terça-feira, 5 de janeiro de 2021

É imperioso implementar uma cultura do cuidado

 

Em entrevista à Renascença e à Ecclesia, publicada a 3 de janeiro, Pedro Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), comentando a mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz, além de outros aspetos, aborda, em especial, a vacinação em curso contra a covid-19, o caso do SEF, as etapas finais da legislação sobre a eutanásia, as correntes populistas em Portugal, o drama de Cabo Delgado e a cultura do cuidado.

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Na verdade, Francisco insiste na vacinação universal contra a covid-19, tendo renovado, a  propósito do Dia Mundial da Paz, exortado os “responsáveis políticos” e o “setor privado” à tomada das “medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas”, bem como ao recurso às tecnologias essenciais necessárias à assistência aos doentes e a todos os que “são mais pobres e mais frágeis”. E Vaz Patto sublinha que, “além de ser uma questão de justiça e de direitos humanos” – pois “está em causa o direito à vida, a proteção contra uma doença que pode ser mortal” –, é uma questão “racional”, já que uma “pandemia só se combate na sua globalidade”.

De certo modo, configura “uma espécie de solidariedade de interesses”, visto que, enquanto a pandemia “não desaparecer no mundo inteiro”, corre-se o risco da sua reativação, sobretudo agora estando as fronteiras “cada vez mais diluídas”. Também por isto se vê que “estamos todos no mesmo barco e que ninguém se salva sozinho”. Assim, constituindo a vacinação uma modalidade do direito à vida e à saúde, tem simultaneamente que ver com “o bem comum”, uma vez que a pessoa, ao vacinar-se, se protege a si própria e protege “todas as pessoas à sua volta”, protege “a comunidade”. Trata-se, pois, de uma forma de “altruísmo”.

À escala mundial, requer-se “uma solidariedade maior por parte dos mais ricos em favor dos mais pobres”, como quer o Papa, visto que, se a vacina “estiver dependente dos recursos dos países pobres”, eles poderão não ter acesso a ela. Logo, tem de haver formas de “financiar a aquisição de vacinas” pelos países que “não o possam fazer sozinhos”. E, independentemente do modo de funcionamento do sistema de distribuição, não podem “ser os pobres os últimos a ser vacinados”, pelo que “devia haver um certo equilíbrio entre a população que é vacinada nos países mais ricos e a população que é vacinada nos países mais pobres”.

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Não esquecendo o direito dos migrantes, o entrevistado foi questionado sobre o que se passou em março nas instalações do SEF do aeroporto de Lisboa em que um cidadão ucraniano morreu às mãos dos inspetores e sobre a razão por que situação tão grave só ganhou relevância quase 9 meses depois, sendo que a pandemia não explica tudo. E o presidente da CNJP, fazendo comparação com o sucedido nos EUA, explicitou:

Impressionou-me o facto de, quando houve uma outra violação dos direitos humanos nos Estados Unidos, que envolvia também uma atuação de violência policial e de racismo, a reação em todo o mundo foi imediata e também cá em Portugal. Por contraste, aqui a reação perante esta violação igualmente grave foi muito ténue. Compreendo que, num primeiro momento, as pessoas não soubessem exatamente o que se tinha passado e que aguardassem uma informação segura sobre o que realmente se passou, mas foi de facto muito tempo, porque já havia indícios seguros de que poderia haver aqui uma violação grave dos direitos humanos.”.

Escusando-se a ajuizar da eventual fragilidade das consequências políticas, sustenta que não se pode abordar a questão exclusivamente do lado da estratégia política (demissão ou não do Ministro), mas impõe-se a reflexão sobre “como é que, numa força policial, isto pode acontecer”, pois, “todo o cidadão tem de ter confiança na polícia”, que “existe para defender os cidadãos, para defender os direitos humanos”. Também confessa não ter elementos que lhe permitam dizer se “uma situação como esta é sistemática”, mas sabe que “isto também sucede noutras polícias em Portugal” e que, nos tribunais, também há “situações de violência policial da parte de várias polícias” sem que isso signifique “atuação sistemática”. E mencionou, em contraponto, o recente caso dum agente da PSP numa “atitude louvável, heroica de defesa de uma vítima”. Por isso, entende não dever fazer generalizações considerando que “são todos os agentes do serviço de estrangeiros e fronteiras responsáveis ou que em todos eles há o perigo de uma situação como esta se poder verificar”. E não se pronuncia sobre a eventual conveniência de extinguir o SEF ou fundir polícias.

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Interpelado, no âmbito da afirmação papal de que “o leme da dignidade da pessoa humana e a ‘bússola’ dos princípios sociais fundamentais podem permitir-nos navegar com um rumo seguro e comum”, sobre a questão da eutanásia, Vaz Patto diz que “o Presidente da República pode enviar a lei para o Tribunal Constitucional” (TC), em nome do “princípio que encabeça o catálogo dos direitos fundamentais, que é o princípio da inviolabilidade da vida humana” e constitui “o primeiro artigo do capítulo relativo aos direitos fundamentais”. Assim, na sua ótica, a inviolabilidade da vida não admite exceções, mesmo “com o consentimento do titular da vida”. E refere o veto político, que “não impede que numa segunda votação a lei seja aprovada”. O único óbice a uma segunda aprovação seria a declaração da inconstitucionalidade da lei. Por isso, ao veto prefere o recurso ao TC.

Pensa que a proximidade das eleições presidenciais não pode condicionar a participação do Presidente da República (PR) no processo, “porque isto está para além da questão das eleições”. E, sendo uma situação que divide a sociedade portuguesa, os políticos têm de tomar decisões.

Entende que não é a campanha das eleições presidenciais o cenário propício ao debate sobre o tema, mas a campanha para as legislativas, porque em última análise não é o PR quem decide esta questão, mas os deputados. E aí sim, podem-se criticar os partidos que votam a lei e não discutiram a questão na campanha para as legislativas. Os dois maiores partidos não tomaram posição, motivo por que se justificaria um referendo.

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Considerando os entrevistadores que o Papa propõe “a cultura do cuidado” para erradicar “a cultura da indiferença”, sendo esta abalada sobretudo pela cultura dos populismos, questionam Vaz Patto sobre a ameaça dos populismos às democracias.

E o entrevistado refere que o Papa, além de falar da cultura do cuidado, explica-lhe o sentido como “solicitude, apoio, acolhimento”, algo habitualmente associado aos âmbitos “familiar, pessoal e da saúde” (vg: por contraposição à eutanásia temos os cuidados paliativos), mas que deve, na linha da mensagem papal, tornar-se atitude a “alargar-se a todo o âmbito da sociedade”.

Como é usual, também desta vez, a CNJP publicou uma nota a realçar alguns aspetos da mensagem papal, designadamente os significativos para a atualidade portuguesa. E, neste âmbito, sobressaem “os perigos dos populismos ou nacionalismo numa perspetiva de exaltação dos valores nacionais, não pela positiva, mas pela negativa, isto é, pela hostilidade ao outro ou ao estrangeiro”, o que “vai contra a cultura do cuidado”.

Quanto à existência de sinais destes populismos em Portugal, contrapõe o tempo em que, participando em reuniões com representantes de CNJP de países em que este fenómeno existia, porfiava que “em Portugal isto não sucedia”, com o tempo atual em que não se pode dizer isso. E, em breve reflexão sobre o aludido caso do homicídio dum cidadão estrangeiro, que representa uma violação dos direitos humanos, diz que “não podemos dizer que há aqui uma motivação racista e xenófoba, mas o que é certo é que era um estrangeiro” – em contraste com a visão tradicional de que “somos um povo pacífico e acolhedor”.

A este propósito, denuncia as atitudes de quem abertamente não se declara xenófobo nem racista, mas o pensa ou o diz baixo e o confessa na roda de amigos – o que, por vezes, vem ao de cima “como sucede em relação a minorias étnicas, como os ciganos”.

Surpreende-o, no panorama político, a subida de correntes populistas, nomeadamente em sondagens, pois “estava habituado, no confronto com outros países, a apresentar Portugal como uma situação modelar, quase”, mas confessa que, no fundo, também não podemos dizer que somos imunes àquilo que sucede nos outros países” e nem somos assim “tão diferentes”.

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Quanto ao drama que envolve a região de Cabo Delgado (no norte de Moçambique), fustigada pelo terrorismo, com mais de 2000 mortos e meio milhão de refugiados, refere que a CNJP publicou uma nota sobre este drama, que não é só de agora, embora se tenha acentuado ultimamente, com uma reflexão sobre a importância que damos ao que se passa em África. E comenta:

Quando há um atentado terrorista na Europa, a reação de indignação é muito maior do que a que estamos a assistir em relação a Cabo Delgado, com consequências muito mais graves do que se tem verificado com o terrorismo na Europa (…). Em Moçambique, é uma multiplicação do que se verifica na Europa. E não é só pela distância física. Há pouco falava do que se passou nos Estados Unidos e teve uma repercussão mundial. E é bom que isso suceda, que as pessoas vivam como se sucedesse à sua porta o que se passa noutros países. Mas não é isso que se está a verificar neste caso. Agora estamos a começar a reagir e ainda abem que assim é. Mas isto tem de chegar aos responsáveis políticos.”.

Também a Presidência portuguesa da UE (União Europeia) – pela ligação do país a Moçambique – poderá dar mais visibilidade ao problema e ser mais determinante na procura de soluções. E Vaz Patto, convicto de que “isso é providencial”, supõe que pode ser uma grande oportunidade, pois os deputados portugueses no PE (Parlamento Europeu), de todos os partidos, “têm demonstrado uma sensibilidade por esta questão que não existe noutros países, especialmente pelos laços culturais e históricos que temos com Moçambique”. Porém, não deixa de assinalar que, em África, também em países que não são de língua portuguesa, há situações que justificam uma maior atenção da comunidade internacional. E exemplifica com algumas epidemias, mais mortíferas que a da covid, que, não tendo a mesma dimensão mundial, causam males muito graves, às vezes até desconhecidos dos europeus.

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Atentando mais especificamente na cultura do cuidado, vinca-se que o Papa fala da necessidade da promoção da “gramática” do cuidado, nomeadamente pela “promoção da dignidade de toda a pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem comum e a salvaguarda da criação”. E o entrevistado, questionado se esta não constitui uma proposta contrária ao rumo da história e se a pandemia recentrou o mundo nesta gramática, chama a atenção para a imagem da bússola, utilizada pelo Santo Padre, que evidencia os 4 princípios da Doutrina Social da Igreja (DSI): dignidade da pessoa humana, bem comum, solidariedade e cuidado da criação – que o Papa “indica como orientação para um novo rumo da globalização”, por serem os alicerces da DSI, que valem como princípios de direito natural e podem ser partilhados por pessoas de várias convicções.

De facto, como acentua, a pandemia evidenciou a importância destes princípios. Com efeito, aplaude-se a vacinação dum idoso com mais de 90 anos, pois “a vida desta pessoa tem um valor que não esmorece”, não perdendo valor “pelo facto de estar na última fase da vida”, uma vez que “a vida é sempre preciosa”. E o presidente da CNJP põe o dedo na ferida no atinente a algumas estratégias de combate à pandemia, de consequências negativas. Não dizendo “se tudo foi correto ou não”, sustenta a importância de a pandemia nos ter lembrado que “o valor da vida seja superior ao valor da economia” e que o bem comum deve pautar as grandes opções.

No respeitante à decisão, sugerida pelo Pontífice, de criar “um ‘Fundo mundial’ com o dinheiro que se gasta em armas e outras despesas militares”, para “eliminar a fome e contribuir para o desenvolvimento dos países mais pobres”, Vaz Patto sublinha que o Papa volta, na mensagem, à proposta que “lançou na encíclica Fratelli Tutti” e considera que há muitas propostas que, ao serem lançadas, eram utopias, mas que, passado algum tempo, se verificou que eram proféticas, pois “apontavam um caminho novo, o mais correto”. Depois, observa:

Se formos ver o que se poderia poupar com a diminuição de despesas em armamento, e o Papa fala em particular do armamento nuclear também pelos perigos que envolve, isso seria mais do que suficiente para combater a fome”.

Verificando que a corrida aos armamentos esteve associada à divisão do mundo em blocos, o que “já não existe”, defende que seria de esperar que as transformações ocorridas nesse âmbito viessem a traduzir-se numa diminuição das despesas com armamento. Ora, não tendo isso acontecido, é de concluir aqui pela presença de alguma irracionalidade a levar a que tais despesas não se justifiquem pela estratégia de legítima defesa, pois vão além do necessário.

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Por fim, interpelado sobre o que espera para o ano de 2021, quando o Papa manifesta o desejo de que este ano “faça a humanidade progredir no caminho da fraternidade, da justiça e da paz entre as pessoas, as comunidades, os povos e os Estados”, o presidente da CNJP defende que “devemos procurar sempre recolher das tragédias o que daí possa surgir de positivo”. Assim, tal como Francisco augura, é desejável que esta situação inédita para todos “sirva para refletirmos sobre vulnerabilidade do ser humano, a sua fragilidade, a importância do cuidado”, valorizarmos “as profissões ligadas ao cuidado, saúde, assistência aos idosos, etc.” (pois nem sempre são valorizadas estas profissões, comparativamente com outras, mais rentáveis), relevarmos o valor da vida humana e reconstruirmos “a sociedade e a economia sobre novas bases que sejam mais justas e mais respeitadoras do ambiente”.

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Assim seja!

2021.01.05 – Louro de Carvalho

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