A 30 de
dezembro de 2020, a SIC, o Expresso e a RTP noticiaram que, em
carta enviada para a UE (União Europeia), o executivo apresentou dados
falsos sobre José Guerra, identificando-o seis vezes como procurador-geral-adjunto,
a categoria mais alta no MP (Ministério Público), mas que o magistrado não tem,
sendo apenas procurador, e como tendo tido uma participação “de liderança investigatória e acusatória”
no processo UGT,
o que não é verdade. É verdade que detém grande experiência internacional, sobretudo como membro da Eurojust, mas não dirigiu o
maior departamento nacional de combate ao crime económico-financeiro, que é o
DCIAP, onde nunca trabalhou, quando afinal dirigiu a 9.ª Secção do DIAP de Lisboa.
Questionado,
o procurador referiu que tais dados não constam do currículo que ele próprio
escreveu e que não sabia da aludida carta. Por seu turno, a Ministra da Justiça
escusou-se a confirmar ou a desmentir, aduzindo que se tratava de matéria reservada.
Não obstante, veio a assumir, posteriormente, que o documento curricular ia com
toda a informação correta e a aludida carta levava as ditas informações erradas
por lapso. Na verdade, o procurador Guerra não conduziu a investigação do processo
da UGT, mas representou o Estado em tribunal formulando a acusação e
acompanhando o julgamento. Mais foi referido que liderou o processo da JAE, o
que terá levado os serviços a confusão, o que parece também não ser verdade.
Obviamente
que todos estes dados explorados pela comunicação social – e muito bem – se
acrescentam à famigerada polémica gerada em torno do processo de escolha do procurador
português para integrar o Conselho de Procuradores da União Europeia.
Entre os três candidatos portugueses ao lugar de Procurador
Europeu, Ana Mendes de Almeida, que investigava
casos que envolvem personalidades ligadas ao partido que sustenta o atual
Governo, ficou em primeiro lugar na escolha do Comité de Seleção Internacional, que
avaliou os currículos e as entrevistas dos pretendentes ao cargo. A magistrada,
no entanto, acabaria por não ser a eleita. O cargo foi ocupado por José Guerra –
o segundo classificado – graças à intervenção direta do Governo,
que preferiu seguir a escolha feita pelo CSMP (Conselho Superior do Ministério
Público) português,
à semelhança do que fizeram mais dois países (Bélgica e Bulgária). A preterida, pelos
vistos, já apresentou queixa à Provedoria de Justiça Europeia.
Entretanto, depois de o Ministério da Justiça ter assumido as preditas informações
erradas como “lapsos”, a Ministra Francisca Van Dunem disse,
em entrevista à RTP, no dia 2 de janeiro à noite,
ter condições para continuar no Governo depois da polémica, considerando que
foi feito um “empolamento profundamente injusto” de uma situação “rigorosamente
transparente”. Mais disse que “não conhecia até agora” a carta enviada pelos
serviços do Ministério da Justiça à REPER
(Representação Permanente
de Portugal na União Europeia), insistindo em denominar a dita carta como uma “nota de trabalho” e não como
uma carta. E, não apresentando o seu pedido de demissão, disse que o seu lugar está
sempre à disposição o do Primeiro-Ministro.
É natural
que as oposições se tenham colocado em bicos de pés perante o conhecimento
público de tais atropelos à verdade, seja por mentira, seja por lapso e que a
candidata preterida se sinta ultrapassada por motivo não académico nem de
carreira e tenha reagido. Com efeito, o Estado não deve mentir; e foi preterida
a magistrada que o júri internacional classificou em 1.º lugar. No entanto, é
de questionar como, tendo a decisão do referido júri sido ultrapassada há tanto
tempo, a “nota de trabalho” ter sido enviada ainda em 2019 (29 de novembro) e José Guerra ter sido nomeado
formalmente a 27 de julgo de 2020, só agora saiu tal informação da caixa de pandora.
E, tendo a questão sido colocada no primeiro debate para as eleições
presidenciais entre o Chefe de Estado e recandidato ao cargo, Marcelo
Rebelo de Sousa, e a candidata Marisa Matias e tendo um e outro respondido que
não tiveram ocasião de ouvir a entrevista da Ministra da Justiça por estarem
nos bastidores para o debate, que precisavam de mais informação sobre o caso,
mas que isto significava, pelo menos “desleixo lamentável”, tendo repercussão europeia,
não se percebe como a comunicação social só atribui a resposta a Marcelo
eclipsando a outra candidata. Aliás, os dois candidatos tiveram um debate cortês,
apesar de o entrevistador haver tentado espicaçar as hostilidades, o que não os
arredou da linha de adversários.
Depois,
enquanto os partidos insistem em exigir explicações da parte do Governo e quererem
a Ministra a responder no Parlamento, o candidato presidencial apoiado pela
Iniciativa Liberal, confrontou, em debate televisivo na RTP 1, no dia 3, com o
seu silêncio sobre o caso, aduzindo que o Presidente não precisa de esperar por
explicações da Ministra para se pronunciar. Aliás, tê-lo-á feito de forma bem dura
no caso dos incêndios em 2017, no caso do SEF recentemente, embora se tivesse pronunciado
tardiamente, e no caso das vacinas da gripe e da covid-19.
Também
João Soares e Poiares Maduro se confrontaram sobre o tema na RTP 1, considerando
Soares tais informações lapsos de serviço sem importância, referindo até que
nem há a categoria de procurador-geral-adjunto e que tem toda a confiança na Ministra
da Justiça, não vendo motivo para a sua demissão. Ao invés, Poiares Maduro vê
no caso aspetos políticos graves e aspetos jurídicos relevantes onde há falhas
do Estado, apontando o desrespeito pelo papel do júri internacional,
confundindo as categorias na carreira da magistratura do MP e aduzindo factos
não verdadeiros. Mais esclareceu que a Ministra não precisa de autorização da
UE para publicar um documento da iniciativa do Governo; só precisa de tal autorização
quando se trata de documentos emitidos pela UE.
José Guerra, o procurador europeu
destacado para o Luxemburgo em representação de Portugal, confrontado sobre a
polémica referente a dados falsos introduzidos no seu currículo pelo Governo
português, com o objetivo de garantir a sua nomeação, disse à RTP que não põe o
cargo à disposição, pois só teve conhecimento dos factos pela comunicação
social.
Entretanto e como primeira
consequência desta polémica, o diretor-geral da Política de Justiça, Miguel
Romão, apresentou o seu pedido de demissão à Ministra Francisca Van Dunem,
aduzindo que, mesmo não tendo responsabilidades no caso, não tem condições para
continuar a dirigir aquele serviço. Porém, adianta que a tal informação foi
remetida à REFER mediante instruções conhecidas do gabinete da governante e na
sequência da comunicação de 28 de fevereiro de 2019 da escolha feita pelo CSMP
e analisada na Assembleia da República.
E, em comunicado, a governante
garantiu que o Ministério da Justiça está também a diligenciar no sentido de corrigir
a nota enviada à REPER, em 29 de novembro de 2019, com informação sobre o
Procurador José Guerra”.
***
Sobre a subestimação que Soares fez
sobre as categorias na carreira do MP, é de ter em conta que o art.º 13.º do
EMP (Estatuto do Ministério
Público) estabelece que “são magistrados do Ministério Público: a) o
Procurador-Geral da República; b) o Vice-Procurador-Geral da República; c) os
procuradores-gerais-adjuntos; d) os procuradores da República; e) os
magistrados do Ministério Público na qualidade de procuradores europeus
delegados; f) os magistrados do Ministério Público representante de Portugal na
EUROJUST e respetivos adjunto e assistente”. Logo, há uma categoria de procurador-geral-adjunto.
O anedótico da questão é a distonia
entre o que se passa neste processo de preterição e de falta de verdade com a índole
da Procuradoria Europeia cujo Conselho de Procuradores José Guerra integra. Com
efeito, em abril de 2017, 16 Estados-Membros, desejando cooperar mais
estreitamente para lutar melhor
contra a fraude em detrimento da UE, decidiram criar uma Procuradoria
Europeia recorrendo ao processo de “cooperação reforçada”. Posteriormente,
outros países da UE decidiram juntar-se ao esforço que visa proteger o
orçamento da UE contra a fraude, pelo que o número de Estados-Membros participantes aumentou para
22.
Uma vez
operacional e em funcionamento, a Procuradoria Europeia, órgão independente da
UE, terá poderes para investigar e exercer ação penal relativamente a crimes
que lesem o orçamento da UE, nomeadamente: a fraude (designadamente efetuando investigações transfronteiras relativas à fraude
que envolva fundos da UE em montante superior a €10 000); a corrupção;
o branqueamento de capitais; e a fraude transfronteiras ao IVA (casos que envolvam prejuízos superiores a
10 milhões de euros).
Compete-lhe,
pois, investigar, instaurar ações penais e deduzir
acusação e sustentá-la
na instrução e no julgamento contra os autores das infrações penais
lesivas dos interesses financeiros da União.
Na verdade,
os Estados-Membros perdem no mínimo 50 mil milhões de euros todos os anos em receitas de IVA
devido à fraude transnacional e cerca de 638 milhões de euros dos fundos estruturais da UE foram
indevidamente utilizados em 2015.
Até agora,
tais crimes apenas podiam ser investigados pelas autoridades nacionais. Sucede,
porém, que a sua jurisdição acaba nas fronteiras nacionais, o que limita os instrumentos ao dispor
dos procuradores nacionais para lutarem contra a grande criminalidade financeira.
Do mesmo
modo, os organismos da UE, como o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) ou a Unidade Europeia de Cooperação Judiciária (Eurojust), não podem abrir investigações ou ações penais nos
Estados-Membros. A Procuradoria Europeia contribuirá para corrigir
estas deficiências e reprimir as infrações lesivas dos
interesses financeiros da UE.
A
Procuradoria Europeia, hoje inaugurada formalmente, tem uma estrutura a dois níveis: a nível estratégico,
compreende um procurador-geral europeu, incumbido
da gestão e organização dos trabalhos da Procuradoria Europeia, e um colégio
de procuradores, responsável pela tomada de decisões sobre questões
estratégicas; e, a nível operacional, inclui: procuradores europeus delegados, responsáveis
pela condução de investigações e ações penais, e câmaras permanentes,
que monitorizarão e dirigirão as investigações e tomarão decisões operacionais.
Assim, os procuradores
supervisionarão as investigações e ações penais e constituirão o colégio da Procuradoria
Europeia, com a procuradora-geral, num período não renovável de 6 anos. Como
parte do regime transitório de nomeação para o primeiro mandato, os
procuradores europeus da Grécia, de Espanha, da Itália, de Chipre, da Lituânia,
dos Países Baixos, da Áustria e de Portugal, designados por sorteio, exercerão
um mandato de 3 anos, não renovável.
Enfim, o
processo de escolha portuguesa parece contradizer os fins, pairando no ar a
ideia de que o CSMP e o Ministério da Justiça fizeram disto um jogo de xadrez
brincando com os peões. É grave, não?! E os demais órgãos de soberania calaram
ou falaram tarde…
2021.01.05 –
Louro de Carvalho
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