segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Caso do procurador europeu a agitar o Ministério da Justiça

 

A 30 de dezembro de 2020, a SIC, o Expresso e a RTP noticiaram que, em carta enviada para a UE (União Europeia), o executivo apresentou dados falsos sobre José Guerra, identificando-o seis vezes como procurador-geral-adjunto, a categoria mais alta no MP (Ministério Público), mas que o magistrado não tem, sendo apenas procurador, e como tendo tido uma participação “de liderança investigatória e acusatória” no processo UGT, o que não é verdade. É verdade que detém grande experiência internacional, sobretudo como membro da Eurojust, mas não dirigiu o maior departamento nacional de combate ao crime económico-financeiro, que é o DCIAP, onde nunca trabalhou, quando afinal dirigiu a 9.ª Secção do DIAP de Lisboa.

Questionado, o procurador referiu que tais dados não constam do currículo que ele próprio escreveu e que não sabia da aludida carta. Por seu turno, a Ministra da Justiça escusou-se a confirmar ou a desmentir, aduzindo que se tratava de matéria reservada. Não obstante, veio a assumir, posteriormente, que o documento curricular ia com toda a informação correta e a aludida carta levava as ditas informações erradas por lapso. Na verdade, o procurador Guerra não conduziu a investigação do processo da UGT, mas representou o Estado em tribunal formulando a acusação e acompanhando o julgamento. Mais foi referido que liderou o processo da JAE, o que terá levado os serviços a confusão, o que parece também não ser verdade.

Obviamente que todos estes dados explorados pela comunicação social – e muito bem – se acrescentam à famigerada polémica gerada em torno do processo de escolha do procurador português para integrar o Conselho de Procuradores da União Europeia.

Entre os três candidatos portugueses ao lugar de Procurador Europeu, Ana Mendes de Almeida, que investigava casos que envolvem personalidades ligadas ao partido que sustenta o atual Governo, ficou em primeiro lugar na escolha do Comité de Seleção Internacional, que avaliou os currículos e as entrevistas dos pretendentes ao cargo. A magistrada, no entanto, acabaria por não ser a eleita. O cargo foi ocupado por José Guerra – o segundo classificado – graças à intervenção direta do Governo, que preferiu seguir a escolha feita pelo CSMP (Conselho Superior do Ministério Público) português, à semelhança do que fizeram mais dois países (Bélgica e Bulgária). A preterida, pelos vistos, já apresentou queixa à Provedoria de Justiça Europeia.

Entretanto, depois de o Ministério da Justiça ter assumido as preditas informações erradas como “lapsos”, a Ministra Francisca Van Dunem disse, em entrevista à RTP, no dia 2 de janeiro à noite, ter condições para continuar no Governo depois da polémica, considerando que foi feito um “empolamento profundamente injusto” de uma situação “rigorosamente transparente”. Mais disse que “não conhecia até agora” a carta enviada pelos serviços do Ministério da Justiça à REPER (Representação Permanente de Portugal na União Europeia), insistindo em denominar a dita carta como uma “nota de trabalho” e não como uma carta. E, não apresentando o seu pedido de demissão, disse que o seu lugar está sempre à disposição o do Primeiro-Ministro.

É natural que as oposições se tenham colocado em bicos de pés perante o conhecimento público de tais atropelos à verdade, seja por mentira, seja por lapso e que a candidata preterida se sinta ultrapassada por motivo não académico nem de carreira e tenha reagido. Com efeito, o Estado não deve mentir; e foi preterida a magistrada que o júri internacional classificou em 1.º lugar. No entanto, é de questionar como, tendo a decisão do referido júri sido ultrapassada há tanto tempo, a “nota de trabalho” ter sido enviada ainda em 2019 (29 de novembro) e José Guerra ter sido nomeado formalmente a 27 de julgo de 2020, só agora saiu tal informação da caixa de pandora. E, tendo a questão sido colocada no primeiro debate para as eleições presidenciais entre o Chefe de Estado e recandidato ao cargo, Marcelo Rebelo de Sousa, e a candidata Marisa Matias e tendo um e outro respondido que não tiveram ocasião de ouvir a entrevista da Ministra da Justiça por estarem nos bastidores para o debate, que precisavam de mais informação sobre o caso, mas que isto significava, pelo menos “desleixo lamentável”, tendo repercussão europeia, não se percebe como a comunicação social só atribui a resposta a Marcelo eclipsando a outra candidata. Aliás, os dois candidatos tiveram um debate cortês, apesar de o entrevistador haver tentado espicaçar as hostilidades, o que não os arredou da linha de adversários.

Depois, enquanto os partidos insistem em exigir explicações da parte do Governo e quererem a Ministra a responder no Parlamento, o candidato presidencial apoiado pela Iniciativa Liberal, confrontou, em debate televisivo na RTP 1, no dia 3, com o seu silêncio sobre o caso, aduzindo que o Presidente não precisa de esperar por explicações da Ministra para se pronunciar. Aliás, tê-lo-á feito de forma bem dura no caso dos incêndios em 2017, no caso do SEF recentemente, embora se tivesse pronunciado tardiamente, e no caso das vacinas da gripe e da covid-19.

Também João Soares e Poiares Maduro se confrontaram sobre o tema na RTP 1, considerando Soares tais informações lapsos de serviço sem importância, referindo até que nem há a categoria de procurador-geral-adjunto e que tem toda a confiança na Ministra da Justiça, não vendo motivo para a sua demissão. Ao invés, Poiares Maduro vê no caso aspetos políticos graves e aspetos jurídicos relevantes onde há falhas do Estado, apontando o desrespeito pelo papel do júri internacional, confundindo as categorias na carreira da magistratura do MP e aduzindo factos não verdadeiros. Mais esclareceu que a Ministra não precisa de autorização da UE para publicar um documento da iniciativa do Governo; só precisa de tal autorização quando se trata de documentos emitidos pela UE.

José Guerra, o procurador europeu destacado para o Luxemburgo em representação de Portugal, confrontado sobre a polémica referente a dados falsos introduzidos no seu currículo pelo Governo português, com o objetivo de garantir a sua nomeação, disse à RTP que não põe o cargo à disposição, pois só teve conhecimento dos factos pela comunicação social. 

Entretanto e como primeira consequência desta polémica, o diretor-geral da Política de Justiça, Miguel Romão, apresentou o seu pedido de demissão à Ministra Francisca Van Dunem, aduzindo que, mesmo não tendo responsabilidades no caso, não tem condições para continuar a dirigir aquele serviço. Porém, adianta que a tal informação foi remetida à REFER mediante instruções conhecidas do gabinete da governante e na sequência da comunicação de 28 de fevereiro de 2019 da escolha feita pelo CSMP e analisada na Assembleia da República.

E, em comunicado, a governante garantiu que o Ministério da Justiça está também a diligenciar no sentido de corrigir a nota enviada à REPER, em 29 de novembro de 2019, com informação sobre o Procurador José Guerra”.

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Sobre a subestimação que Soares fez sobre as categorias na carreira do MP, é de ter em conta que o art.º 13.º do EMP (Estatuto do Ministério Público) estabelece que “são magistrados do Ministério Público: a) o Procurador-Geral da República; b) o Vice-Procurador-Geral da República; c) os procuradores-gerais-adjuntos; d) os procuradores da República; e) os magistrados do Ministério Público na qualidade de procuradores europeus delegados; f) os magistrados do Ministério Público representante de Portugal na EUROJUST e respetivos adjunto e assistente”. Logo, há uma categoria de procurador-geral-adjunto.

O anedótico da questão é a distonia entre o que se passa neste processo de preterição e de falta de verdade com a índole da Procuradoria Europeia cujo Conselho de Procuradores José Guerra integra. Com efeito, em abril de 2017, 16 Estados-Membros, desejando cooperar mais estreitamente para lutar melhor contra a fraude em detrimento da UE, decidiram criar uma Procuradoria Europeia recorrendo ao processo de “cooperação reforçada”. Posteriormente, outros países da UE decidiram juntar-se ao esforço que visa proteger o orçamento da UE contra a fraude, pelo que o número de Estados-Membros participantes aumentou para 22.

Uma vez operacional e em funcionamento, a Procuradoria Europeia, órgão independente da UE, terá poderes para investigar e exercer ação penal relativamente a crimes que lesem o orçamento da UE, nomeadamente: a fraude (designadamente efetuando investigações transfronteiras relativas à fraude que envolva fundos da UE em montante superior a €10 000); a corrupção; o branqueamento de capitais; e a fraude transfronteiras ao IVA (casos que envolvam prejuízos superiores a 10 milhões de euros).

Compete-lhe, pois, investigar, instaurar ações penais e deduzir acusação e sustentá-la na instrução e no julgamento contra os autores das infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União.

Na verdade, os Estados-Membros perdem no mínimo 50 mil milhões de euros todos os anos em receitas de IVA devido à fraude transnacional e cerca de 638 milhões de euros dos fundos estruturais da UE foram indevidamente utilizados em 2015.

Até agora, tais crimes apenas podiam ser investigados pelas autoridades nacionais. Sucede, porém, que a sua jurisdição acaba nas fronteiras nacionais, o que limita os instrumentos ao dispor dos procuradores nacionais para lutarem contra a grande criminalidade financeira.

Do mesmo modo, os organismos da UE, como o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) ou a Unidade Europeia de Cooperação Judiciária (Eurojust), não podem abrir investigações ou ações penais nos Estados-Membros. A Procuradoria Europeia contribuirá para corrigir estas deficiências e reprimir as infrações lesivas dos interesses financeiros da UE.

A Procuradoria Europeia, hoje inaugurada formalmente, tem uma estrutura a dois níveis: a nível estratégico, compreende um procurador-geral europeu, incumbido da gestão e organização dos trabalhos da Procuradoria Europeia, e um colégio de procuradores, responsável pela tomada de decisões sobre questões estratégicas; e, a nível operacional, inclui: procuradores europeus delegados, responsáveis pela condução de investigações e ações penais, e câmaras permanentes, que monitorizarão e dirigirão as investigações e tomarão decisões operacionais.

Assim, os procuradores supervisionarão as investigações e ações penais e constituirão o colégio da Procuradoria Europeia, com a procuradora-geral, num período não renovável de 6 anos. Como parte do regime transitório de nomeação para o primeiro mandato, os procuradores europeus da Grécia, de Espanha, da Itália, de Chipre, da Lituânia, dos Países Baixos, da Áustria e de Portugal, designados por sorteio, exercerão um mandato de 3 anos, não renovável.

Enfim, o processo de escolha portuguesa parece contradizer os fins, pairando no ar a ideia de que o CSMP e o Ministério da Justiça fizeram disto um jogo de xadrez brincando com os peões. É grave, não?! E os demais órgãos de soberania calaram ou falaram tarde…

2021.01.05 – Louro de Carvalho

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