Na passagem evangélica (Mc 1,7-11) assumida para a liturgia da Festa do Batismo do Senhor no Ano B, leem-se
dois episódios: o atinente ao pregão de João Batista, enquanto batizava quem se
aproximava, sobre o Messias que há de surgir (vv 7-8), aparecendo João a falar daquele que há de vir; e a cena do
Batismo de Jesus (vv
9-11), sobressaindo o
mistério da revelação de Jesus.
João surge qual guia carismático do movimento que anuncia a
proximidade do juízo de Deus, com mensagem centrada na urgência da conversão,
porque supõe que a intervenção definitiva de Deus na história para destruir o
mal estava iminente e incluía o rito de purificação pela água.
Não sendo o batismo de João insólita novidade – pois o
judaísmo conhecia ritos de imersão na água ligados a contextos de purificação,
inclusive o rito usado na integração dos prosélitos na comunidade do Povo de
Deus –, na ótica do precursor, este batismo acompanhado de adequadas exortações,
constituía um rito de iniciação à comunidade messiânica, de sorte que os que
recebiam este batismo renunciavam ao pecado, convertiam-se à vida nova e
passavam a integrar a comunidade do Messias. Embora Jesus não precisasse de
receber este batismo, pois não carecia de purificação, arrependimento e perdão,
vai ter com o Batista e insta com ele para lhe ministre o batismo jordânico
como João o assume. E, quando João objeta que era o próprio Batista quem
deveria ser batizado por Jesus, este responde: “Deixa por agora, convém que assim cumpramos toda a justiça” (cf Mt 3,14-15).
O trecho desta dominga faz parte dum conjunto de três cenas
iniciais (cf Mc 1,2-8;
1,9-11; 1,12-13) em que
o evangelista Marcos apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, ou seja, define
a verdadeira identidade e a missão específica de Jesus – parâmetros que vai
glosar e enriquecer ao longo do Evangelho.
Marcos começa por expor o testemunho de João Batista sobre
Jesus (vv. 7-8): “Aquele que é mais forte do que eu, diante do qual não sou digno de me
inclinar para lhe desatar as correias das sandálias” e como “Aquele que há de batizar-vos no Espírito
Santo”. Com o seu abaixamento humilde (incompetência) em relação ao Messias, o Batista, por um lado, reconhece a
excelência do Messias que há de vir, bem como a maior excelência do Batismo de
Jesus sobre o seu; e, por outro lado, abre-nos pedagógica e exemplarmente o
caminho do reconhecimento dos valores messiânicos, bem como o gradualismo da
caminhada humana: da água para o Espírito Santo.
Na verdade, a fortaleza eminente e o batismo no Espírito são
prerrogativas do Messias que Israel esperava (cf Is 9,5-6; 11,2). E João está a apregoar com toda a clareza que Jesus é o
Messias anunciado pelos profetas, que Deus enviou para libertar o Povo e lhe
dar a vida definitiva.
A cena do batismo de Jesus no Jordão, narrada por Marcos de
forma mui sucinta, configura uma teofania trinitária que vem corroborar o
testemunho joânico. Marcos, no breve segmento de narrativa subsequente ao ato
do batismo, refere que os céus se rasgaram e releva dois factos: o Espírito
Santo desceu para dentro de Jesus (eis
autón) corporalmente em forma de pomba; e a
voz do Pai celeste explicitou, dirigindo-se àquele que fora batizado: “Tu és o meu Filho, o amado, em ti pus todo o
meu agrado” (sý eî ho hyiós mou ho agapêtós, en soì
eudókêsa – Mc 1,11).
Assim, ficamos a saber que Jesus, o Messias esperado, é o
Filho, o amado de Deus, enviado para nos “batizar no Espírito” e nos inserir no
dinamismo da vida nova – a vida no Espírito.
O testemunho de Deus é acompanhado por três factos que devem
ser entendidos em referência a factos e símbolos do Antigo Testamento (AT) e figuras para o Novo Testamento (NT).
O rasgamento dos céus significa tanto a descida de Deus à
terra como o acesso da terra ao céu, configurando o abraço unitivo de céu e terra,
obviamente por iniciativa e dom de Deus. A imagem remete para o segmento
textual em que o profeta (vd
Is 45,8) pede a Deus que
abra os céus e desça ao encontro do Povo, reatando a relação que o pecado do
Povo interrompeu. Assim, Marcos sustenta que a ação de Jesus reconcilia o céu e
a terra e restabelece a comunhão entre Deus e os homens.
A imagem da pomba alude, segundo alguns Padres da Igreja, à
pomba que Noé libertou e que, primeiro, retornou à arca sem nada, depois,
retornou com uma folha verde de oliveira no bico e, finalmente, saiu sem
retornar (cf Gn 8,8-12). É a nota da serenidade
pacificadora. Por outro lado, porque é, em certas tradições judaicas, símbolo
do Espírito de Deus que, no início, pairava sobra as águas (cf Gn 1,2), evoca a nova criação a realizar a
partir da atividade que Jesus inicia agora.
E a voz do céu, forma usada pelos rabis para expressar o
testemunho de Deus acerca duma pessoa ou dum acontecimento, declara que Jesus é
o Filho de Deus; e fá-lo com uma fórmula tomada do cântico do “Servo de Javé”
cantado no capítulo 42 de Isaías (Is 42,1-7), referência que sugere que a missão de Jesus não se desenrolará no
triunfalismo, mas na obediência total ao Pai, não no poder e prepotência, mas
na suavidade e no respeito pelos homens.
Jesus, não carecendo dum batismo ligado à penitência, perdão e
mudança de vida, porque não conheceu o pecado, solidarizou-Se com os homens limitados
e pecadores, baixando à sua condição e pôs-se como companheiro deles para os
ajudar a sair dessa situação e para percorrer com eles o caminho da vida plena
– desígnio do Pai a que Jesus deu pleno cumprimento.
Como verdadeiro Filho (“Filho” é a primeira palavra:
Deus é força de geração, que tal como toda a semente gera segundo a própria
espécie), Jesus
obedece ao Pai e cumpre o plano salvador do Pai. Por isso, vem ao encontro dos
homens, solidariza-Se com eles, assume as suas fragilidades e caminha com eles,
refazendo a comunhão entre Deus e os homens que o pecado interrompera e guiando
os homens para a vida em plenitude. Enfim, desta atividade de Jesus resultará
uma nova criação, uma nova humanidade, pois, batizando-nos
no Espírito Santo, dá-nos o respiro vital que nos modela, transforma
pensamentos, afetos, projetos, esperanças, segundo a lei doce, exigente e
serena do verdadeiro amor, e nos impele a passar no mundo levando vento e fogo,
levando liberdade e calor, criando energia e luz.
***
Como faz Dom António Couto, é de atentar em que João
Batista surge no deserto, sem qualquer apresentação prévia, sem pai nem mãe,
como se tivesse chovido do céu (cf Mc 1,4); vem
marcado com a dupla missão de anunciar “Aquele
que vem” (érchetai), que é “o mais forte
que eu” (ho ischyróterós mou) e a de advertir o povo de Israel de que não basta ficar à
espera, mas que urge a preparação para a sua chegada (cf Mc 1,2-5.7-8); tal preparação requer conversão,
confissão dos pecados, receção do batismo e a remissão dos pecados (cf Mc 1,4-5); e a missão do Batista tem certa peculiaridade: toda a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém saíam (ezeporeúeto) ao encontro de
João (cf Mc 1,5), não sendo João que vai ao encontro
das pessoas, como faziam os profetas antes dele e como fará Jesus, que sai e
percorre as cidades e aldeias ao encontro das pessoas, pelo que passará este a
ser o estilo dos Evangelizadores: ir ao encontro das pessoas, e não ficar à
espera, ou seja, pôr a Igreja no dinamismo de “em saída”, como insiste o Papa.
João fixa-se no deserto: lá vive e prega; e as pessoas
vão lá escutá-lo. A forma como veste e o que come (cf Mc 1,6) mostram a sua austeridade e vinculam-no
à figura de Elias (cf 2Rs
1,8). Ao invés do
habitual, não são as pessoas que tomam o banho lustral de purificação, mas é
João que as imerge na água. Este gesto de João é tão insólito que lhe mereceu o
título de Batista.
João proclamava ou anunciava (ekêryssen: cf Mc 1,7). Dom António Couto frisa que o verbo
está no imperfeito por implicar uma proclamação repetida e prolongada, embora o
narrador não se alongue sobre o conteúdo da referida pregação.
Diz-se, de forma sucinta, que João batiza com água,
mas Aquele que vem batizará com o Espírito Santo (cf Mc 1,8), omitindo-se o fogo e outros elementos de julgamento
presentes em Mateus e Lucas. Com efeito, Marcos pretende apenas mostrar a
diferença dos dois batismos.
O registo da incompetência (ikanós)
de João para desatar a
correia das sandálias d’Aquele que Vem será a confissão de humildade da parte
de João face a Quem lhe é incomparavelmente superior, mas também a incapacidade
jurídica de tomar posse. É de recordar, a este respeito, que o AT comporta
alguns exemplos deste significado de desatar ou não a correia das sandálias.
Assim, o não cumprimento da lei do levirato implica que seja retirada a
sandália ao cunhado não cumpridor, gesto que lhe garante a perda de posse no
domínio matrimonial (vd
Dt 25,5-9). O que tem o
direito de resgatar o património e de desposar Rute prescinde desse direito; e,
para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade, o
homem em causa tira a sandália e entrega-a a Booz, que assim fica com o direito
de resgatar o património e de desposar Rute (vd Rt 4,1-10). Assim, a metáfora da sandália do NT significa também que é
Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, não tendo João tal
direito ou competência.
João tinha anunciado a vinda de Alguém
incomparavelmente superior a ele – alta expectativa. Contudo, segundo o
narrador, Jesus vem de Nazaré da Galileia, terra desconhecida, do interior provinciano
e do mundo rural, de sorte que Natanael pergunta se “de Nazaré poderá vir
alguma coisa boa” (Jo
1,46). Não provém da elite,
mas do povo, com quem está, no meio de quem está e com quem é solidário. Não
batiza, mas é batizado por João (Mc 1,9). Não está
propriamente ao lado do povo, mas com ele e no meio dele, pelo que, tal como o
resto do povo, que é pecador, se submete solidariamente ao batismo de conversão
para remissão dos pecados. Não o faz, porém, em prol da remissão dos próprios
pecados, que não os tem, mas para a remissão dos pecados dos outros. Este gesto
solidário é uma súmula analéptica da sua vida como a dos outros (nascimento em condições adversas,
migração forçada, operário…) e a antecipação proléptica da sua peculiar vida pública: de pregação,
proximidade, curas, protestos culminando no batismo de sangue da Cruz (Mc 10,38). Ele não batiza na água, embora a água
se relacione com o Espírito de Deus (vd Gn 1,2) e o simbolize (vd
Jo 7,37-39), pois,
embora importante, o batismo judaico é insuficiente, porque não abrange a
totalidade do plano divino. É o batismo na água, no Espírito e no fogo ou no sangue,
que, pela semelhança com o que sucedeu com Cristo, é verdadeiro sacramento.
É verdade que Jesus está no meio de nós, totalmente
solidário connosco. Não obstante, está completamente unido a Deus, a quem acede
livremente. A significar a completa união com Deus abrem-se os céus, cumprindo a
profecia de Isaías, e desce e permanece o Espírito, não “sobre ele”, como é
usual traduzir-se, mas “para dentro dele” (o texto latino é “in ipso”), ou seja, o Espírito desce e permanece
em Jesus íntima e estavelmente. Não se trata de converter, de transformar
Jesus, mas de fazer transparecer a sua identidade – transparência espelhada e reforçada
pela voz dos céus: “Tu és o meu Filho, o
amado, em Ti pus o meu enlevo”. E, deixando entrever em silhueta a figura
do Rei messiânico (vd Sl
2,7) e do Servo do
Senhor (vd Is 42,1), é sobre Jesus que recai toda a
atenção de Marcos, pois, a partir do momento em que chega à ribalta, Jesus torna-se
o sujeito ou o destinatário de todas as ações (‘vem de Nazaré’, ‘é batizado por João’, ‘sai da água’,
‘vê os céus abrirem-se e o Espírito descer’, ‘a voz que vem dos céus é
dirige-se a Ele’). Porém,
Jesus permanece em silêncio.
***
O mistério do Cristo solidário connosco é sintetizado
de forma epitáfica num dos discursos petrinos (vd At 10,34-38), que enuncia o primeiro dado do quérigma e resume a ação de Jesus:
“Deus ungiu com a
força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demónio,
porque Deus estava com Ele” (At 10,38).
E Pedro evoca o Batismo preconizado e ministrado por
João, pois tudo isto sucedeu “depois do batismo que João pregou” (v. 37). Por isso, como refere Dom António Couto, Jesus “connosco
e no meio de nós, como um de nós, desce ao rio Jordão para ser connosco
batizado”. De facto, “para nos curar, é preciso passar pelo meio de nós”.
Nas águas do Jordão, quer no AT, quer no NT, espelha-se
o dom da cura e o dinamismo da purificação renovadora que permite o acesso à
vida nova, pelo que muitas Igrejas Orientais chamam Jordão ao canal que leva a
água para a fonte batismal, benzida anualmente na Festa do Batismo do Senhor. E
é de anotar que, tal como o rio Jordão galga fronteiras, também a salvação oferecida
em Cristo extravasa as fronteiras da Judeia ou da Galileia: é para chegar aos
confins do mundo. Tanto assim é que Pedro, no discurso acima referido, clama:
“Reconheço que
Deus não faz aceção de pessoas, mas, em qualquer nação, aquele
que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável. Ele enviou a sua palavra
aos filhos de Israel, anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor
de todos.” (At 10,34-36).
O episódio do Batismo de Jesus no Jordão cumpre o “Primeiro
Canto do Servo do Senhor” (Is
42,1-7), em que Deus diz
que escolheu este “meu Servo”, o segura e o sustenta, lhe dá o seu Espírito e lhe
confia uma missão em ordem à verdade e à instauração da justiça, à mansidão e
ao ensino, à libertação e à iluminação, ou seja, à vida em plenitude, de e em todas
as nações. Enfim, Deus é a vida deste Servo, que Ele ampara, conduz e modela – linguagem
criadora, confidente e providente.
Segundo o profeta, Deus clama que este seu Servo “não fará ouvir desde fora a sua voz” (Is 42,2), donde se infere que, se não faz
ouvir a sua voz desde fora, a faz ouvir desde dentro. Ora, sabendo nós que este
Servo do Senhor, enquanto instaurador da justiça, é o Messias-Rei e sabendo que
o seu reino não é deste mundo (vd Jo 18,36),
torna-se claro que “o Messias é o único Rei que não reina desde fora”, ou seja,
com poder igual ao dos monarcas ou parlamentos deste mundo, dinheiro, impostos,
armas ou decretos. Reina, pois, desde dentro, aproximando-se das pessoas,
descendo ao seu nível, amando-as e dando a vida por elas.
Assim, Jesus assume a identidade deste Servo e cumpre
por inteiro a sua missão. Mais: faz-nos cúmplices do cumprimento dessa sua
missão, porque desígnio do Pai para com todos. Por isso, batiza-nos, não na simples
água do rio vulgar ou da fonte, que pode estar inquinada, mas na água fecundada
pelo Espírito através do sangue derramado por Cristo ou, se quisermos, na água
capaz de simbolizar a união da humanidade com a divindade, mas por iniciativa e
dom de Deus. E, como o Espírito, com a força, abundância e totalidade do dom de
Deus, ungiu e transformou os apóstolos, também a voz do Pai, como quer São
Gregório Magno, “troa admiravelmente porque, como força escondida, penetra nos
nossos corações”.
2021.01.10
– Louro de Carvalho
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