheres, oferecem à vida e missão da Igreja.

A decisão de conferir também às mulheres estes ofícios, que implicam estabilidade, reconhecimento público e mandato do bispo, torna  mais eficaz na Igreja a participação de todos na evangelização e permite que as mulheres tenham incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na liderança das comunidades, mas sem deixar de o fazer com o estilo próprio da marca feminina. Assim, o sacerdócio do fiel (commune sacerdotium) e o sacerdócio do ministro ordenado (sacerdotium ministeriale seu hierarquicum) serão  ordenados mais claramente um para os outro (cf LG n. 10), para a edificação da Igreja e para o testemunho do Evangelho.

Caberá às Conferências Episcopais gizar critérios adequados para o discernimento e preparação dos candidatos e candidatas para os ministérios de leitor e de acólito, ou outros ministérios que considerarem instituir, segundo o já disposto na Ministeria quaedam, com prévia aprovação da Santa Sé e as necessidades de evangelização no seu território; e a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos providenciará a implementação desta reforma alterando a Editio typica  do Pontificale romanum  ou “De Institutione Lectorum et Acolythorum.

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Avanço significativo. Mas o documento do não acesso de mulheres à Ordem sacra não é dogma.

2021.01.13 – Louro de Carvalho

 

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