domingo, 24 de janeiro de 2021

Chama discípulos para com Ele e por Ele proclamarem o Reino de Deus

 

A 1.ª parte do Evangelho de Marcos (Mc 1,14-8,30) pretende fazer-nos descobrir Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus e chama cooperadores para esta proclamação.

Assim, os ouvintes/leitores do Evangelho são instados a escutar as palavras do Mestre e a fazerem-se discípulos com vista à cooperação no anúncio do Reino e no apelo à conversão.

A descoberta do Messias que Marcos nos propõe, ao longo dum percurso mais catequético que biográfico ou geográfico, termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe, “Tu és o Messias(“Sy eî ho Khristós”), a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado pari passu o percurso de Jesus.

O trecho do Evangelho tomado para o III domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 1,14-20) marca o início desta caminhada com o Messias e com o seu anúncio de salvação, ou seja, os primeiros passos da ação do Messias. E isto acontece na Galileia – região em permanente contacto com os pagãos, pelo que as autoridades religiosas de Jerusalém a têm como terra donde “não podia vir nada de bom” – terra insignificante, a “Galileia dos gentios”, que parecia condenada a ser uma região periférica por onde nunca passariam os caminhos de Deus.

O trecho em referência divide-se em duas partes. Na 1.ª, o evangelista resume a pregação inicial de Jesus (Mc 1,14-15); na segunda, apresenta, com a chamada de discípulos, os primeiros passos da comunidade do Reino (Mc 1,16-20). Em suma, este passo evangélico formula o convite que Jesus faz a todos no sentido de integrarem a comunidade do Reino e apresenta o seu modelo para a forma como os chamados devem escutar e acolher esse convite.

Em termos do resumo da pregação inicial de Jesus, Marcos põe na boca de Jesus as asserções indissociáveis: “Cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.” (Mc 1,15). O termo grego utilizado por Marcos para significar “tempo” é “kairós”, distinto do tempo material, “khronos”, o tempo mensurável pelo relógio. Aqui trata-se do tempo favorável para o cumprimento das promessas de Deus em favor do mundo, o “tempo” da vinda do “Reino de Deus”.

A catequese de Israel (como a de outros povos do Crescente Fértil) referia-se a Javé como o rei que, sentado no seu trono, governa o seu Povo. E, quando Israel passou a ter reis, eram considerados como homens escolhidos e ungidos pelo Senhor para governarem o Povo em lugar de Deus (seus terratenentes), o verdadeiro rei. Tanto assim era que a saudade do rei ideal e do tempo de paz e felicidade em que o Senhor reinava sobre o seu povo através de David, marca toda a história futura de Israel. Por isso, quando reis medíocres conduziam a nação por caminhos de morte e desgraça, sofrendo ou gerando crise, o Povo sonhava com o regresso aos tempos de David; e os profetas alimentam a esperança do Povo com o anúncio dum tempo em que o Senhor restabelecerá a situação ideal da época de David. Na ótica profética, essa tarefa será missão a confiar a um ungido ou Messias (em grego, “Khristós”) que Deus enviará ao Povo, para instaurar um tempo infindo de paz, justiça, abundância e felicidade.

O Reino de Deus é, pois, uma noção que resume a esperança de Israel num mundo novo. E o discurso evangélico de Jesus mostra que Ele tinha consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua ação. Por isso, Ele deseja começar a construção do Reino com todos, pelo que insta à conversão e ao acolhimento da Boa Nova. “Converter-se” ou assumir a “metánoia” significa transformar a mentalidade, as atitudes e os comportamentos e adotar os valores que orientam a vida no verdadeiro sentido, de modo a que Deus passe a estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar, pois, na perspetiva de Jesus, não pode esse mundo novo de amor e de paz tornar-se realidade sem que o homem renuncie ao egoísmo e autossuficiência e se disponha a escutar Deus. E “acreditar”, mais do que aceitar um conjunto de verdades intelectuais é aderir à pessoa de Jesus, escutar o seu convite, acolhê-lo no coração e fazer dele o guia da própria vida; é “escutar a “Boa Notícia” de salvação e libertação que Jesus anuncia a todos e fazer dela o centro em torno do qual gravita toda a nossa existência.

Conversão e aceitação do convite de Jesus são, pois, duas faces da mesma moeda: a construção do homem novo, o homem do Reino, capaz de amar o próximo (Mt 22,39), mesmo que adversário ou inimigo (Lc 10,29-37), que não vive para o egoísmo e riqueza, mas para a partilha (Mc 6,32-44) e que não vive para o poder e dominar, mas para o serviço e entrega da vida (Mc 10,35-45).

Depois do anúncio inicial de Jesus, Marcos apresenta os primeiros discípulos. Pedro e André, Tiago e João são – na versão de Marcos – os primeiros a responder ao desafio do Reino, ou seja, são os primeiros a dispor-se à conversão e à fé na Boa Nova.

O chamamento dos primeiros discípulos não é de todo um episódio de crónica, mas o arquétipo de toda a vocação cristã. Segundo este arquétipo, a entrada na comunidade do Reino é sempre iniciativa de Jesus e é dirigida a pessoas concretas e normais, com nome, história de vida, eventualmente uma profissão e mesmo uma família. Essa iniciativa constitui um chamamento sempre categórico, exigente e radical: Jesus não explica nada, não dá garantias, até nem vê se os chamados responderam. Tal chamamento não se destina a colher lições de um mestre para, depois, repetir a doutrina, mas é um convite a aderir à pessoa de Jesus, para fazer com Ele uma experiência de vida, para aprender com Ele a ser uma pessoa nova que vive no amor a Deus e aos irmãos e dar este testemunho junto dos outros. Mais: tal chamamento postula resposta imediata, total, incondicional e que subalternize tudo o mais para seguir Jesus e integrar a comunidade do Reino. Na verdade, Pedro, André, Tiago e João não exigem garantias, não pedem tempo para medir os prós e os contras, pôr em ordem os negócios, se despedirem do pai ou dos amigos; antes se limitam a deixar tudo e a seguir Jesus.

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Dom António Couto, Bispo de Lamego, adverte que não é a primeira vez que Jesus surge em cena no Evangelho de Março, pois já surgira a caminhar da Galileia para o Jordão, para ser batizado por João Batista (Mc 1,9), mas ainda não fizera soar a sua voz, ao passo que agora, ao ouvi-Lo pela primeira vez, deparamos com um anúncio programático.   

Entretanto, o prelado académico não perde pitada e anota dois dizeres do narrador que unem “os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos”. Primeiro, temos: “Depois de João ter sido entregue (paradothênai: infinitivo aoristo passivo de paradídômi) (Mc 1,14) –prolepse que dá para ver o que sucederá a Jesus, a respeito de quem Marcos usa este verbo 13 vezes (Mc 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos discípulos (Mc 13,9.11.12). A seguir, vem o verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o primeiro afazer profético de Jesus (Mc 1,14), qual fio condutor a unir Jesus (Mc 1,14.38.39), o Batista (Mc 1,4.7), os Doze (Mc 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Mc 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Mc 13,10; 14,9). Porém, este verbo kêrýssô, mais do que fazer dizer ou escutar mensagens, “implica a radical fidelidade do anunciador ou mensageiro” a quem “lhe confia a mensagem e o envia a anunciá-la”. Assim, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros fiéis, sempre vinculados a Deus, e a missão primordial é testemunhar tal proximidade e compromisso. Claramente, tanto Jesus como o precursor e os discípulos-seguidores encontram-se inteiramente vinculados a Deus e ao Evangelho, de que vivem. Não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião, mas do saber de Deus.

E o primeiro dito do Senhor é composto de duas asserções indissociáveis que são um verdadeiro ato ilocutório declarativo, pois a realidade agora é outra: “Foi cumprido (peplêrotai: perfeito passivo de plêróô) o tempo (ho kairós), e fez-se próximo (êggiken: perfeito de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)(Mc 1,15). As duas formas verbais do perfeito abrem enfaticamente as duas vertentes da declaração e revelam que o Evangelho é, antes de mais, o anúncio da iniciativa divina, ou seja, Deus em ação abre ao homem novas perspetivas. O perfeito passivo peplêrotai, que enquadra o kairós, mostra que Jesus não se reporta a um segmento de tempo cronológico, mas ao da intervenção definitiva de Deus. E sublinha Dom António Couto que “só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança”. Jesus não abre com um código de normas (não é moralista, mas evangelizador), mas vinca quanto Deus fez e está a fazer, por sua gratuitidade, em nosso favor. E isso dá força para que, logo a seguir, irrompam da parte de Jesus duas prementes e consentâneas ordens: “Convertei-vos (metanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho” (Mc 1,15). Eis o que os homens devem fazer.

Depois do pregão, Jesus entende que é o tempo de chamar, de convidar a romper laços pessoais, laborais, grupais e familiares, tudo começando com o “ver e fazer criadores de Jesus, que viu os pescadores Simão e André, Tiago e João, e os chamou: “Vinde atrás de mim, e farei de vós…”. Não são os discípulos que vão ter com Jesus a candidatarem-se a emprego. E Jesus não os assume como funcionários, com remuneração, férias e proteção social. Apenas os vê, toma a iniciativa e chama. E eles foram atrás de Jesus, sem saberem para onde, mas com total confiança Naquele que lhes prometeu: “farei que vós vos torneis pescadores de homens(“poiêsô hymâs genésthai haleeîs anthrôpôn” – Mc 1,17). Fizeram-no em dois momentos: “Imediatamente” Simão e André deixaram as redes, que eram o seu ganha-pão, e foram atrás Dele (“kaì euthys aphéntes tà díktyaêkoloúthesan autôi” – Mc 1,18); Tiago e João, deixando o seu pai Zebedeu no barco com os assalariados, seguiram-No (“aphéntes tòn patèra autôn Zebedaîon en tôi ploíôi metà tôn misthôtôn apêlthon opísô autoû” – Mc 1,20).

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Vemos os discípulos aderir a Jesus e a segui-Lo, o que será recorrente no Evangelho. Fala-lhes do Reino de Deus, faz prodígios, nomeadamente curas diante deles e manda-os em missão. Veja-se, por exemplo, Mc 6,6b-12 e 6,30-33. No primeiro passo, mandou-os dois a dois, não levando nada para o caminho, e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos; e eles partiram a pregar o arrependimento, expulsar demónios, ungir doentes e a curá-los. No segundo passo, regressaram e contaram-Lhe tudo o que fizeram e ensinaram. Foi o primeiro sinal de que, tendo aprendido e partilhado com Ele o gosto pelo mistério do Reino, se destinavam a falar e agir em nome de Jesus. Por fim, o mandato final do Ressuscitado é o de irem pelo mundo inteiro proclamar o Evangelho a toda a criatura, com a garantia de que quem acreditar e for batizado será salvo e de que aqueles que acreditarem, em nome dele, expulsarão demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos, não lhes fará mal veneno que por acaso bebam, curarão os doentes a quem impuserem as mãos. E os discípulos acolheram o mandato indo pregar por toda a parte; e o Senhor cooperava com eles confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam e a robusteciam (cf Mc 16,15.17.20).

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Os discípulos não fizeram como Jonas, pelo que não tiveram que encarar as voltas que o chamamento de Deus desencadeou na vida do profeta (vd Jn 3,1-5.10). Este ouve o chamamento e a ordem de Deus para ir pregar a Nínive, a cidade inimiga (Jn 1,1-2). E devia levar por diante a missão com gosto, pois era preciso ir dizer àquela cidade que Deus lhe decretara o fim. Porém, o profeta não quer ir, mas não é por sentir pena de Nínive, pois sabe que Deus, misericordioso, clemente, compassivo e paciente, se arrepende do mal (Jn 4,2) e que, apregoando Jonas que, dali a 40 dias, Nínive seria destruída (cf Jn 3,4), os ninivitas mudariam de vida, o que levaria Deus a mudar de plano, não destruindo a cidade. O profeta preferia que Nínive fosse mesmo castigada, pelo que não queria ir lá pregar (cf Jn 1,3-2,11). Contudo, Deus é mais forte, e Jonas acaba por ir parar a Nínive e ali pregou a contragosto (cf Jn 3,10). E, quando percebeu que os ninivitas se converteram, o que ele já previa, e que Deus também amava Nínive, Jonas foi tomado por grande desgosto (Jn 4,1) e pediu a Deus a morte (Jn 4,3), por a vida lhe deixar de ter sentido.

Ora, Jonas viveu no tempo de Esdras, que mandara dissolver os matrimónios mistos contraídos pelos exilados durante o Exílio ou após o regresso a Sião. Tal medida teve enorme impacto na consciência judaica, tendo os conservadores eclipsado o exílio da sua história e ligando diretamente a nova época judaica ao antes do Exílio. O profeta Jonas incarna este Israel particularista ao invés do autor do Livro, que preconiza um universalismo salvífico próximo do Novo Testamento (cf Jn 4,10-11).

Os discípulos, ao contrário de Jonas, davam com alegria testemunho do Ressuscitado e, já que partilharam com Ele do conhecimento, que saborearam, sentiram-se impelidos a batalhar pelo reino por Cristo e em nome de Cristo, fazendo por Ele a oferta de suas vidas.

E o apóstolo Paulo, que não conviveu com Jesus e que até perseguiu os discípulos, mas que, por graça divina, foi incorporado, não só na comunidade dos discípulos, mas também no colégio apostólico, qual vaso de eleição (vd Gl 1,11-24; At 9,1-18), dá-nos a lição da brevidade e intensidade do tempo enquanto “ho kairós(cf 1Cor 7,29-31). Na verdade, como aponta o Bispo de Lamego, o apóstolo “começa por dizer, em tradução literal”, que “o tempo já está a enrolar as velas” (synestalménos: perfeito passivo de sy(v)-stéllô). E explica que se trata do “tempo da oportunidade dada, da enchente da Palavra de Deus”, tempo que “está a chegar ao fim”, que “já está a enrolar as velas, como fazem os marinheiros quando a embarcação se aproxima da terra”. E Paulo finaliza dizendo que “passa, na verdade, o esquema (tò schêma) deste mundo”.

E é por isso que devemos aprender a relativizar o modo como nos fincamos nas nossas ideias feitas e nos agarramos às coisas deste mundo: casamento, bens possuídos, negócios, estatuto, protagonismos. Com efeito, o único absoluto é o Reino, que temos de anunciar, testemunhar e fazer crescer com Cristo e por Cristo.

2021.01.24 – Louro de Carvalho

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