Na celebração da Solenidade da Epifania do Senhor, três
figuras humanas sobressaem: o profeta Isaías, em torno da luz que encherá
Jerusalém; o apóstolo Paulo, portador do mistério que lhe foi revelado; e uns
magos, provindos do Oriente, que viram a estrela do Rei dos Judeus e decidiram
segui-la para O adorarem e Lhe oferecerem os seus presentes.
A luz brilhou para todos, o mistério tornou-se acessível
a todos e a estrela no céu era visível por todos. Todavia, muitos não viram
nada e muitos dos que viram não se deixaram tocar e orientar pelos elementos
orientadores. Foi como se não tivessem visto nem ouvido.
A propósito desta poderosa revelação epifânica de Deus
a todos os povos, Dom António Couto, Bispo de Lamego, evoca a visão de Balão –
profeta de olhos claros e postos no futuro, oriundo das margens do Eufrates,
região dos “Montes do Oriente” – em que ele diz: “Eu o vejo, mas não agora, eu o contemplo, mas não de perto: uma estrela
desponta (anateleî) de Jacob, um
cetro se levanta de Israel” (Nm 24,17).
Isaías (Is 60,1-6), inspirado pelo
sol nascente que ilumina as pedras brancas das construções de Jerusalém e faz a
cidade transfigurar-se pela manhã por entre as montanhas que a circundam, sonha
com uma cidade diferente da que os regressados do Exílio conhecem. A nova
Jerusalém levantar-se-á ao chegar a luz salvadora de Deus, que lhe dará uma
nova face. Então a nova Cidade atrairá os olhares de todos quantos esperam a
salvação e, personificada
como mãe extremosa, será abundantemente
repovoada com o regresso de muitos “filhos” e “filhas” que, assustados pelas
condições de pobreza e de instabilidade, ainda não se decidiram a regressar. E também
os povos de toda a terra – atraídos pela promessa do encontro com a salvação de
Deus – para ali convergirão inundando a cidade com todo o tipo de riquezas,
nomeadamente incenso para o serviço do Templo, e cantando os louvores de Deus.
Esta luz nova que desponta no céu (Lc 1,78; 2,9; cf Nm 24,17; Is 60,1-2;
Ml 3,20) e o rebento que
germina (Jr 23,5; Zc 6,12), designados pelo nome grego anatolê – nascimento (dos astros), levante, oriente, fonte, manancial
dum rio – ou por formas verbais de anatéllô (fazer levantar, fazer parecer, surgir, nascer), são
figura do Messias. Assim, a estrela que brilha aos olhos dos magos e arde no
seu coração orienta os passos deles e os de toda a humanidade para a verdadeira
Estrela que desponta e para o Rebento que germina – o Menino para quem os Magos
e, com eles, toda a humanidade orientam toda a sua vida. Tal é o significado do
verbo “adorar” (proskynéô). Esta orientação pessoal para Deus é o verdadeiro
presente que se pode e deve oferecer ao Menino, embora simbolizável na tríplice
oferenda: ouro, incenso e mirra – que sabemos, desde Ireneu de Lião (130-203), que o ouro significa a realeza, o incenso
a divindade e a mirra o homem que morrerá e será sepultado. Realiza-se com os
magos a plena aproximação dos pagãos ao reino do Messias, como aconteceu com a
Rainha da Sabá (1Rs
10,1-10) e como se promete
da parte dos reis de Társis e das ilhas, de Sabá e de Seba e de todos os reis (Sl 72,10) e de tantos, como refere Isaías (vd Is 60,1-9) – tema da universalidade da salvação
que é recorrente nos Evangelhos.
A visita dos magos ao menino de Belém (Mt
2,1-12) configura
um episódio simpático e terno que, ao longo do tempo, vem provocando considerável
impacto nos sonhos e fantasias dos cristãos. Porém, é de recordar que o
episódio se situa no âmbito do “Evangelho da Infância” e os factos aqui relatados
não são descrição exata de acontecimentos históricos, mas catequese sobre Jesus
e a sua missão. Ou seja, Mateus não está interessado em apresentar uma
reportagem da visita de chefes de Estado estrangeiros à gruta de Belém (não sabemos quantos nem os nomes nem
se eram reis: o número, os nomes e o designativo de reis são de conhecimento tardio
e simbólico). Está, antes,
interessado em apresentar, com recurso a símbolos e imagens expressivos para os
primeiros cristãos, Jesus como o enviado de Deus Pai, que vem oferecer a
salvação de Deus aos homens de toda a terra. Nestes termos, o escopo do
evangelista não é histórico, mas catequético.
Antes de mais, é notória a insistência de Mateus no facto de
Jesus ter nascido em Belém de Judá. Para entender tal insistência, importa considerar
que Belém era a terra natal do rei David, estando a Belém ligada a família de
David. Ora, afirmar que Jesus nasceu em Belém é ligá-Lo aos anúncios proféticos
do Messias como o descendente de David que havia de nascer em Belém (cf Mq 5,1.3; cf 2Sm 5,2) e restaurar o reino ideal de seu pai.
Com esta nota, o evangelista aquieta os que pensavam que Jesus nascera em
Nazaré e viam nisso um obstáculo para O reconhecerem como o Messias libertador.
Depois, vem a referência a uma estrela “especial” que surgiu no
céu por esta altura e guiou os magos para Belém. A interpretação desta
referência levou a cálculos astronómicos complicados, o que é secundário. De facto,
muitos astrónomos, historiadores e curiosos têm-se esforçado por identificar a
estrela que despontou e guiou os Magos apresentando como hipóteses viáveis: a)
o cometa Halley, visto em 12-11 a. C.; b) a tríplice conjunção de Júpiter e
Saturno na constelação de Peixes, em 7 a. C.; c) uma nova ou supernova, visível em 5-4 a. C. Esta está
registada nos observatórios astronómicos chineses. A referida conjunção de
Júpiter e Saturno está registada nos observatórios da Babilónia e do Egito.
Johannes Kepler (1571-1630), que estudou o assunto em pormenor,
dedica particular atenção aos fenómenos referentes ao cometa e à conjunção. Porém,
a estrela dos Magos é só vista por eles. E Balaão, que também vê, vê de modo
diferente.
Na realidade, é inútil e risível procurar nos céus a estrela
ou cometa em causa, pois Mateus não está a narrar factos históricos. Segundo a
crença da época, o nascimento duma personalidade importante era acompanhado da
aparição duma nova estrela. E a tradição judaica anunciava o Messias como a
estrela que surge de Jacob (cf Nm 24,17). É,
pois, com estes elementos que a imaginação de Mateus, posta ao serviço da catequese,
refere a “estrela”, interessado em fornecer aos cristãos da sua comunidade
argumentos seguros para rebater os que negavam que Jesus era o Messias esperado.
Por outro lado, a palavra grega “mágoi”, usada por Mateus, abarcando um vasto leque de significados,
é aplicada a personagens diversas: mágicos, feiticeiros, charlatães, sacerdotes
persas, propagandistas religiosos, reis. Aqui, designará astrólogos
mesopotâmios em contacto com o messianismo judaico. Seja como for, os magos
representam, para Mateus, os povos estrangeiros de que fala Isaías (cf Is 60,1-6), que se põem a caminho de Jerusalém
com as suas riquezas (ouro,
incenso e mirra) ao
encontro da luz salvadora de Deus que brilha sobre a cidade santa. Jesus é, na
opinião de Mateus e da catequese da Igreja primitiva, essa “luz”.
Além da catequese sobre Jesus, o relato recolhe, de forma
paradigmática, duas atitudes que se repetem ao longo de todo o Evangelho: Israel
rejeita Jesus, enquanto os povos do oriente (que são pagãos) O adoram. Herodes e Jerusalém “ficam perturbados” ante a
notícia do nascimento do menino e planeiam a sua morte, ao passo que os pagãos reconhecem
em Jesus o seu salvador e sentem grande alegria – alegria que evoca já a
alegria das mulheres, ainda antes de verem o Senhor Ressuscitado (Mt 28,8).
Assim, o evangelista anuncia que Jesus será rejeitado pelo
seu Povo (veio para o que era seu e os seus não O
receberam: Jo 1,11),
mas será acolhido pelos pagãos, que integrarão o novo Povo de Deus. O
itinerário dos magos reflete a caminhada que os pagãos fizeram para encontrar
Jesus: atentos aos sinais (estrela), percebem que Jesus é a luz que traz
a salvação e põem-se a caminho para O encontrarem, perguntam aos judeus (que sabem e controlam as Escrituras,
mas não sabem do Messias)
o que fazer, encontram Jesus e adoram-No. É provável que grande número de
pagano-cristãos da comunidade mateana descobrisse neste relato as etapas do seu
próprio caminho para Jesus.
Os magos são avisados em sonhos por um anjo a que
voltem por outro caminho (di’ állês odoû). Na verdade, depois de adorar e presentear
Jesus, é preciso manter esta orientação atitudinal e não ceder nem dar espaço às
forças do mal, porque a inveja ou o medo podem levar à destruição dos novos caminhos
e à perda de vidas. Quem viu Jesus, não pode mais limitar-se a continuar seja o
que for andando por caminhos velhos, tem de abrir e percorrer um caminho novo.
Nunca será demasiado reiterar que os magos, como diz
Dom António Couto, “representam a humanidade de coração puro e de olhar puro
que, agora e de perto, sabe ler os sinais de Deus, sejam eles a estrela que
desponta (anateleî) (2,2 e 9) ou o sonho (2,12), uma e outro indicadores de caminhos novos,
insuspeitados”, de modo que “até para casa precisamos de aprender o caminho,
pois é, na verdade, um caminho novo”. E o prelado académico adverte que tanto
Balaão como os magos vêm do Oriente e que o texto grego diz, no plural, “dos
Orientes” (ap’anatolôn). Com efeito, “só a estrela (anatolê) que desponta (anatoleî), no singular, pode orientar a nossa
humanidade perdida no meio da confusão do plural”.
Os magos são confrontados com dois cenários opostos: “o
Menino e sua Mãe” (Mt
2,11), de serenidade; e “o
rei Herodes perturbado e toda a Jerusalém com ele” (Mt 2,3), o contraponto com que abre para a rejeição de Jesus.
É, de facto, o modo como se espelham as intenções dos corações – a serenidade e
paz ou a inveja e a sanha assassina.
E Paulo (Ef
3,2-3.5-6) faz
saber, para nosso espanto, maravilha e alegria, que os pagãos são coerdeiros e
comparticipantes da Promessa de Deus em Jesus Cristo, por meio do Evangelho. Na
verdade, a este apóstolo como os Doze, também
foi revelado “o mistério”. É esse “mistério” que Paulo aqui desvela aos crentes
da Ásia Menor, insistindo que, em Cristo, chegou a salvação definitiva para os
homens e que essa salvação não se destina exclusivamente aos judeus, mas
destina-se a todos os povos da terra, sem exceção.
Paulo é, por chamamento divino, o arauto desta novidade, o
que dá para entender porque é que Paulo se fez o grande arauto da boa nova de
Jesus entre os pagãos. Agora, judeus e gentios são membros de um mesmo e único “corpo”,
o “corpo de Cristo”, que é a Igreja, partilham o mesmo desígnio salvador que os
faz, em igualdade de circunstâncias com os judeus, “filhos de Deus” e participantes
da promessa de Deus a Abraão (cf Gn 12,3) – promessa concretizada
em Cristo.
Enfim, por força do Evangelho que viaja sem passaporte,
somos verdadeiramente filhos e irmãos. E, entre filhos e irmãos, não há fronteiras
nem barreiras nem muros nem qualquer separação. Sentamo-nos à mesa do banquete
e da solidariedade porque filhos no Filho.
Este é o fruto da Epifania que, sendo teofania, também
é “hyiofania” e “adelfofania”.
2021.01.03
– Louro de Carvalho
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