domingo, 3 de janeiro de 2021

Mais do que ter um guia é preciso segui-lo para sermos filhos de Deus

 

Na celebração da Solenidade da Epifania do Senhor, três figuras humanas sobressaem: o profeta Isaías, em torno da luz que encherá Jerusalém; o apóstolo Paulo, portador do mistério que lhe foi revelado; e uns magos, provindos do Oriente, que viram a estrela do Rei dos Judeus e decidiram segui-la para O adorarem e Lhe oferecerem os seus presentes.

A luz brilhou para todos, o mistério tornou-se acessível a todos e a estrela no céu era visível por todos. Todavia, muitos não viram nada e muitos dos que viram não se deixaram tocar e orientar pelos elementos orientadores. Foi como se não tivessem visto nem ouvido.

A propósito desta poderosa revelação epifânica de Deus a todos os povos, Dom António Couto, Bispo de Lamego, evoca a visão de Balão – profeta de olhos claros e postos no futuro, oriundo das margens do Eufrates, região dos “Montes do Oriente” – em que ele diz: “Eu o vejo, mas não agora, eu o contemplo, mas não de perto: uma estrela desponta (anateleî) de Jacob, um cetro se levanta de Israel(Nm 24,17).

Isaías (Is 60,1-6), inspirado pelo sol nascente que ilumina as pedras brancas das construções de Jerusalém e faz a cidade transfigurar-se pela manhã por entre as montanhas que a circundam, sonha com uma cidade diferente da que os regressados do Exílio conhecem. A nova Jerusalém levantar-se-á ao chegar a luz salvadora de Deus, que lhe dará uma nova face. Então a nova Cidade atrairá os olhares de todos quantos esperam a salvação e, personificada como mãe extremosa, será abundantemente repovoada com o regresso de muitos “filhos” e “filhas” que, assustados pelas condições de pobreza e de instabilidade, ainda não se decidiram a regressar. E também os povos de toda a terra – atraídos pela promessa do encontro com a salvação de Deus – para ali convergirão inundando a cidade com todo o tipo de riquezas, nomeadamente incenso para o serviço do Templo, e cantando os louvores de Deus.

Esta luz nova que desponta no céu (Lc 1,78; 2,9; cf Nm 24,17; Is 60,1-2; Ml 3,20) e o rebento que germina (Jr 23,5; Zc 6,12), designados pelo nome grego anatolê – nascimento (dos astros), levante, oriente, fonte, manancial dum rio – ou por formas verbais de anatéllô (fazer levantar, fazer parecer, surgir, nascer), são figura do Messias. Assim, a estrela que brilha aos olhos dos magos e arde no seu coração orienta os passos deles e os de toda a humanidade para a verdadeira Estrela que desponta e para o Rebento que germina – o Menino para quem os Magos e, com eles, toda a humanidade orientam toda a sua vida. Tal é o significado do verbo “adorar” (proskynéô). Esta orientação pessoal para Deus é o verdadeiro presente que se pode e deve oferecer ao Menino, embora simbolizável na tríplice oferenda: ouro, incenso e mirra – que sabemos, desde Ireneu de Lião (130-203), que o ouro significa a realeza, o incenso a divindade e a mirra o homem que morrerá e será sepultado. Realiza-se com os magos a plena aproximação dos pagãos ao reino do Messias, como aconteceu com a Rainha da Sabá (1Rs 10,1-10) e como se promete da parte dos reis de Társis e das ilhas, de Sabá e de Seba e de todos os reis (Sl 72,10) e de tantos, como refere Isaías (vd Is 60,1-9) – tema da universalidade da salvação que é recorrente nos Evangelhos.  

A visita dos magos ao menino de Belém (Mt 2,1-12) configura um episódio simpático e terno que, ao longo do tempo, vem provocando considerável impacto nos sonhos e fantasias dos cristãos. Porém, é de recordar que o episódio se situa no âmbito do “Evangelho da Infância” e os factos aqui relatados não são descrição exata de acontecimentos históricos, mas catequese sobre Jesus e a sua missão. Ou seja, Mateus não está interessado em apresentar uma reportagem da visita de chefes de Estado estrangeiros à gruta de Belém (não sabemos quantos nem os nomes nem se eram reis: o número, os nomes e o designativo de reis são de conhecimento tardio e simbólico). Está, antes, interessado em apresentar, com recurso a símbolos e imagens expressivos para os primeiros cristãos, Jesus como o enviado de Deus Pai, que vem oferecer a salvação de Deus aos homens de toda a terra. Nestes termos, o escopo do evangelista não é histórico, mas catequético.

Antes de mais, é notória a insistência de Mateus no facto de Jesus ter nascido em Belém de Judá. Para entender tal insistência, importa considerar que Belém era a terra natal do rei David, estando a Belém ligada a família de David. Ora, afirmar que Jesus nasceu em Belém é ligá-Lo aos anúncios proféticos do Messias como o descendente de David que havia de nascer em Belém (cf Mq 5,1.3; cf 2Sm 5,2) e restaurar o reino ideal de seu pai. Com esta nota, o evangelista aquieta os que pensavam que Jesus nascera em Nazaré e viam nisso um obstáculo para O reconhecerem como o Messias libertador.

Depois, vem a referência a uma estrela “especial” que surgiu no céu por esta altura e guiou os magos para Belém. A interpretação desta referência levou a cálculos astronómicos complicados, o que é secundário. De facto, muitos astrónomos, historiadores e curiosos têm-se esforçado por identificar a estrela que despontou e guiou os Magos apresentando como hipóteses viáveis: a) o cometa Halley, visto em 12-11 a. C.; b) a tríplice conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, em 7 a. C.; c) uma nova ou supernova, visível em 5-4 a. C. Esta está registada nos observatórios astronómicos chineses. A referida conjunção de Júpiter e Saturno está registada nos observatórios da Babilónia e do Egito. Johannes Kepler (1571-1630), que estudou o assunto em pormenor, dedica particular atenção aos fenómenos referentes ao cometa e à conjunção. Porém, a estrela dos Magos é só vista por eles. E Balaão, que também vê, vê de modo diferente.

Na realidade, é inútil e risível procurar nos céus a estrela ou cometa em causa, pois Mateus não está a narrar factos históricos. Segundo a crença da época, o nascimento duma personalidade importante era acompanhado da aparição duma nova estrela. E a tradição judaica anunciava o Messias como a estrela que surge de Jacob (cf Nm 24,17). É, pois, com estes elementos que a imaginação de Mateus, posta ao serviço da catequese, refere a “estrela”, interessado em fornecer aos cristãos da sua comunidade argumentos seguros para rebater os que negavam que Jesus era o Messias esperado.

Por outro lado, a palavra grega “mágoi”, usada por Mateus, abarcando um vasto leque de significados, é aplicada a personagens diversas: mágicos, feiticeiros, charlatães, sacerdotes persas, propagandistas religiosos, reis. Aqui, designará astrólogos mesopotâmios em contacto com o messianismo judaico. Seja como for, os magos representam, para Mateus, os povos estrangeiros de que fala Isaías (cf Is 60,1-6), que se põem a caminho de Jerusalém com as suas riquezas (ouro, incenso e mirra) ao encontro da luz salvadora de Deus que brilha sobre a cidade santa. Jesus é, na opinião de Mateus e da catequese da Igreja primitiva, essa “luz”.

Além da catequese sobre Jesus, o relato recolhe, de forma paradigmática, duas atitudes que se repetem ao longo de todo o Evangelho: Israel rejeita Jesus, enquanto os povos do oriente (que são pagãos) O adoram. Herodes e Jerusalém “ficam perturbados” ante a notícia do nascimento do menino e planeiam a sua morte, ao passo que os pagãos reconhecem em Jesus o seu salvador e sentem grande alegria – alegria que evoca já a alegria das mulheres, ainda antes de verem o Senhor Ressuscitado (Mt 28,8).

Assim, o evangelista anuncia que Jesus será rejeitado pelo seu Povo (veio para o que era seu e os seus não O receberam: Jo 1,11), mas será acolhido pelos pagãos, que integrarão o novo Povo de Deus. O itinerário dos magos reflete a caminhada que os pagãos fizeram para encontrar Jesus: atentos aos sinais (estrela), percebem que Jesus é a luz que traz a salvação e põem-se a caminho para O encontrarem, perguntam aos judeus (que sabem e controlam as Escrituras, mas não sabem do Messias) o que fazer, encontram Jesus e adoram-No. É provável que grande número de pagano-cristãos da comunidade mateana descobrisse neste relato as etapas do seu próprio caminho para Jesus.

Os magos são avisados em sonhos por um anjo a que voltem por outro caminho (di’ állês odoû). Na verdade, depois de adorar e presentear Jesus, é preciso manter esta orientação atitudinal e não ceder nem dar espaço às forças do mal, porque a inveja ou o medo podem levar à destruição dos novos caminhos e à perda de vidas. Quem viu Jesus, não pode mais limitar-se a continuar seja o que for andando por caminhos velhos, tem de abrir e percorrer um caminho novo.

Nunca será demasiado reiterar que os magos, como diz Dom António Couto, “representam a humanidade de coração puro e de olhar puro que, agora e de perto, sabe ler os sinais de Deus, sejam eles a estrela que desponta (anateleî) (2,2 e 9) ou o sonho (2,12), uma e outro indicadores de caminhos novos, insuspeitados”, de modo que “até para casa precisamos de aprender o caminho, pois é, na verdade, um caminho novo”. E o prelado académico adverte que tanto Balaão como os magos vêm do Oriente e que o texto grego diz, no plural, “dos Orientes” (ap’anatolôn). Com efeito, “só a estrela (anatolê) que desponta (anatoleî), no singular, pode orientar a nossa humanidade perdida no meio da confusão do plural”.

Os magos são confrontados com dois cenários opostos: “o Menino e sua Mãe” (Mt 2,11), de serenidade; e “o rei Herodes perturbado e toda a Jerusalém com ele” (Mt 2,3), o contraponto com que abre para a rejeição de Jesus. É, de facto, o modo como se espelham as intenções dos corações – a serenidade e paz ou a inveja e a sanha assassina.

E Paulo (Ef 3,2-3.5-6) faz saber, para nosso espanto, maravilha e alegria, que os pagãos são coerdeiros e comparticipantes da Promessa de Deus em Jesus Cristo, por meio do Evangelho. Na verdade, a este apóstolo como os Doze, também foi revelado “o mistério”. É esse “mistério” que Paulo aqui desvela aos crentes da Ásia Menor, insistindo que, em Cristo, chegou a salvação definitiva para os homens e que essa salvação não se destina exclusivamente aos judeus, mas destina-se a todos os povos da terra, sem exceção.

Paulo é, por chamamento divino, o arauto desta novidade, o que dá para entender porque é que Paulo se fez o grande arauto da boa nova de Jesus entre os pagãos. Agora, judeus e gentios são membros de um mesmo e único “corpo”, o “corpo de Cristo”, que é a Igreja, partilham o mesmo desígnio salvador que os faz, em igualdade de circunstâncias com os judeus, “filhos de Deus” e participantes da promessa de Deus a Abraão (cf Gn 12,3) – promessa concretizada em Cristo.

Enfim, por força do Evangelho que viaja sem passaporte, somos verdadeiramente filhos e irmãos. E, entre filhos e irmãos, não há fronteiras nem barreiras nem muros nem qualquer separação. Sentamo-nos à mesa do banquete e da solidariedade porque filhos no Filho.

Este é o fruto da Epifania que, sendo teofania, também é “hyiofania” e “adelfofania”.

2021.01.03 – Louro de Carvalho

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