terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Seria conveniente um adiamento das eleições presidenciais?

 

A reunião no Infarmed deste dia 12 de janeiro tinha em vista aferir, perante os partidos e, excecionalmente, perante os candidatos às eleições presidenciais, o estado da evolução da pandemia, de modo que os decisores políticos pudessem colher critérios à luz dos quais viessem a decretar as medidas necessárias e proporcionais em ambiente de estado de emergência e eventual confinamento semelhante ao da primavera transata.  

Ora, naturalmente alguns dos candidatos a Presidente da República, depois da predita reunião em que os virologistas se pronunciaram, reagiram em conformidade.

Assim, Ana Gomes, depois da reunião com especialistas, “refletiu” sobre o que ouviu e, num vídeo publicado no Twitter, defendeu a necessidade de se tirarem “consequências políticas”, que devem começar, no seu entender, desde logo, pelo adiamento das eleições. Não é o que deseja, mas garante que, se o Presidente da República (PR) e a Assembleia da República (AR) assim o entenderem, não se oporá a essa decisão. Mais pede a Marcelo e à Assembleia que ponderem o adiamento das eleições. Na verdade, no tweet que foi inicialmente apagado da sua página, mas voltou a ser publicado minutos depois, escreveu:

O Presidente da República deve tirar consequências do que ouviu dos especialistas. Cabe ao PR e à AR tirar consequências políticas desta situação. Imagino que devam ponderar a possibilidade de adiamento do ato eleitoral. Não desejo, mas não me oporei. Preocupa-me valorizar o ato eleitoral garantindo que todos os que querem ir votar possam ir votar.”.

No mesmo vídeo, a socialista ex-eurodeputada, que não teve ainda ações de campanha neste dia, diz que saiu “preocupada” da reunião com os especialistas, uma vez que tudo aponta para uma provável “triplicação do número de novos casos até ao fim de janeiro”. Daqui decorre como consequência, o confinamento geral e sequelas para a campanha eleitoral e para o próprio dia da votação. Por isso, o PR “deve tirar consequências do que ouviu dos especialistas”, reiterou.

Também Marisa Matias, que testou negativo à covid-19, apesar das circunstâncias, e teve das autoridades de saúde “indicações para continuar a vida normal”, pelo que assistiu à reunião do Infarmed, vê com “preocupação” o crescimento dos números da pandemia de covid-19. Porém, não se pronunciou sobre as eleições, antes afirmou que “o objetivo fundamental é o de proteger o SNS e mobilizar todos os meios que estão à nossa disposição, mas também garantir os rendimentos das famílias e que há meios de apoio às empresas”, como consta dum vídeo que gravou depois da reunião. Certa da decisão de mais um confinamento, a eurodeputada alerta que não chega confinar e que são necessárias “condições para responder” a essa decisão.

Por seu turno, Tiago Mayan Gonçalves salientou que a reunião “não foi de todo esclarecedora” e que o país ficou “entre a espada e a parede”. O candidato falou, nesta tarde, aos jornalistas junto ao Jardim da Praça do Império, próximo do Mosteiro dos Jerónimos, depois da reunião em que participou, como os restantes candidatos, por videoconferência. E, defendendo que se chegou a uma fase de “descontrolo total” e que o país pode enfrentar “um colapso”, vincou:

Chegámos a um ponto de descontrolo total desta pandemia. Há aqui uma responsabilidade a assacar ao Governo nessa matéria, mas hoje não é dia para assacarmos responsabilidades, é dia para percebermos o que poderá ser feito. A verdade é que chegámos a um ponto na saúde em que poderemos enfrentar um colapso.”.

Reiterando que o país ficou “entre a espada e a parede” pela incapacidade de controlar a evolução da pandemia, o que já havia dito na véspera, anotou que “termos chegado a este ponto é preocupante” e que o que desejava ter ouvido era “quais as medidas de confinamento concretas que o Governo se propõe a fazer”, o que “não foi ainda esclarecido”. Não obstante, o candidato, que ficou com a perceção de que “possivelmente as escolas se manterão abertas”, disse que “não está esclarecido que atividades se poderão manter abertas e que atividades irão ser confinadas”, como “não está de todo esclarecida a resposta que o Governo dará em relação a cumprir o contrato social que tem com restaurantes, cabeleireiros, ginásios, lojas… com todo o conjunto de pequenos e médios comerciantes e com os cidadãos relativamente aos quais o Governo ordenar o confinamento ou a restrição de atividades”. Espera tais respostas e que sejam obtidas o mais rapidamente possível, pois, como concluiu, “é absolutamente necessário que o Governo de uma vez por todas assuma a responsabilidade das suas decisões e defina, em termos concretos, qual vai ser a forma de compensação direta, imediata e sem burocracia destas atividades e pessoas que ficarem confinadas”.

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Sobre um eventual adiamento ou não das eleições presidenciais, Vital Moreira rejeitava, no blogue “Causa nossa”, a ideia lançada por Marcelo de que a Constituição impedia tal adiamento. E recentemente esclarece que uma revisão da Constituição em estado de emergência ou em estado de sítio é proibida constitucionalmente. Na verdade, o art.º 289.º estabelece:

Não pode ser praticado nenhum ato de revisão constitucional na vigência de estado de sítio ou de estado de emergência”.  

Todavia, esclarece que fazer a eleição presidencial num só dia não é imperativo da Constituição, mas da lei eleitoral, que permite o voto antecipado, em certos termos, bem como a votação em dois dias no estrangeiro. Assim, bastaria mexer na lei para a ajustar à medida das necessidades.

Por outro lado, o mesmo constitucionalista diz que “não é por haver mais do que um dia de votação que a previsível abstenção elevada vai diminuir”, pois ela vai ficar a dever-se “a diversos factos que não têm a ver com a duração do período da votação, a saber (i) as eleições terem um vencedor antecipado, (ii) falta de empenhamento dos dois principais partidos nas eleições; (iii) não haver campanha presencial por causa da pandemia e (iv) o receio de contaminação pela COVID nas assembleias eleitorais”.

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Entretanto, Ricardo Sá Fernandes, em artigo publicado no “Observador”, sob o título “As eleições serão livres, mas não serão justas”, com base na circunstância de que, “a manter-se o atual quadro previsível de evolução da pandemia, não estão asseguradas as condições para a normalidade do processo eleitoral”, se não for adiada a eleição presidencial marcada para 24 de Janeiro, decorrerá sob a vigência do estado de emergência e decreto de confinamento geral, situação gravíssima que, a seu ver, é incompatível com os princípios da democracia.

Não se trata, para o jurista, de não considerar livres estas eleições, visto que as candidaturas foram apresentadas sem constrangimentos e de acordo com a lei” e as pessoas não serão “impedidas ou condicionadas na liberdade do exercício do seu direito de voto”. Contudo, para que as eleições sejam justas, tem de estar assegurado “o direito a uma efetiva campanha eleitoral em todo o território nacional e garantido que, no dia da eleição, as pessoas poderão exercer o seu direito ao sufrágio sem recear quaisquer limitações relevantes decorrentes da pandemia”. E, na verdade, em confinamento geral, com a impossibilidade ou grande limitação do exercício das atividades correntes duma campanha eleitoral, como o contacto direto dos candidatos com o eleitorado e a realização de ações públicas de campanha em todo o país, não estão preenchidos os requisitos para se poderem considerar justas as eleições. Com efeito, “é a campanha eleitoral que permite a exposição das alternativas e a ponderação da escolha pelos eleitores”, de modo que, sem “verdadeira campanha eleitoral, o exercício eleitoral não é plenamente democrático”.

Ademais, o incumbente está limitado por ter testado positivo à covid-19 e há o risco de outros candidatos também terem de ser submetidos a regras especiais de confinamento. O recurso à televisão e a outros meios de comunicação social, bem como às redes sociais é, na opinião do articulista, insuficiente “para que o processo eleitoral decorra com normalidade constitucional”.

Também, segundo Sá Fernandes, as restrições do confinamento, ainda que levantadas no dia das eleições, far-se-ão sentir na organização das mesas de voto, na presença dos delegados das candidaturas nas assembleias de voto e na deslocação dos eleitores, pelo receio de porem em causa a sua saúde, sobretudo os mais velhos e todos os outros que integram os grupos de risco.

Não está em causa avaliar a quem beneficia ou prejudica o adiamento, pois a questão não atinge o interesse particular dum candidato, mas o funcionamento regular do processo eleitoral. É por isso que em muitos países democráticos, em função da situação concreta, têm sido adiadas eleições por causa da pandemia provocada pela covid-19.

Aduz o articulista jurista que o argumento de que a Constituição impõe limites para a data das eleições é falacioso e ofensivo da consciência democrática do país. E, como diz, há muito, estão estudadas as situações de estado de necessidade constitucional, pelo que desafia a consulta, por exemplo, das Constituições Anotadas de Vital Moreira e de Gomes Canotilho ou de Jorge Miranda e Rui Medeiros. E, citando um estudo publicado em 1998, por Freitas do Amaral e Maria da Glória Garcia, refere:

O estado de necessidade é imposto globalmente pela ideia de direito, não é um estado de exceção ao direito, mas um estado em que a necessidade determina o afastamento de normas jurídicas formais e obriga à sujeição ao direito como um todo, como um bloco de princípios interligados, geradores de justiça e paz em sociedade; o restabelecimento da normalidade será assim o objetivo do exercício dos poderes públicos de exceção”.

Advertindo que a invocação do direito de necessidade constitucional tem de ser criteriosa e obedecer ao princípio de proporcionalidade, nada impede que seja considerado direito de necessidade, perante a excepcionalidade do evento, a urgência da adoção de medidas e a natureza imperiosa do interesse público que a elas preside, pois “já os romanos sabiam que necessitas legem non habet”.

Evoca o facto de, em 1976, se ter indignado por não se ter reaberto o processo eleitoral das primeiras eleições presidenciais quando o candidato Almirante Pinheiro de Azevedo sofreu um ataque cardíaco, três dias antes do dia das eleições, que o deixou à morte numa cama hospitalar. À época, o processo não foi reaberto, porque a Constituição e a lei previam tal reabertura em caso de morte, o que mais tarde veio a ser alterado, no sentido de abranger a incapacidade do candidato para o exercício da função presidencial. E, mesmo moribundo, o Almirante teve mais de 14% dos votos, o que dá a dimensão da anormalidade de se ter permitido o ato eleitoral com um dos principais candidatos a morrer no hospital. Prevaleceu a leitura formal da Constituição e da lei, quando a incapacidade (grave e notória) devia, para o efeito, ser equiparada à morte.

Diz o jurista que há várias alternativas e que dependem da AR, sem prejuízo do consenso que se estabeleça entre os órgãos de soberania. Pode ser a revisão constitucional, porque a AR pode assumir em qualquer momento poderes constituintes por maioria de 4/5 dos deputados em efetividade de funções e (digo eu) pode haver suspensão do estado de emergência (menos grave que o estado de sítio); alteração à lei do estado de emergência que contemple o adiamento das eleições; ou lei que regule esta situação urgente e excecional em nome do estado de necessidade. Concede que bons constitucionalistas encontrarão a fórmula adequada, mas que, tratando-se duma decisão política e não é para ser tomada por juristas, mas por aqueles que na AR são titulares do mandato popular.

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Enfim, por mais emendas que a lei eleitoral traga em benefício do processo e do ato eleitoral, em meu entender, sem o adiamento da eleição, pelo menos até ao limite da interpretação formal do texto constitucional, fica sempre a pairar a ideia do condicionamento da eleição, do medo do vírus, do desrespeito pelos eleitores por uma campanha eleitoral insuficiente e da eleição com vencedor antecipado. Mais: o voto antecipado, o voto nos lares de idosos, uma eventual votação em dois dias ou uma duplicação das secções de voto, dado o pouco tempo de esclarecimento destes mecanismos, trazem mais confusão que proveito.  

O professor Vital Moreira diz inviável, de momento, “a ideia de adiamento das eleições, mesmo que tal fosse defensável politicamente, como alguns propõem” (“a meu ver, erradamente” – diz ele), pois “nem a Constituição nem a lei eleitoral preveem a remarcação das eleições” e, “de acordo com a Constituição, o novo PR tem de estar eleito até ao termo do mandato em curso (9 de março), havendo que descontar três semanas para uma eventual segunda volta (por menos verosímil que seja tal hipótese), pelo que a primeira votação teria de ocorrer até 14 de fevereiro.

Em suma, há, no atual ordenamento constitucional, a possibilidade dum adiamento que, embora limitado no tempo, pode responder à justeza do que se pretende com o processo eleitoral, mesmo que não se atinja o adiamento de 3 ou 4 meses que propõe Sá Fernandes, plausível evocando o direito de necessidade. Veja-se que, no caso de morte ou incapacidade definitiva dum candidato, os prazos constitucionais (que não devem ser entendidos em absoluto) podem ser largamente ultrapassados, pois todo o processo volta ao início e o mandato do incumbente será prolongado pelo tempo necessário. 

2021.01.12 – Louro de Carvalho

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