Em entrevista à Renascença e à Ecclesia, publicada a 3 de janeiro, Pedro
Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), comentando a mensagem do Papa para o Dia Mundial da
Paz, além de outros aspetos, aborda, em especial, a vacinação em curso contra a
covid-19, o caso do SEF, as etapas finais da legislação sobre a eutanásia, as correntes
populistas em Portugal, o drama de Cabo Delgado e a cultura do cuidado.
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Na verdade, Francisco insiste
na vacinação universal contra a covid-19, tendo renovado, a propósito do
Dia Mundial da Paz, exortado os “responsáveis políticos” e o “setor privado” à tomada
das “medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas”, bem como ao recurso às
tecnologias essenciais necessárias à assistência aos doentes e a todos os que “são
mais pobres e mais frágeis”. E Vaz Patto sublinha que, “além de ser uma questão de justiça e de direitos
humanos” – pois “está em causa o direito à vida, a proteção contra uma doença
que pode ser mortal” –, é uma questão “racional”, já que uma “pandemia só se
combate na sua globalidade”.
De certo modo, configura “uma
espécie de solidariedade de interesses”, visto que, enquanto a pandemia “não desaparecer no mundo inteiro”,
corre-se o risco da sua reativação, sobretudo agora estando as fronteiras “cada
vez mais diluídas”. Também por isto se vê que “estamos todos no mesmo barco e
que ninguém se salva sozinho”. Assim, constituindo a vacinação uma modalidade do
direito à vida e à saúde, tem simultaneamente que ver com “o bem
comum”, uma vez que a pessoa, ao vacinar-se, se protege a si própria e protege “todas
as pessoas à sua volta”, protege “a comunidade”. Trata-se, pois, de uma
forma de “altruísmo”.
À escala mundial, requer-se
“uma solidariedade maior por parte dos mais ricos em favor dos mais pobres”,
como quer o Papa, visto que, se a
vacina “estiver dependente dos recursos dos países pobres”, eles poderão não
ter acesso a ela. Logo, tem de haver formas de “financiar a aquisição de
vacinas” pelos países que “não o possam fazer sozinhos”. E, independentemente
do modo de funcionamento do sistema de distribuição, não podem “ser os pobres
os últimos a ser vacinados”, pelo que “devia haver um certo equilíbrio entre a
população que é vacinada nos países mais ricos e a população que é vacinada nos
países mais pobres”.
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Não esquecendo o direito
dos migrantes, o entrevistado foi questionado sobre o que se passou em março
nas instalações do SEF do aeroporto de Lisboa em que um cidadão ucraniano morreu
às mãos dos inspetores e sobre a razão por que situação tão grave só ganhou relevância
quase 9 meses depois, sendo que a pandemia não explica tudo. E o presidente da
CNJP, fazendo comparação com o sucedido nos EUA, explicitou:
“Impressionou-me o facto de, quando houve
uma outra violação dos direitos humanos nos Estados Unidos, que envolvia também
uma atuação de violência policial e de racismo, a reação em todo o mundo foi
imediata e também cá em Portugal. Por contraste, aqui a reação perante esta
violação igualmente grave foi muito ténue. Compreendo que, num primeiro
momento, as pessoas não soubessem exatamente o que se tinha passado e que
aguardassem uma informação segura sobre o que realmente se passou, mas foi de
facto muito tempo, porque já havia indícios seguros de que poderia haver aqui
uma violação grave dos direitos humanos.”.
Escusando-se a ajuizar da
eventual fragilidade das consequências políticas, sustenta que não se pode
abordar a questão exclusivamente do lado da
estratégia política (demissão ou não do Ministro), mas impõe-se a reflexão sobre “como é que, numa
força policial, isto pode acontecer”, pois, “todo o cidadão tem de ter
confiança na polícia”, que “existe para defender os cidadãos, para defender os
direitos humanos”. Também confessa não ter elementos que lhe permitam dizer
se “uma situação como esta é sistemática”, mas sabe que “isto também sucede
noutras polícias em Portugal” e que, nos tribunais, também há “situações de
violência policial da parte de várias polícias” sem que isso signifique “atuação
sistemática”. E mencionou, em contraponto, o recente caso dum agente da PSP numa
“atitude louvável, heroica de defesa de uma vítima”. Por isso, entende não
dever fazer generalizações considerando que “são todos os agentes do serviço de
estrangeiros e fronteiras responsáveis ou que em todos eles há o perigo de uma
situação como esta se poder verificar”. E não se pronuncia sobre a eventual
conveniência de extinguir o SEF ou fundir polícias.
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Interpelado, no âmbito da afirmação papal de que “o leme da dignidade da pessoa humana e
a ‘bússola’ dos princípios sociais fundamentais podem permitir-nos navegar com
um rumo seguro e comum”, sobre a questão da eutanásia, Vaz Patto diz que “o
Presidente da República pode enviar a lei para o Tribunal Constitucional” (TC), em nome do “princípio que encabeça o catálogo dos
direitos fundamentais, que é o princípio da inviolabilidade da vida humana” e
constitui “o primeiro artigo do capítulo relativo aos direitos fundamentais”.
Assim, na sua ótica, a inviolabilidade da vida não admite
exceções, mesmo “com o consentimento do titular da vida”. E refere o
veto político, que “não impede que numa segunda votação a lei seja aprovada”. O
único óbice a uma segunda aprovação seria a declaração da inconstitucionalidade
da lei. Por isso, ao veto prefere
o recurso ao TC.
Pensa que a proximidade das
eleições presidenciais não pode condicionar a participação do Presidente da
República (PR) no processo, “porque isto está para além da questão das eleições”. E,
sendo uma situação que divide a sociedade portuguesa, os políticos têm de tomar
decisões.
Entende que não é a campanha das eleições
presidenciais o cenário propício ao debate sobre o tema, mas a campanha para as
legislativas, porque em última análise não é o PR quem decide esta questão, mas
os deputados. E aí sim, podem-se criticar os partidos que votam a lei e não
discutiram a questão na campanha para as legislativas. Os dois maiores partidos
não tomaram posição, motivo por que se justificaria um referendo.
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Considerando os entrevistadores que o Papa propõe “a cultura do cuidado”
para erradicar “a cultura da indiferença”, sendo
esta abalada sobretudo pela cultura dos populismos, questionam Vaz Patto sobre
a ameaça dos populismos às democracias.
E o entrevistado refere que
o Papa, além de falar da cultura
do cuidado, explica-lhe o sentido como “solicitude, apoio, acolhimento”, algo habitualmente
associado aos âmbitos “familiar, pessoal e da saúde” (vg: por
contraposição à eutanásia temos os cuidados paliativos), mas que deve, na linha da mensagem papal, tornar-se
atitude a “alargar-se a todo o âmbito da sociedade”.
Como é usual, também desta vez, a CNJP publicou uma nota a realçar alguns
aspetos da mensagem papal, designadamente os significativos para a atualidade
portuguesa. E, neste âmbito, sobressaem “os perigos dos populismos ou nacionalismo
numa perspetiva de exaltação dos valores nacionais, não pela positiva, mas pela
negativa, isto é, pela hostilidade ao outro ou ao estrangeiro”, o que “vai
contra a cultura do cuidado”.
Quanto à existência de
sinais destes populismos em Portugal, contrapõe o tempo em que, participando em
reuniões com representantes de CNJP de
países em que este fenómeno existia, porfiava que “em Portugal isto não sucedia”,
com o tempo atual em que não se pode dizer isso. E, em breve reflexão sobre o
aludido caso do homicídio dum cidadão estrangeiro, que representa uma violação
dos direitos humanos, diz que “não podemos dizer que há aqui uma motivação
racista e xenófoba, mas o que é certo é que era um estrangeiro” – em contraste
com a visão tradicional de que “somos um povo pacífico e acolhedor”.
A este propósito, denuncia as atitudes de quem abertamente não se declara
xenófobo nem racista, mas o pensa ou o diz baixo e o confessa na roda de amigos
– o que, por vezes, vem ao de cima “como sucede em relação a minorias étnicas,
como os ciganos”.
Surpreende-o, no panorama
político, a subida de correntes populistas, nomeadamente em sondagens, pois “estava habituado, no confronto com outros países, a
apresentar Portugal como uma situação modelar, quase”, mas confessa que, no
fundo, também não podemos dizer que somos imunes àquilo que sucede nos outros
países” e nem somos assim “tão diferentes”.
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Quanto ao drama que envolve
a região de Cabo Delgado (no norte de Moçambique), fustigada pelo terrorismo,
com mais de 2000 mortos e meio milhão de refugiados, refere que a CNJP publicou uma nota sobre este drama, que não é só de
agora, embora se tenha acentuado ultimamente, com uma reflexão sobre a
importância que damos ao que se passa em África. E comenta:
“Quando há um atentado terrorista na Europa,
a reação de indignação é muito maior do que a que estamos a assistir em relação
a Cabo Delgado, com consequências muito mais graves do que se tem verificado
com o terrorismo na Europa (…). Em Moçambique, é uma multiplicação do que se
verifica na Europa. E não é só pela distância física. Há pouco falava do que se
passou nos Estados Unidos e teve uma repercussão mundial. E é bom que isso
suceda, que as pessoas vivam como se sucedesse à sua porta o que se passa
noutros países. Mas não é isso que se está a verificar neste caso. Agora
estamos a começar a reagir e ainda abem que assim é. Mas isto tem de chegar aos
responsáveis políticos.”.
Também a Presidência
portuguesa da UE (União Europeia) – pela ligação do país a
Moçambique – poderá dar mais visibilidade ao problema e ser mais determinante
na procura de soluções. E Vaz Patto, convicto de que “isso é providencial”, supõe que pode ser uma grande oportunidade,
pois os deputados portugueses no PE (Parlamento Europeu), de todos os partidos, “têm demonstrado uma
sensibilidade por esta questão que não existe noutros países, especialmente
pelos laços culturais e históricos que temos com Moçambique”. Porém, não deixa
de assinalar que, em África, também em países que não são de língua portuguesa,
há situações que justificam uma maior atenção da comunidade internacional. E exemplifica
com algumas epidemias, mais mortíferas que a da covid, que, não tendo a mesma dimensão
mundial, causam males muito graves, às vezes até desconhecidos dos europeus.
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Atentando mais
especificamente na cultura do cuidado, vinca-se que o Papa fala da necessidade da promoção da
“gramática” do cuidado, nomeadamente pela “promoção da dignidade de toda a
pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem
comum e a salvaguarda da criação”. E o entrevistado, questionado se esta não
constitui uma proposta contrária ao rumo da história e se a pandemia recentrou
o mundo nesta gramática, chama a atenção para a imagem da bússola, utilizada
pelo Santo Padre, que evidencia os 4 princípios da Doutrina Social da Igreja (DSI): dignidade da pessoa humana, bem comum, solidariedade e cuidado da
criação – que o Papa “indica como orientação para um novo rumo da globalização”,
por serem os alicerces da DSI, que valem como princípios de direito natural e
podem ser partilhados por pessoas de várias convicções.
De facto, como acentua, a pandemia evidenciou a importância destes
princípios. Com efeito, aplaude-se a vacinação dum idoso com mais de 90 anos,
pois “a vida desta pessoa tem um valor que não esmorece”, não perdendo valor “pelo
facto de estar na última fase da vida”, uma vez que “a vida é sempre preciosa”.
E o presidente da CNJP põe o dedo na ferida no atinente a algumas estratégias
de combate à pandemia, de consequências negativas. Não dizendo “se tudo foi
correto ou não”, sustenta a importância de a pandemia nos ter lembrado que “o
valor da vida seja superior ao valor da economia” e que o bem comum deve pautar
as grandes opções.
No respeitante à decisão, sugerida
pelo Pontífice, de criar “um ‘Fundo mundial’ com o dinheiro que se gasta em
armas e outras despesas militares”, para “eliminar a fome e contribuir para o
desenvolvimento dos países mais pobres”, Vaz Patto sublinha que o Papa volta,
na mensagem, à proposta que “lançou na
encíclica Fratelli Tutti” e considera
que há muitas propostas que, ao serem lançadas, eram utopias, mas que, passado
algum tempo, se verificou que eram proféticas, pois “apontavam um caminho novo,
o mais correto”. Depois, observa:
“Se formos ver o que se poderia poupar com a
diminuição de despesas em armamento, e o Papa fala em particular do armamento
nuclear também pelos perigos que envolve, isso seria mais do que suficiente
para combater a fome”.
Verificando que a corrida aos armamentos esteve associada à divisão do
mundo em blocos, o que “já não existe”, defende que seria de esperar que as transformações
ocorridas nesse âmbito viessem a traduzir-se numa diminuição das despesas com
armamento. Ora, não tendo isso acontecido, é de concluir aqui pela presença de
alguma irracionalidade a levar a que tais despesas não se justifiquem pela
estratégia de legítima defesa, pois vão além do necessário.
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Por fim, interpelado sobre
o que espera para o ano de 2021, quando o Papa manifesta o desejo de que este
ano “faça a humanidade progredir no
caminho da fraternidade, da justiça e da paz entre as pessoas, as comunidades,
os povos e os Estados”, o presidente da CNJP defende que “devemos procurar sempre recolher das tragédias o que
daí possa surgir de positivo”. Assim, tal como Francisco augura, é desejável
que esta situação inédita para todos “sirva para refletirmos sobre vulnerabilidade
do ser humano, a sua fragilidade, a importância do cuidado”,
valorizarmos “as profissões ligadas ao cuidado, saúde, assistência aos idosos, etc.”
(pois nem
sempre são valorizadas estas profissões, comparativamente com outras, mais
rentáveis), relevarmos o valor da vida humana e reconstruirmos
“a
sociedade e a economia sobre novas bases que sejam mais justas e mais
respeitadoras do ambiente”.
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Assim seja!
2021.01.05 –
Louro de Carvalho
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