sábado, 16 de janeiro de 2021

PSP vigiou e fotografou jornalistas em contacto com fontes de informação

 

A revista “Sábado”, de 14 de janeiro, denuncia que Andrea Marques, procuradora do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa, a 3 de abril de 2018, ordenou à PSP que vigiasse dois jornalistas, um da “Sábado(Carlos Rodrigues Lima) e outro do “Correio da Manhã(Henrique Machado). E a polícia não só os vigiou como os fotografou na via pública. Com efeito, o departamento de vigilâncias da PSP pôs-se no terreno e durante vários dias (entre abril e junho de 2018) seguiu, pelo menos, os passos de Carlos Lima, fotografando-o em frente ao DIAP, onde os agentes registaram um cumprimento circunstancial entre o jornalista e o procurador José Ranito, que liderou a investigação do caso BES, e no Campus da Justiça, em Lisboa.

A procuradora quis saber com quem os jornalistas contactavam no universo dos tribunais, apesar de a investigação dizer respeito apenas a eventual violação do segredo de justiça no caso E-toupeira. Mais refere a predita revista que a diligência foi ordenada à PSP sem mandado dum juiz de instrução, quando, por lei, só um tribunal superior pode ordenar a quebra do sigilo dos jornalistas. E o DIAP, afirmando que tal vigilância policial não tinha de ser validada por juiz de instrução “por não caber na sua competência tal como legalmente definida”, justifica:

Por se suspeitar que os jornalistas em causa mantinham um contacto próximo e regular com agentes policiais ou do universo dos tribunais, entendeu-se ser de extrema relevância probatória compreender com quem se relacionavam e que tipo de contactos estabeleciam com ‘fontes do processo’, de modo a procurar identificar os autores das fugas de informação”.

E garante o DIAP:

Todas as diligências foram devidamente ponderadas e efetuadas com respeito pela legalidade e objetividade”.

Tal esclarecimento não convence o Sindicato dos Jornalistas. Assim, em declarações à TSF, Sofia Branco, presidente do sindicato, considera que o caso configura “uma violação clara da Constituição da República Portuguesa, que protege as fontes de informação”, e abre “um precedente extremamente grave”.

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Na verdade, o DIAP alega que o inquérito, registado a 9 de março de 2018, se estribou em notícias referentes ao E-toupeira, então segredo de justiça, tendo os jornalistas acedido a peças do processo. Ora, por se suspeitar que os jornalistas mantinham contacto regular com agentes ligados ao processo e, para se identificarem “os autores das fugas de informação, também eles agentes da prática de crimes”, a 3 de abril de 2018, foi determinada à PSP a realização de vigilância policial dos suspeitos, autores das mencionadas notícias. Aduz que tal diligência, que implicou apenas seguimento na via pública com a extração de fotografias também elas na via pública, não se enquadra na previsão do art.º 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira), aplicável a registo de som e imagem em locais vedados ao público. Antes resulta da aplicação conjugada dos art.º 125.º e 167.º do CPP (Código de Processo Penal) e art.º 79.º, n.º 2 do CC (Código Civil) e 199.º do CP (Código Penal), não tendo de ser autorizada ou validada por juiz de instrução, por não caber na sua competência como legalmente definida (art.º 268.º e 269.º do CPP).

O relatório foi entregue a 2 de outubro de 2018. Nele consta que, a 6 de março de 2018, as primeiras notícias publicadas antes das 9 horas, referiam os meios envolvidos na operação.

Ora, tal informação, que era apenas do conhecimento da polícia,  só veio a ser veiculada oficialmente num comunicado da PJ disponibilizado mais de uma hora e meia depois das notícias. Por isso, entendeu-se ser necessário refazer o circuito das mensagens de correio eletrónico transmitidas a propósito do dito comunicado, designadamente através do acesso às caixas de correio eletrónico pelas quais circulou, incluindo emails que tivessem sido apagados, o que foi promovido pelo MP (Ministério Público) e autorizado pela juíza de instrução.

A 12 de junho de 2019, realizou-se busca às instalações da PJ, autorizada judicialmente, diligência de que foi dado conhecimento à PGR (Procuradoria-Geral da República), tendo a cópia dos dados sido feita nos termos do quadro legal de apreensão dos dados informáticos e de correio eletrónico bem como o registo de comunicações de natureza semelhante previsto nos art.º 16.º e 17.º da Lei do Cibercrime (aprovada pela Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro) e no art.º 179.º do CPP, respeitando a proteção dos dados referentes à intimidade e àqueles sujeitos a sigilo. Fizeram-se novas buscas nas instalações da PJ em setembro de 2019, para recolha de elementos adicionais e, em dezembro de 2019, para apreensão do telemóvel de suspeito. Com efeito, as diligências investigatórias conduziram à identificação dum suspeito da autoria da fuga de informação. Este suspeito, coordenador de investigação criminal da PJ, foi constituído arguido e interrogado no dia 5 de dezembro de 2019. Depois, a fim de esclarecer as razões para o agente a fornecer informação sujeita a segredo de justiça, foi, a partir de janeiro de 2020, determinada a solicitação de documentação bancária referente ao arguido e, por despacho de 26 de fevereiro de 2020, quebrado o sigilo fiscal. E, após análise dos documentos recebidos, determinou-se, no início de setembro de 2020,  a quebra de sigilo bancário relativamente a um dos jornalistas identificados nos autos, que foi interrogado como arguido a 30 de novembro de 2020. Mais tarde, a 8 de janeiro de 2021 foi constituído arguido e interrogado um outro jornalista.

Esclarece ainda o DIAP que “a magistrada titular deste inquérito em que se investigam crimes de violação de segredo de justiça, violação de segredo por funcionário e falsidade de testemunho fez consignar nos autos que tomou contacto com o designado processo E-toupeira” e precisou que “tal contacto se circunscreveu a despacho proferido em momento prematuro da investigação e na participação em diligência de busca”. Assim, conclui:

Não tendo aquela intervenção conferido qualquer conhecimento sobre os factos suscetível de constituir objeto de prova da verificação do crime investigado nem de quem foi o seu autor, considera-se que nenhum impedimento se verifica, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 39.º e ss do CPP, suscetível de obstar à tramitação dos presentes autos pela magistrada”.

E reforça dizendo que, “no decurso da investigação, todas as diligências foram devidamente ponderadas e efetuadas com respeito pela legalidade e objetividade que devem nortear a atuação do Ministério Público” e, “quando suscitaram maior melindre, as diligências realizadas foram previamente comunicadas e, inclusivamente, acompanhadas pela hierarquia”.

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O esclarecimento, respigado do site do MP, mostra que os magistrados sabem muito bem e abundantemente invocar os diversos normativos para justificarem as suas tomadas de posição. Contudo, não parece que, na floresta da legislação que, à partida, pode justificar todas a suas opções, tenham como pano de fundo os preceitos constitucionais, que nenhuma lei pode deixar de observar, atentos os princípios da necessidade, universalidade e da proporcionalidade. E, como bem observa João Miguel Tavares (vd Público deste dia 16 de janeiro), a Constituição dedica à liberdade de expressão e informação o art.º 37.º e à liberdade de imprensa o art.º 38.º, quando ao segredo de justiça apenas lhe dedica um número do art.º 20.º.

Entre outros aspetos o art.º 37.º assegura que “o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura(n.º 2) e que “a todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos(n.º 4). Por seu turno, o art.º 38.º estabelece que “a liberdade de imprensa implica”, entre outros aspetos, “o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à proteção da independência e do sigilo profissionais, bem como o direito de elegerem conselhos de redação(alínea b do n.º 2).

Trata-se, com efeito, de direitos, liberdades e garantias.

Quanto ao segredo de justiça, a única referência constitucional é o n.º 3 do art.º 20.º, que estabelece: “A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça”.

Ora, como o processo penal é de sua natureza público, o segredo de justiça deve ser criado e mantido pelo tempo estritamente necessário. Por outro lado, será prioritário investigar e eventualmente punir os responsáveis pelas fugas de informação e não quem ande à procura do material para satisfazer o direito de informar e ser informado.

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A já mencionada presidente do Sindicato dos Jornalistas, aduzindo que o caso constitui “um evidente abuso de poder por parte das autoridades”, disse que o sindicato pediu, no dia 13, esclarecimentos urgentes à Procuradora-Geral da República e o cabal apuramento de responsabilidades, por considerar a vigilância de jornalistas clara violação do sigilo profissional e da proteção das fontes de informação, valores protegidos pela Constituição.

A dirigente sindical, sublinhando que no sindicato não há memória de caso semelhante, diz que este abre “um precedente muito grave” e espera que seja um caso isolado, mas quer saber se existem outros. Com efeito, segundo a sindicalista, “o jornalismo não existe sem fontes e que um caso destes faz com que as fontes percam a confiança nos jornalistas e que estes fiquem constrangidos quando fazem o seu trabalho”. 

Por sua vez, a FEJ (Federação Europeia de Jornalistas), lamentando o efeito “potencialmente desencorajador” da investigação às fontes dos jornalistas, notificou Portugal junto do Conselho da Europa (CE) pela “clara violação do seu sigilo profissional e da proteção das fontes de informação”, sendo esta aprimeira vez que Portugal é alvo de um ‘alerta’ na plataforma criada em 2015 para denunciar violações da liberdade de imprensa e proteger o jornalismo”.

A FEJ recorda “que Portugal assinou a recomendação do Conselho da Europa sobre o direito dos jornalistas a não divulgarem as suas fontes de informação, adotada em 2000 – e que está igualmente protegido na Constituição da República Portuguesa”.

A recomendação, que estabelece que a proteção das fontes de informação dos jornalistas constitui condição fundamental para o trabalho jornalístico e para a liberdade de imprensa, pede aos governos dos Estados-membros do CE que “tragam os princípios nela explanados ao conhecimento das autoridades públicas, das autoridades policiais e do sistema judiciário”.

Por isso, Lucília Gago, Procuradora-Geral da República, anunciou, no dia 14, que vai averiguar se a atuação de magistradas do DIAP de Lisboa é passível de infração disciplinar no caso em que jornalistas foram vigiados pela PSP.

Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República e recandidato, considerou, no dia 15, importante que a PGR e o Parlamento queiram apurar a vigilância policial a dois jornalistas que investigavam o caso E-toupeira. E sugeriu que fosse ouvida a anterior Procuradora-Geral.

Dizendo não comentar processos criminais em curso, em todo o caso, como viu na comunicação social que há uma averiguação sobre o que se passou, considera importante essa iniciativa de averiguação, porque “é uma questão já antiga e não podemos deixar que o tempo corra e se esqueça”. E apontou:

É evidente que tudo o que diga respeito ao Estado de direito democrático e aos princípios e aos valores do Estado de direito democrático só pode preocupar o Presidente, que faz cumprir a Constituição, onde estão os direitos”.

Não obstante, os juristas não têm opinião unânime sobre esta matéria.

Germano Marques da Silva, penalista citado em acórdãos dos tribunais superio­res, admite estar “chocado” com a operação do MP. Confessando ter “muitas dúvidas sobre a legalidade desse ato” admite que “um crime tem sempre de ser investigado, e se o suspeito é de um órgão policial, a exigência nessa investigação ainda é maior”. E sustenta que, “em democracia, a justiça, por vezes, sacrifica a verdade” e, sendo o Expresso, considera:

A descoberta da verdade não pode ter primazia, por exemplo, sobre a liberdade de imprensa. Neste caso concreto, entendo que há uma clara desproporção de meios entre o meio usado e o crime que se estava a investigar.

Para o constitucionalista Jónatas Machado, qualquer restrição dos direitos dos jornalistas e da proteção das suas fontes de informação tem de ser validada judicialmente e só deve acontecer “em casos muito excecionais e em crimes graves”, o que não se passou no caso, parecendo esta vigilância “um abuso de poder do Ministério Público e uma incompreensão por parte dos procuradores da importância e da função do jornalismo”. E o constitucio­nalista admite que os magistrados do DIAP de Lisboa tenham agido inconstitucionalmente neste caso, pois, como diz, “a Constituição consagra uma proteção à imprensa que, embora não seja absoluta, é muito exigente”, proteção em que se insere “a do sigilo das fontes de informação, o cerne da liberdade da comunicação social”.

Também Miguel Poiares Maduro, deputado europeu e ex-advogado-geral do Tribunal Europeu, considera que a “Constituição foi violada”, pois, neste “caso concreto” o direito constitucional de proteção das fontes “prevalece” sobre a vontade do MP. E, sustentando que “as vigilâncias são ilegais e a própria investigação é ilegal”, compara o caso à hipótese de o MP vigiar “um advogado para descobrir os crimes dos clientes dele”.

Jónatas Machado lembra que Portugal já foi condenado cerca de duas dezenas de vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violar a liberdade de expressão dos jornalistas.

Todavia, o juiz conselheiro Santos Cabral, que já foi diretor da PJ, defende que grave é haver informações em segredo de justiça e que tenham sido transmitidas pelas autoridades policiais a jornalistas, sendo isto o que “ofende o Estado de direito”.

Para este magistrado, a vigilância feita pela PSP a pedido do DIAP de Lisboa não é um meio de prova que colida com os direitos fundamentais. Assim, segundo o magistrado, “a vigilância a jornalistas pode chocar porque é inédita”. Porém, como “os polícias não entraram em casa das pessoas”, só “fizeram a vigilância na via pública”, Santos Cabral conclui que os jornalistas têm o direito à privacidade das suas fontes, o que não significa que o MP não vá indagar sobre como obtiveram determinada informação em segredo de justiça sem violar a sua privacidade.

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Do meu ponto de vista, o caso constitui precedente grave. Já criticávamos a pressão de membros do Governo sobre jornalistas ou a restrição que o Parlamento lhes quis fazer. Ora, se o poder judiciário, que deve urgir e garantir a legalidade e o cumprimento da Constituição no atinente a direitos, liberdades e garantias, não se coíbe de a violar ou de agir deixando pairar a dúvida sobre a eventual transgressão constitucional, é de questionar sobre quem nos valerá.

2021.01.16 – Louro de Carvalho

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