Não dou novidade a ninguém
se disser que Marcelo Rebelo de Sousa ganhou as eleições por larga margem
percentual sobre os votos validamente expressos, aliás como era de prever, dada
a experiência anterior de que o recandidato ganha, bem como o facto de a
pandemia condicionar fortemente a governação saindo o Presidente um pouco por
cima do devir da crise e, ainda, pelo facto de se ter feito valer, nalguns ambientes,
a ideia de que havia vencedor antecipado, pouco valendo a concorrência ao ato
eleitoral.
Não obstante, quiseram
emparceirar com Marcelo, mais seis candidatos: cinco (Marisa Matias, João Ferreira, Tiago Mayan, André
Ventura e Vitorino Silva), para dar voz eleitoral e ideológica aos partidos
de onde provêm, sendo que dois, André e Vitorino são líderes partidários; e
uma, Ana Gomes, para colmatar a alegada falta de comparência formal do seu
partido a este ato eleitoral.
Na verdade, a direção do
Partido Socialista, depois de o secretário-geral e outras figuras de proa terem
manifestado apoio informal a Marcelo (Costa na
AutoEuropa dera-o por vencedor) e a socialista ex-eurodeputada se ter declarado
candidata, declarou muito positivo o exercício do primeiro mandato do
Presidente da República, deu as boas-vindas à candidata do partido e deixou a
cada militante a liberdade de voto, não sem recomendar aos membros do Governo
contenção na manifestação de apoio a este/a ou àquele/a candidato/a.
Entretanto, o líder do Chega quis testar o índice da capacidade eleitoral do
seu partido. E conseguiu fazer-se estrela.
Como disse Rio na noite
eleitoral e Ventura repetiu, em todo o Alentejo o candidato do Chega bateu em
todos os concelhos o candidato do PCP (esquecem que Setúbal
e Santarém têm concelhos que integram o Alentejo). Na verdade, André Ventura,
deputado da
extrema-direita e líder do Chega, foi o 3.º mais votado, com 11,9%. Arrecadou
quase meio milhão de votos (496.653) e foi o 2.º nos distritos
de Beja, Bragança,
Castelo Branco, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Portalegre, Santarém, Vila Real,
Viseu; na Madeira e Suíça (aqui gente afogada em trabalho, sem
perspetiva de regresso a Portugal),
sem falar noutros consulados. E Marcelo, reeleito, e Ana Gomes, reconhecendo
que não conseguiu o objetivo de levar o eleitorado a uma segunda volta, mas
conseguindo o de preencher o vazio da não comparência do PS, sentiram o alerta
do Chega a crescer e a implantar o discurso da xenofobia, racismo, intolerância
e ódio espelhados nesta corrida eleitoral.
***
Foi, neste aspeto,
premonitório o ato de 140 cristãos de várias denominações (católica, metodista, evangélica, anglicana,
menonita e presbiteriana) unidos, no passado dia 22 de janeiro, por valores-base
para estas eleições presidenciais presentes no Manifesto que subscreveram e que foi publicado pelo jornal
eletrónico “7margens”.
Chamados como discípulos a
seguir a Pessoa de Cristo, entendem que a aplicação dos ideais não se cinge à zona
do templo nem à zona da oração pessoal, mas se estende a todos os setores da
vida e, obviamente, tem de estar presente “na vida cívica e em sociedade”.
E, frisando que a campanha eleitoral decorreu em tempo
de “profunda clivagem, tribalização e fulanização dos discursos mediáticos”, sentem
que é mister dos cristãos a retoma da pergunta feita a Jesus como critério
determinante da decisão de votar: “Quem é o meu próximo?” (Lc 10,25-37). Com efeito, ante a provocação dos doutores da Lei,
Jesus evoca o exemplo do estrangeiro que age “na hospitalidade e no cuidado”,
guindando altos representantes do sacerdócio do seu povo ao tipo de pessoas que
atuam contra a palavra de Deus. Por isso, os subscritores do Manifesto assumem que o Evangelho se
concretiza na relação, mormente com “aqueles que mais estão afastados de nós,
dos que estão a ser oprimidos ou dos que sofrem”, pelo que “qualquer voz que nos coloque contra estes
irmãos não é a voz de Deus”.
Assim, estes cristãos e cristãs, face a “propostas
políticas que abertamente procuram dividir, de forma maniqueísta, a sociedade
entre ‘bons’ e ‘maus’, ‘puros’ e “impuros’ – negando o direito de asilo aos
refugiados e segregando etnias; impedindo um processo de reintegração dos
presos e sonegando a assistência aos mais pobres dos pobres –”, sentem-se
interpelados/as pela atual agudeza da pergunta do Evangelho, que reformulam: “Diante
destas injustiças de quem é que me faço próximo?”.
Não se socorrem da lógica desculpabilizante de Caim
face à morte de Abel, de que não era responsável pela morte do irmão, para se
escusarem a responder àquela interrogação, mas propõem a ultrapassagem do “raciocínio
predatório e revanchista face ao próximo”, tornado cultura dominante nas redes
sociais, para dar lugar à cultura “de cuidado e de proximidade”, porque, face às
injustiças de cada tempo somos responsáveis pelos nossos irmãos.
Os referidos cristãos sentem, pois, “a necessidade de
exprimir uma forte oposição a qualquer projeto político assente em princípios
xenófobos, racistas, homofóbicos, autoritários e de ataque aos pobres”, na
certeza de que tais projetos “são gravemente
contrários à mensagem de Cristo”. Por outro lado, censuram como “particularmente
grave” a descarada instrumentalização da fé “ao serviço de projetos políticos
claramente contrários ao Evangelho, a reboque de discursos providencialistas”. E,
como crentes e cidadãos preconizam “uma atitude cristã em relação à
política”, assumindo o irrenunciável conjunto
de princípios seguinte:
- O respeito por todos e todas,
independentemente de género, credo, cor de pele, etnia ou orientação
sexual, repudiando qualquer discurso de ódio;
- A promoção do pluralismo e
da diversidade como componentes
indispensáveis da nossa convivência humana;
- A luta pela erradicação
da pobreza e das desigualdades mediante uma opção preferencial
pelos pobres e por modelos de desenvolvimento sustentáveis e ecológicos; e
- O compromisso na
construção do bem comum, na defesa intransigente da justiça, da
liberdade, da fraternidade, da tolerância, da solidariedade e da paz.
Por isso, mercê do compromisso batismal frisaram
conjuntamente “uma recusa intransponível perante projeto e programas políticos”
em relação aos quais não podem, em consciência, votar. E, apesar de suas “divergências
políticas e divisões eclesiais, na presença de modelos populistas assentes na
retórica de ódio e segregação”, manifestaram a certeza irrevogável que os une: “não aceitamos renunciar à nossa
humanidade”. E fizeram-no publicamente, porque “ser sinal do Evangelho
no mundo contemporâneo não condescende com uma propaganda xenófoba e
autoritária para fins eleitoralistas”, mas implica “ter a capacidade de ser
fermento na história dos homens e das mulheres nossos concidadãos: anunciando,
aqui e agora, a possibilidade de um mundo novo transformado, onde todos tenham
lugar, e a esperança de uma humanidade renovada, ressuscitada”.
E, referindo que, no oitavário de oração pela unidade
dos cristãos, o exemplo das comunidades ecuménicas de Taizé, Bose, Chemin Neuf
e Grandchamp servem de interpelação e desafio, bússola e compasso, na esperança
de urdir um mundo reconciliado na sua diversidade e na
certeza que é “possível construir o mundo justo” onde “o outro-diferente não
seja percebido como uma ameaça, mas como um dom”.
Também,
no seu artigo semanal de opinião publicado no JN deste dia 25 de janeiro, o Padre Fernando Calado Rodrigues,
considerando bom que os católicos “estejam conscientemente do lado da vida” e se mobilizem em torno
de questões como “o aborto e a eutanásia”, entende que “devem também
mobilizar-se e erguer a sua voz para defender ou condenar muitas outras opções
políticas e sociais”. E, na linha do que a Igreja Católica tem proposto, sobretudo pela voz e pena do Papa Francisco,
aponta: a opção preferencial pelos mais pobres; as questões ambientais; e os
sistemas políticos e económicos injustos, que não protegem os mais fracos, que
discriminam e que segregam.
Ora, se a
vida, enquanto direito inegociável, mobiliza os católicos contra o aborto e a
eutanásia, diz Calado Rodrigues que “os deveria mobilizar na luta contra a pena
de morte, que também é um atentado à vida” e para “a prisão perpétua, que acaba
por ser uma sentença de morte encapotada” e para uma “economia que mata”, como
Francisco tem denunciado.
A este
respeito, congratula-se por haver cristãos, embora menos, que se unem para
denunciar “determinadas propostas políticas que são contrárias aos ensinamentos
de Jesus Cristo”. E menciona o caso de “cristãos de diferentes igrejas cristãs
que a história separou”, que se uniram, em Portugal, nas vésperas da eleição
presidencial, para exprimirem “uma forte oposição a qualquer projeto político
assente em princípios xenófobos, racistas, homofóbicos, autoritários e de
ataque aos pobres” e considerarem “particularmente grave a instrumentalização”
de algo tão precioso como a fé, colocando-a “ao serviço de projetos políticos
claramente contrários ao Evangelho, a reboque de discursos providencialistas”.
Embora no
tempo da sua escrita não conseguisse avaliar o sucesso da iniciativa, realçou “a
unidade entre os cristãos e a atenção que demonstram às questões que não
deverão deixar indiferente nenhum seguidor de Jesus Cristo”.
***
O alerta de
domingo passado, preocupante para os cristãos, não pode deixar de ser um recado
para os políticos democratas. Em vez de se enredarem nas malhas dos aparelhos
partidários, imporem ao eleitorado ideias e representantes a escolher e
transportarem a mediocridade para o Parlamento, para o Governo e para a
Justiça, deveriam ouvir o povo e tentar responder às suas justas aspirações, colmatar
as suas carências e ajuda-lo a resolver os seus problemas.
É óbvio que
a inclusão e a igualdade, bem como o respeito pelos grupos minoritários, são
pressupostos da democracia social. Porém, abandonar as populações, conceder “regalias”
a grupos minoritários à custa de sacrifício de quem trabalha ou trabalhou e empurrar
os problemas para a frente não deixam de ser topos antidemocráticos. Enfim, o
discurso xenófobo, racista, anti-imigração e antiminorias só é possível pela
força ideológica da pureza da raça ou da nação – o que é injusto e
anticientífico – e pela incapacidade, incompetência e falta de vontade política
da governança dita democrática na resolução dos problemas sociais. Por exemplo,
enquanto houver dinheiro para salvar a banca e não o houver para investimento
público, sistema de saúde, educação e proteção social…
O dia 21,
embora tenha dado a vitória eleitoral a um político que se reclama da direita
social – e não do centro como disse alguém – contentou os que se reclamam do
centro democrático social, da socialdemocracia e do socialismo democrático,
obnubilou a esquerda mais radical, evidenciou a direita liberal e fez da
direita antidemocrática e demolidora a estrela. E não venha Carlos César,
presidente do PS, dizer que é, por enquanto apenas uma ameaça ao PSD, que
recebeu de André Ventura o recado de que não haveria, de futuro, governo sem o
Chega. Trata-se de fenómeno transversal a todo o país que arrebata os descontentes
e, sobretudo os jovens que não se reveem neste jogo partidário ou temem pelo
futuro.
É certo
que Ana Gomes, que ficou em segundo lugar, mas muito aquém do vencedor, cumpriu,
segundo diz, o objetivo central de “representar o campo dos democratas e
progressistas europeístas e impedir que a ultradireita ascendesse a uma posição
de possível alternativa”. Todavia, salientou que a abstenção não pode ser
apenas atribuída à pandemia, pois “houve quem quisesse desvalorizar estas
eleições presidenciais e não tivesse cuidado sequer de assegurar que eram
facultados meios alternativos de voto a quem está retido em casa obrigado a
confinar e à maioria de milhão e meio na diáspora que indignamente se viram
assim impedidos de votar”. E deixou um desafio ao seu partido no sentido de os
militantes ajudarem a direção do PS a refletir profundamente e a retirar
consequências da sua atuação de ausência nesta eleição.
Mas isto
não basta. É preciso que as instituições funcionem regular e solidariamente, se
resolvam os problemas das pessoas e das empresas, se previna e combata a
corrupção e o crime organizado, se façam leis justas e eficazes, se arrede o
compadrio e o parasitismo, a justiça funcione, os jovens tenham futuro (Tantos
e tantas votaram em André Ventura!),
acabem os guetos, se abatam as desigualdades e o distanciamento social, se
elimine a pobreza e os cidadãos se sintam acolhidos, protegidos, livres e
seguros.
Quem é o
meu próximo? De quem tenho de ser próximo? Bom recado do dia eleitoral!
2021.01.25 – Louro
de Carvalho
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