sábado, 30 de janeiro de 2021

Em memória dos irmãos cónegos José Cardoso e Mário Augusto

 

Este dia 30 de janeiro de 2021 faz-me evocar o 37.º aniversário do falecimento do Cónego José Cardoso de Almeida e o 35.º aniversário do falecimento do seu irmão Cónego Mário Augusto de Almeida. O primeiro fica na memória de quem o conheceu pela simpatia, atividade e frontalidade; o segundo, pela discrição, culto da vida espiritual e diplomacia eclesiástica.  

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Uma segunda-feira, 30 de janeiro de 1984, a meia tarde, regressado de Viseu para o Granjal para atividade oportunamente programada, recado com nota de urgência solicitava que eu entrasse em contacto telefónico com Vila da Ponte. E, do lado de lá, a informação fulminava com a mensagem da morte do Cónego José Cardoso de Almeida.

A nível diocesano, estavam feitas as diligências informativas e mobilizadoras para as exéquias solenes na Sé de Lamego no dia 31, cidade em cujo Seminário Maior fixara a sede das suas ações e o ponto donde irradiava para todos os lugares da diocese e do país. Aí ocorrera o óbito inesperado. Era necessário programar as cerimónias em Vila da Ponte, terra onde vira a luz do dia e na qual havia de ter sepultura, conforme efetivamente aconteceu.

Não sendo interessante emaranhar-me em pormenores, recordo um episódio passado entre mim e o prelado diocesano, o Arcebispo-bispo de Lamego Dom António de Castro Xavier Monteiro. Conversando sobre as exéquias na Sé e trâmites subsequentes, sugeri-lhe que presidisse também em Vila da Ponte, deferência que os paroquianos e aqueles que, naquele dia do inverno, não poderiam deslocar-se a Lamego certamente apreciariam. Objetou que presidiria na Sé, que não havia necessidade de binar e que na paróquia presidisse o pároco ou o arcipreste. Argumentei que, se o bispo pode conceder a autorização de binar a celebração eucarística a um padre ou reconhecer-lhe tal faculdade, quando motivos pastorais o postulam, a fortiori, o bispo poderá assumir para si essa mesma faculdade e que a sua presença seria reconfortante para as pessoas e para a consagração pública que o venerando defunto merecia da diocese e suas gentes. Sua excelência Reverendíssima, após segundos de alinhamento de reflexão, afirmou decididamente: “Pronto, meu amigo, eu vou à Vila da Ponte!”. Agradeci penhoradamente a disponibilidade e voltei aos preparativos.

A Catedral e imediações eram um lindo mosaico de fé celebrativa: enorme multidão de gente provinda de todas as partes da diocese rezava e cantava em sintonia com o presbitério ali conciliado e acolheu uma empolgante homilia do bispo diocesano, num ato de culto marcado pela unção religiosa, pela perfeição técnica e pelo ambiente contagiante.

O cortejo automóvel para Vila da Ponte, do concelho de Sernancelhe, mais do que o esperado préstito fúnebre, constituiu verdadeira jornada triunfal a desembocar na bonita, mas pequena, igreja paroquial – com a envolvente repleta de gente e automóveis. O Arcebispo presidiu à celebração eucarística com o canto de Vésperas e proferiu espontânea e entusiasmante homilia. Foi, pela simplicidade e espontaneidade, compartilhada entre o hierarca e seu povo, uma autêntica apoteose, de tal modo que, enquanto as pessoas desfilavam perante o féretro, cuja sepultura se adiara para a manhã do dia seguinte (1 de fevereiro), dadas as condições coevas do cemitério e do tempo atmosférico, o Arcebispo, ao abraçar o irmão, o Cónego Mário Augusto, lhe diz com toda a franqueza e sonoridade: “Senhor Cónego Mário, em Lamego, foi tudo muito bem, mas aqui foi muito mais bonito”! Na verdade, aquela romagem de saudade transmutou-se numa consagração pública, indelével da memória de quem nela participou, ao Homem de Fé, ao Líder duma linha pedagógica benéfica, ao Catequista dos Catequistas, ao amigo das crianças da diocese – das paróquias e das escolas – ao colaborador paroquial sempre disponível.

No rescaldo do sucedido, o semanário diocesano “Voz de Lamego”, publicava testemunhos de colegas e admiradores. Reconheço a limitação, mas, ao tempo não tive capacidade para escrever nada – facto de que penso ter-me redimido mais tarde em comentário ao seu último livro em cuja edição póstuma “codiligenciei”. Mas relembro um dos testemunhos me ficou e que transcrevo de forma livre: o Cónego José Cardoso andava a pensar no Monumento ao Catequista; pois, o Monumento ao Catequista está agora no cemitério de Vila da Ponte. Referia-se o Professor Duarte ao túmulo do Cónego José Cardoso!

Em 25 de outubro de 1992, o Município de Sernancelhe, o Seminário de Lamego, as Paróquias de Vila da Ponte e de Sernancelhe (em cuja igreja matriz ele fora batizado a 26 de outubro de 1914) e a família, na passagem do 50.º aniversário da sua ordenação sacerdotal, prestaram-lhe sentida homenagem, com números programáticos na Vila da Ponte e em Sernancelhe. Sobretudo as celebrações em Vila da Ponte ainda galvanizaram a diocese.

A 30 de janeiro de 2009, “Asas da Montanha”, o Padre Manuel Carlos Pereira Lopes, abade de Tarouca, fez eloquente referência ao 25.º aniversário de sua morte, de que respigo o seguinte:

Nunca vi ninguém com tanto, tanto jeito para falar a crianças como o Cónego Zé. Ele era um motivador, um impulsionador, uma pessoa convicta e agregadora. Tal como as crianças, os catequistas tinham-no em enorme consideração. E como ele sabia cativá-los para a bela tarefa da catequese! (…) era um apóstolo da família. O que ele fez pela família na diocese! Cursos, livros, contactos pessoais, slogans gravados que ainda hoje perduram. ‘Nada contra a família, tudo pela família’, lê-se ainda hoje num calhau em Santa Helena.”.

Na sua página do Facebook, no dia 29 de janeiro deste ano de 2021, o Cónego João António Pinheiro Teixeira faz a seguinte referência, que transcrevo com a devida vénia:

Foi num dia 30 de janeiro. Corria o ano de 1984. Estávamos na primeira aula do dia. Eis quando alguém avisa: «O senhor Cónego José Cardoso sente-se mal»! Todos nos alvoroçámos, compreensivelmente. Mas todos pensámos também tratar-se de uma indisposição momentânea e, portanto, passageira. Houve até um colega que ainda reinou com ele. Eis quando tudo se precipita e o desenlace acontece. Nunca mais posso esquecer o quão célere correu a notícia e o quão célere também foi a mobilização de pessoas e, particularmente, de crianças. A Sé lotou-se por completo. São homens e sacerdotes de uma estirpe que fez escola e faz falta. Que saudades, senhor Cónego, de pessoas assim!”.

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O Cónego José Cardoso nasceu na Vila da Ponte em 8 de agosto de 1914 e faleceu em Lamego no dia 30 de Janeiro de 1984. Foi ordenado a 26 de Julho de 1942, na Igreja Paroquial de Vila da Ponte, por Dom Agostinho de Jesus e Sousa. Mais tarde, foi nomeado cónego honorário da Sé Catedral de Lamego, passando, anos depois, a integrar o cabido.

Sacerdote zeloso, de grande prestígio na diocese de Lamego e no país, desenvolveu notável ação nos campos da pregação e na pedagogia catequística, pautada pelos critérios da humildade colaborante em todos os setores da atividade pastoral e da crítica atempada, clara e vigorosa.

Cedo se começou a olhar para ele como o amigo das crianças, o padre que “ensinava a ensinar” ou que “ensinava a aprender”, conforme o auditório que tinha pela frente. Aparecia nas catequeses, como visitador e animador; encabeçava a orientação de cursos ou ajudava a constituir equipa formadora; organizou, a nível concelhio e diocesano, concentrações, certames catequísticos e congressos eucarísticos, planos e jornadas de pastoral familiar. Criava empatia e inspirava boa disposição. Decoravam-se inteiras expressões suas, que revelavam saber e bonomia, ciência e simpatia. Entre estas, recordo a seguinte, sobre a qual tive ocasião de produzir comentário mais aprofundado com base na saudação angélica a Maria: “O ‘Dominus vobiscum’. Que palavra tão linda e tão doce! Levai-a para vossa casa.”.

O pároco de Vila da Rua – qualidade em que iniciou suas funções pastorais – pelo seu labor catequístico de inovação, foi chamado a dirigir o Secretariado Diocesano da Catequese, então criado, e a visitar as catequeses paroquiais. O homem prático, graças à intuição, ao estudo e ao contacto com outras realidades, transformou-se no teórico. No entanto, não olvidou o tempo de pároco e recusou qualquer utopia ou teoria que não pudesse demonstrar e não tentasse levar à prática. À volta da catequese, nos diversos níveis, arregimentou uma plêiade de agentes a quem incutiu fulgor e gana evangélico-apostólicos, britando o monolitismo da cartilha, criando esquemas, elaborando manuais e construindo meios de sensibilização e formação, como cursos de catequistas, certames catequísticos e congressos eucarísticos diocesano e concelhios.

Convencido de que se multiplicavam os agentes minadores da família, propôs a criação do Secretariado Diocesano da Pastoral Familiar, de que foi o primeiro diretor. Mobilizou agentes, suscitou contributos, provocou formação. Colocou ao serviço da pastoral familiar a “Revista Catequística”, que dirigiu durante anos sem conta. Foi o primeiro assistente espiritual diocesano dos CPM (Cursos de Preparação para o Matrimónio) e o impulsionador das equipas de casais.

Não se entregando exclusivamente a iniciativas ou a obras de que fosse o iniciador, servia. E servir era a ideia mais importante. Sendo assim, foi também secretário da Obra das Vocações e Seminários e assumiu interinamente a direção do Secretariado Diocesano da Educação Cristã da Juventude. Cedo se convenceu de que a formação de crianças, adolescentes e jovens não resulta sem a atenção necessária e adequada à formação dos pais. Foi assim que as palestras aos pais e as publicações que implicavam esta componente da sensibilização e da formação se tornaram cada vez mais frequentes.

Foi ainda, durante muitos anos, professor de Pedagogia Catequística no Seminário Maior de Lamego e de Moral na Escola do Magistério Primário da mesma cidade, desde o momento da criação da escola.

As suas muitas publicações, como as suas palestras, refletiam o seu caráter intelectualmente metódico, a exposição fácil e simpática de conteúdos, a afirmação convicta das ideias, o jeito de provocar a resposta e o diálogo.

Não será fácil hoje estruturar catequeses ou tomar atitudes pedagógicas sem ter em conta a doutrina e a pedagogia praticadas pelo cónego José Cardoso de Almeida, o qual se impõe como exemplo de labuta apostólica na atenção à realidade que urge reformar numa perspetiva de otimismo, mas na rendibilização de todos os talentos.

Postumamente, a família decidiu editar o último livro que saiu da pena do cónego José Cardoso, aquele em que ele pôs mais empenho. Prestou assim um bom serviço à diocese e às grandes causas. “Que o livro faça bem – lê-se no depoimento da família, em apêndice – a todos quantos o lerem e reverta para glória de Deus e prazer espiritual de todos por quem o Cónego Zé labutou com zelo pastoral e garra apostólica”.

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Sobre o falecimento do Cónego Mário Augusto de Almeida, um sacerdote discreto e humilde, já lá vão 35 anos, exatamente menos dois que sobre o falecimento do irmão.

Aqueles dias de inverno eram de frio, de muito frio. E, na manhã do primeiro dia de fevereiro de 1986, a igreja paroquial de Vila da Ponte estava apinhada de gente que ali acorrera de muitos lugares. Para que mais participantes pudessem caber no templo e se pudessem abrigar do ambiente do rigor invernal, haviam sido de lá retirados os bancos.

Era a celebração exequial em homenagem ao Cónego Mário Augusto de Almeida – que falecera a 30 de janeiro – presidida pelo prelado diocesano, o Arcebispo-bispo Dom António de Castro Xavier Monteiro e concelebrada por muitos sacerdotes.

O Cónego Mário falecera a 30 de janeiro após a celebração, na igreja de Vila da Ponte, da missa no 2.º aniversário da morte do irmão, o Cónego José Cardoso se Almeida, ocorrida exatamente no dia 30 de janeiro de 1984, não de 1983, como se lia algures.

Do Cónego José, mais conhecido e extravertido, falaram e escreveram muitos. Do Cónego Mário falou-se menos e escreveu-se pouco. No entanto, ele merece a referência que lhe devo em virtude da fraternidade específica que o sacerdócio induz e pela amizade com que se relacionou comigo, pelo menos a partir do momento em que assumi a paroquialidade da sua terra natal.

Os contemporâneos sabiam que era um sacerdote discreto, tímido, de muita oração, escrupuloso cumpridor dos deveres do estado sacerdotal. Servira como secretário pessoal do venerando Dom Agostinho de Jesus e Sousa, que foi Bispo de Lamego e depois Bispo do Porto e administrador apostólico de Lamego, de Dom João da Silva Campos Neves, Bispo de Lamego, e, durante algum tempo, do já mencionado Arcebispo-bispo Dom António de Castro Xavier Monteiro, Bispo de Lamego. Desse múnus saliento a prestação discreta e eficaz, inerente a um conselheiro que influencia, com rara sabedoria, tomadas de decisão relevantes e a um executor eficaz e estabelecedor de pontes. Recordo que a carta que me comunicava a admissão ao seminário de Resende vinha subscrita por “Padre Mário”.

Do relacionamento com Dom António Xavier Monteiro recordo a ansiedade com que acompanhou, embora à distância, melindrosa intervenção cirúrgica a que o prelado se sujeitara.

Por mim, devo dizer que guardo muitos dos despretensiosos conselhos de ordem pessoal e pastoral, de resultados que reputo benéficos para o povo e de agrado geral, bem como a contribuição económica para obras de apostolado e de restauro da igreja da sua terra.

Sei que o Cónego Mário, de ação menos vistosa que o irmão, era eficiente no trabalho de bastidores, um homem de boa relação social e de fino trato, um bom colaborador na paróquia.

Um determinado dia, já o irmão tinha falecido e também Monsenhor Augusto Campos Neves, que acompanhava assiduamente “os senhores cónegos” (como se dizia na Vila da Ponte), dizia-me, na presença de alguns familiares, que pretendia, quando morresse, ser sepultado na caminheira do cemitério. Como eu discordasse, explicou-me que o sacerdote tem de ser “ponte” e a função da “ponte” é deixar que as pessoas lhe passem por cima. Perante a minha teimosia em tentar demovê-lo desse propósito, argumentando com a vertente da dignidade sacerdotal e com a predileção de Cristo para com os sacerdotes, porfiou que então queria ser sepultado atrás da porta do cemitério, onde naturalmente seria menos notado.

Reparei que os familiares ainda tentaram – e bem – sepultá-lo na mesma tumba do Cónego José Cardoso. Porém, como o tempo de sepultura ainda não o aconselhava, ficou sepultado em campa própria atrás de uma das portas do cemitério paroquial.

Fica na memória o tempo que o sacerdote gastou, enquanto pôde (isto é, até que surgiu contraindicação médica), no confessionário testemunhando e oferecendo a misericórdia de Deus a quem se mostrava arrependido. E o templo e a casa, o altar e o confessionário, a rua e a tumba podem testemunhar o ser e ação do homem e sacerdote, discreto e eficiente, que apostou em pôr o outro na ribalta da ação e em mostrar o lugar eminente de Cristo na vida das pessoas e do povo.

2021.01.30 – Louro de Carvalho

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