A 1.ª parte do Evangelho de Marcos (Mc 1,14-8,30) pretende fazer-nos descobrir Jesus
como o Messias que proclama o Reino de Deus e chama cooperadores para esta
proclamação.
Assim, os ouvintes/leitores do Evangelho são instados a
escutar as palavras do Mestre e a fazerem-se discípulos com vista à cooperação
no anúncio do Reino e no apelo à conversão.
A descoberta do Messias que Marcos nos propõe, ao longo dum
percurso mais catequético que biográfico ou geográfico, termina em Mc 8,29-30,
com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe, “Tu és o Messias” (“Sy
eî ho Khristós”), a
confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado pari passu o percurso de Jesus.
O trecho do Evangelho tomado para o III domingo do Tempo
Comum no Ano B (Mc
1,14-20) marca o início
desta caminhada com o Messias e com o seu anúncio de salvação, ou seja, os
primeiros passos da ação do Messias. E isto acontece na Galileia – região em
permanente contacto com os pagãos, pelo que as autoridades religiosas de
Jerusalém a têm como terra donde “não podia vir nada de bom” – terra
insignificante, a “Galileia dos gentios”, que parecia condenada a ser uma
região periférica por onde nunca passariam os caminhos de Deus.
O trecho em referência divide-se em duas partes. Na 1.ª, o
evangelista resume a pregação inicial de Jesus (Mc 1,14-15); na segunda, apresenta, com a chamada de discípulos, os
primeiros passos da comunidade do Reino (Mc 1,16-20). Em suma, este passo evangélico formula o convite que Jesus faz a todos
no sentido de integrarem a comunidade do Reino e apresenta o seu modelo para a
forma como os chamados devem escutar e acolher esse convite.
Em termos do resumo da pregação inicial de Jesus, Marcos põe
na boca de Jesus as asserções indissociáveis: “Cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e
acreditai no Evangelho.” (Mc 1,15). O termo
grego utilizado por Marcos para significar “tempo” é “kairós”, distinto do tempo material, “khronos”, o tempo mensurável pelo relógio. Aqui trata-se do tempo
favorável para o cumprimento das promessas de Deus em favor do mundo, o “tempo”
da vinda do “Reino de Deus”.
A catequese de Israel (como a de outros povos do Crescente Fértil) referia-se a Javé como o rei que,
sentado no seu trono, governa o seu Povo. E, quando Israel passou a ter reis,
eram considerados como homens escolhidos e ungidos pelo Senhor para governarem
o Povo em lugar de Deus (seus
terratenentes), o verdadeiro
rei. Tanto assim era que a saudade do rei ideal e do tempo de paz e felicidade
em que o Senhor reinava sobre o seu povo através de David, marca toda a
história futura de Israel. Por isso, quando reis medíocres conduziam a nação
por caminhos de morte e desgraça, sofrendo ou gerando crise, o Povo sonhava com
o regresso aos tempos de David; e os profetas alimentam a esperança do Povo com
o anúncio dum tempo em que o Senhor restabelecerá a situação ideal da época de
David. Na ótica profética, essa tarefa será missão a confiar a um ungido ou
Messias (em grego, “Khristós”) que Deus enviará ao Povo, para instaurar um tempo infindo
de paz, justiça, abundância e felicidade.
O Reino de Deus é, pois, uma noção que resume a esperança de
Israel num mundo novo. E o discurso evangélico de Jesus mostra que Ele tinha
consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino
dependia da sua ação. Por isso, Ele deseja começar a construção do Reino com
todos, pelo que insta à conversão e ao acolhimento da Boa Nova. “Converter-se”
ou assumir a “metánoia” significa
transformar a mentalidade, as atitudes e os comportamentos e adotar os valores
que orientam a vida no verdadeiro sentido, de modo a que Deus passe a estar no
centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar, pois, na perspetiva
de Jesus, não pode esse mundo novo de amor e de paz tornar-se realidade sem que
o homem renuncie ao egoísmo e autossuficiência e se disponha a escutar Deus. E
“acreditar”, mais do que aceitar um conjunto de verdades intelectuais é aderir
à pessoa de Jesus, escutar o seu convite, acolhê-lo no coração e fazer dele o
guia da própria vida; é “escutar a “Boa Notícia” de salvação e libertação que
Jesus anuncia a todos e fazer dela o centro em torno do qual gravita toda a nossa
existência.
Conversão e aceitação do convite de Jesus são, pois, duas
faces da mesma moeda: a construção do homem novo, o homem do Reino, capaz de
amar o próximo (Mt 22,39), mesmo que adversário ou inimigo (Lc 10,29-37), que não vive para o egoísmo e
riqueza, mas para a partilha (Mc 6,32-44) e que
não vive para o poder e dominar, mas para o serviço e entrega da vida (Mc 10,35-45).
Depois do anúncio inicial de Jesus, Marcos apresenta os
primeiros discípulos. Pedro e André, Tiago e João são – na versão de Marcos –
os primeiros a responder ao desafio do Reino, ou seja, são os primeiros a
dispor-se à conversão e à fé na Boa Nova.
O chamamento dos primeiros discípulos não é de todo um
episódio de crónica, mas o arquétipo de toda a vocação cristã. Segundo este
arquétipo, a entrada na comunidade do Reino é sempre iniciativa de Jesus e é dirigida
a pessoas concretas e normais, com nome, história de vida, eventualmente uma
profissão e mesmo uma família. Essa iniciativa constitui um chamamento sempre categórico,
exigente e radical: Jesus não explica nada, não dá garantias, até nem vê se os
chamados responderam. Tal chamamento não se destina a colher lições de um
mestre para, depois, repetir a doutrina, mas é um convite a aderir à pessoa de
Jesus, para fazer com Ele uma experiência de vida, para aprender com Ele a ser
uma pessoa nova que vive no amor a Deus e aos irmãos e dar este testemunho
junto dos outros. Mais: tal chamamento postula resposta imediata, total,
incondicional e que subalternize tudo o mais para seguir Jesus e integrar a
comunidade do Reino. Na verdade, Pedro, André, Tiago e João não exigem
garantias, não pedem tempo para medir os prós e os contras, pôr em ordem os
negócios, se despedirem do pai ou dos amigos; antes se limitam a deixar tudo e
a seguir Jesus.
***
Dom António Couto, Bispo de Lamego, adverte que não é
a primeira vez que Jesus surge em cena no Evangelho de Março, pois já surgira a
caminhar da Galileia para o Jordão, para ser batizado por João Batista (Mc 1,9), mas ainda não fizera soar a sua voz, ao passo que
agora, ao ouvi-Lo pela primeira vez, deparamos com um anúncio programático.
Entretanto, o prelado académico não perde pitada e
anota dois dizeres do narrador que unem “os caminhos e os destinos de João
Batista, de Jesus e dos seus discípulos”. Primeiro, temos: “Depois de
João ter sido entregue” (paradothênai: infinitivo aoristo passivo de paradídômi) (Mc 1,14) –prolepse que dá para ver o que
sucederá a Jesus, a respeito de quem Marcos usa este verbo 13 vezes (Mc 3,19; 9,31; 10,33;
14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos discípulos (Mc 13,9.11.12). A seguir, vem o verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o primeiro afazer profético de Jesus (Mc 1,14), qual fio condutor a unir Jesus (Mc 1,14.38.39), o Batista (Mc 1,4.7), os Doze (Mc 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Mc 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Mc 13,10; 14,9). Porém, este verbo kêrýssô, mais do que fazer dizer ou escutar
mensagens, “implica a radical fidelidade do anunciador ou mensageiro” a quem “lhe
confia a mensagem e o envia a anunciá-la”. Assim, antes de pregar, ensinar e
curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros fiéis, sempre
vinculados a Deus, e a missão primordial é testemunhar tal proximidade e
compromisso. Claramente, tanto Jesus como o precursor e os discípulos-seguidores
encontram-se inteiramente vinculados a Deus e ao Evangelho, de que vivem. Não
agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião,
mas do saber de Deus.
E o primeiro dito do Senhor é composto de duas
asserções indissociáveis que são um verdadeiro ato ilocutório declarativo, pois
a realidade agora é outra: “Foi cumprido (peplêrotai: perfeito passivo de plêróô)
o tempo (ho kairós), e fez-se próximo (êggiken: perfeito de eggízô)
o Reino de Deus (he basileía toû theoû)” (Mc
1,15). As duas formas
verbais do perfeito abrem enfaticamente as duas vertentes da declaração e
revelam que o Evangelho é, antes de mais, o anúncio da iniciativa divina, ou
seja, Deus em ação abre ao homem novas perspetivas. O perfeito passivo peplêrotai, que enquadra o kairós, mostra que Jesus não se reporta a um segmento de
tempo cronológico, mas ao da intervenção definitiva de Deus. E sublinha Dom
António Couto que “só Deus pode agir sobre o tempo cronológico,
tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de
esperança”. Jesus não abre com um código de normas (não é moralista, mas evangelizador), mas vinca quanto Deus fez e está a
fazer, por sua gratuitidade, em nosso favor. E isso dá força para que, logo a
seguir, irrompam da parte de Jesus duas prementes e consentâneas ordens: “Convertei-vos
(metanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho” (Mc 1,15). Eis o que os homens devem fazer.
Depois do pregão, Jesus entende que é o tempo de
chamar, de convidar a romper laços pessoais, laborais, grupais e familiares, tudo
começando com o “ver e fazer” criadores
de Jesus, que viu os pescadores Simão e André,
Tiago e João, e os chamou: “Vinde atrás
de mim, e farei de vós…”.
Não são os discípulos que vão ter com Jesus a candidatarem-se a emprego. E
Jesus não os assume como funcionários, com remuneração, férias e proteção
social. Apenas os vê, toma a iniciativa e chama. E eles foram atrás de Jesus,
sem saberem para onde, mas com total confiança Naquele que lhes prometeu: “farei que vós vos torneis pescadores de
homens” (“poiêsô hymâs genésthai haleeîs anthrôpôn”
– Mc 1,17). Fizeram-no
em dois momentos: “Imediatamente” Simão e André deixaram as redes, que eram o
seu ganha-pão, e foram atrás Dele (“kaì euthys aphéntes
tà díktyaêkoloúthesan autôi” – Mc 1,18); Tiago e João, deixando o seu pai Zebedeu no barco com os
assalariados, seguiram-No (“aphéntes tòn patèra autôn Zebedaîon en tôi ploíôi metà tôn misthôtôn
apêlthon opísô autoû”
– Mc 1,20).
***
Vemos os discípulos aderir a Jesus e a segui-Lo, o que
será recorrente no Evangelho. Fala-lhes do Reino de Deus, faz prodígios, nomeadamente
curas diante deles e manda-os em missão. Veja-se, por exemplo, Mc 6,6b-12 e
6,30-33. No primeiro passo, mandou-os dois a dois, não levando nada para o
caminho, e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos; e eles partiram a pregar
o arrependimento, expulsar demónios, ungir doentes e a curá-los. No segundo
passo, regressaram e contaram-Lhe tudo o que fizeram e ensinaram. Foi o
primeiro sinal de que, tendo aprendido e partilhado com Ele o gosto pelo
mistério do Reino, se destinavam a falar e agir em nome de Jesus. Por fim, o
mandato final do Ressuscitado é o de irem pelo mundo inteiro proclamar o
Evangelho a toda a criatura, com a garantia de que quem acreditar e for
batizado será salvo e de que aqueles que acreditarem, em nome dele, expulsarão
demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos, não lhes fará
mal veneno que por acaso bebam, curarão os doentes a quem impuserem as mãos. E os
discípulos acolheram o mandato indo pregar por toda a parte; e o Senhor
cooperava com eles confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam e a
robusteciam (cf Mc
16,15.17.20).
***
Os discípulos não fizeram como Jonas, pelo que não
tiveram que encarar as voltas que o chamamento de Deus desencadeou na vida do
profeta (vd Jn 3,1-5.10). Este ouve o chamamento e a ordem de
Deus para ir pregar a Nínive, a cidade inimiga (Jn 1,1-2). E devia levar por diante a missão com gosto, pois era
preciso ir dizer àquela cidade que Deus lhe decretara o fim. Porém, o profeta não
quer ir, mas não é por sentir pena de Nínive, pois sabe que Deus, misericordioso,
clemente, compassivo e paciente, se arrepende do mal (Jn 4,2) e que, apregoando Jonas que, dali a 40 dias, Nínive
seria destruída (cf Jn
3,4), os ninivitas
mudariam de vida, o que levaria Deus a mudar de plano, não destruindo a cidade.
O profeta preferia que Nínive fosse mesmo castigada, pelo que não queria ir lá
pregar (cf Jn 1,3-2,11). Contudo, Deus é mais forte, e Jonas
acaba por ir parar a Nínive e ali pregou a contragosto (cf Jn 3,10). E, quando percebeu que os ninivitas
se converteram, o que ele já previa, e que Deus também amava Nínive, Jonas foi
tomado por grande desgosto (Jn 4,1) e pediu a
Deus a morte (Jn 4,3), por a vida lhe deixar de ter
sentido.
Ora, Jonas viveu no tempo de Esdras, que mandara
dissolver os matrimónios mistos contraídos pelos exilados durante o Exílio ou
após o regresso a Sião. Tal medida teve enorme impacto na consciência judaica, tendo
os conservadores eclipsado o exílio da sua história e ligando diretamente a
nova época judaica ao antes do Exílio. O profeta Jonas incarna este Israel
particularista ao invés do autor do Livro, que preconiza um universalismo
salvífico próximo do Novo Testamento (cf Jn 4,10-11).
Os discípulos, ao contrário de Jonas, davam com
alegria testemunho do Ressuscitado e, já que partilharam com Ele do conhecimento,
que saborearam, sentiram-se impelidos a batalhar pelo reino por Cristo e em
nome de Cristo, fazendo por Ele a oferta de suas vidas.
E o apóstolo Paulo, que não conviveu com Jesus e que
até perseguiu os discípulos, mas que, por graça divina, foi incorporado, não só
na comunidade dos discípulos, mas também no colégio apostólico, qual vaso de eleição
(vd Gl 1,11-24; At 9,1-18), dá-nos a lição da brevidade e
intensidade do tempo enquanto “ho kairós” (cf 1Cor 7,29-31). Na verdade, como aponta o Bispo de Lamego,
o apóstolo “começa por dizer, em tradução
literal”, que “o tempo já está a enrolar as velas” (synestalménos: perfeito passivo de sy(v)-stéllô). E explica que
se trata do “tempo da oportunidade dada, da enchente da Palavra de Deus”, tempo
que “está a chegar ao fim”, que “já está a enrolar as velas, como fazem os
marinheiros quando a embarcação se aproxima da terra”. E Paulo finaliza dizendo
que “passa, na verdade, o esquema (tò
schêma) deste mundo”.
E é por isso que devemos aprender a relativizar o modo
como nos fincamos nas nossas ideias feitas e nos agarramos às coisas deste
mundo: casamento, bens possuídos, negócios, estatuto, protagonismos. Com efeito,
o único absoluto é o Reino, que temos de anunciar, testemunhar e fazer crescer
com Cristo e por Cristo.
2021.01.24
– Louro de Carvalho
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