domingo, 17 de janeiro de 2021

Chamamento ao discipulado com vista à profecia e ao apostolado

 

No início do designado por Tempo Comum no Ano Litúrgico, somos confrontados com o tema da vocação ou chamamento (em latim, “vocatio” e, em grego, “klêsis”).

Obviamente, falando em chamamento em termos espirituais e litúrgicos, não estamos a referir-nos ao chamamento a que assistimos ou que nos interpela diariamente, mas ao chamamento do Senhor, um chamamento de vida, não para ficarmos na mesma, no ensimesmamento, mas para sairmos de nós mesmos, da nossa zona de conforto e irmos ao encontro do Senhor em Si e nos irmãos. É um chamamento para fora de nós ou em saída (em latim, “evocatio” e, em grego, “ekklêsis”). Por outro lado, é a realidade com que se confrontam, não apenas os que Deus quer para o sacerdócio ou para a vida religiosa e/ou missionária, mas todo o ser humano e, em especial, os que detêm o nome de cristãos. E estes são chamados cada um pelo seu nome, mas também para integrarem a comunidade que se sente chamada para escutar o Senhor, celebrar os mistérios e partir em testemunho. É a Igreja reunida (em latim, “ecclesia”, “concilium” e, em grego, “ekklêsía”, “sýnodos”) e em saída (em latim, “exiens” e, em grego, “en éxodôi”).

Assim, todo o ser humano é chamado à vida, que postula a dignidade, expressa na fraternidade, na liberdade e na igualdade e, por conseguinte, na intervenção na vida da comunidade. E, se alguns cristãos são especialmente interpelados para a vida sacerdotal, religiosa e missionária, todos os cristãos, pelo Batismo, são e devem sentir-se chamados à santidade. Porém, a santidade não é mais um privilégio de uns tantos e tantas, nem uma lavagem de pés para ascender ao pódio dos altares, mas um compromisso com o discipulado com vista à profecia e apostolado.

Tudo pode ficar mais claro com a reflexão sobre as passagens que evocam a chamada a Samuel (1Sm 3,3b-10.19) e a escolha dos primeiros discípulos de Jesus (Jo 1,35-42).

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Atentando no episódio de Samuel, é de registar que a vocação é sempre iniciativa de Deus (“o Senhor chamou Samuel”) e segundo critérios que nos escapam, mas que nos desafiam. Depois, a anotação de que “Samuel ainda não conhecia o Senhor porque nunca se lhe tinha manifestado a Palavra do Senhor” sugere que o chamamento parte só de Deus e é iniciativa exclusiva de Deus, a que Samuel, a princípio é totalmente alheio. Ademais, a indicação de que a chamada ocorreu de noite (“A lâmpada de Deus ainda não se tinha apagado”) insinua que a voz de Deus (“theîa klêsis) se torna mais facilmente percetível no silêncio, quando o coração e a mente do homem abandonam a preocupação com os problemas diários e estão mais livres e disponíveis para escutarem o apelo e o desafio de Deus.

Por fim, é de considerar a forma como se processa a resposta de Samuel. O jovem, não percebendo que se tratava da voz de Deus, foi ter com Eli, que achara estranha tal chamada e apenas sabia que não tinha chamado o jovem. Só à terceira vez é que topou que era o Senhor quem pretendia falar com o jovem.

E aqui temos a importância do papel do intermediário entre o Deus que chama e aquele que é chamado. Assim, Eli ensina Samuel a abrir o coração ao chamamento de Deus (“se fores chamado outra vez, responde: ‘Fala, Senhor; o teu servo escuta.”). Na verdade, muitas vezes, os irmãos, sobretudo os mais sábios e experientes, que nos rodeiam têm papel decisivo na perceção da vontade de Deus a nosso respeito e na sensibilização aos apelos de Deus. Porém, tudo isto não resulta se aquele que é chamado não tiver prestado atenção à voz ou aos seus sinais, se rejeitar a mediação humana, se não aceitar o desafio ou se, tendo respondido ao desafio, vier a desistir de continuar. 

Por isso, o autor humano do texto põe em relevo a disponibilidade de Samuel para ouvir e para acolher a voz de Deus: “Fala, Senhor; o teu servo escuta”. “Escutar”, no mundo bíblico, significa não só ouvir com os ouvidos, mas, sobretudo, acolher no coração e transformar o que se ouviu em compromisso de vida. O que Samuel diz a Deus é que está disposto a acolher o seu e desafio e a comprometer-Se com ele, ou seja, aceita embarcar no desafio profético e ser um sinal vivo de Deus, voz “humana” de Deus, na vida e na história do seu Povo.

Na verdade, a história do Povo atravessava um momento dramático. Era a fase pré-monárquica, em que era crescente a infidelidade à lei e aumentava o fascínio pela monarquia, como solução dos problemas que o povo vivia, notando-se raramente a presença de Deus. No entanto, o Senhor não abandona o seu Povo e continua a chamar pessoas para colaborarem com Ele na salvação do Povo. Assim foi com Abraão, com Moisés e agora com Samuel.

Samuel foi o filho que Deus concedeu à estéril Ana após a sua oração angustiosa, mas confiante. E Ana ofereceu este seu filho ao serviço do templo e é aí, no santuário de Silo onde se encontrava a arca da aliança, que Deus o chama para ser juiz e profeta. O chamamento de Samuel marca o início do movimento profético. E é chamado Samuel e não outro, porque assim o quer o Senhor, que não escolhe, muitas vezes, os capacitados, mas capacita os chamados.

Samuel não se limita a ouvir a Palavra de Deus, mas compromete-se com ela. Assim também o nosso encontro com a Palavra de Deus não pode limitar-se a um encontro meramente informativo, mas tem de ser um evento performativo. A Palavra de Deus não existe só para nos informar, mas para transformar a nossa vida na obediência a tal Palavra.

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Por seu turno, a passagem evangélica desta dominga (Jo 1,35-42) fala da vocação dos primeiros discípulos de Jesus. Estamos na secção introdutória do Evangelho de João, em que o evangelista nos apresenta Jesus, ou seja, com a entrada em cena de diversas personagens, faz várias asserções sobre a identidade de Jesus. Neste 2.º domingo do Tempo Comum no Ano B, a personagem que nos ajuda a descobrir a verdadeira identidade de Jesus é João Batista. É ele quem afirma de Jesus “Eis o cordeiro de Deus”. E é tal o testemunho que leva os dois discípulos de João a seguirem Jesus.

Há aqui uma modalidade de vocação que passa pela reconversão vocacional. Estes dois já eram discípulos, mas, por vontade ou condescendência do mestre passaram a outra escola a outro mestre, Aquele que veio depois de João Batista, o Messias prometido.

Talvez seja oportuno, agregar ao conceito de vocação o conceito de “discípulo”. A palavra vem diretamente do latim “discipulus”, o que aprende (do verbo “disco”). Ora, para haver discípulos, tem de haver quem ensine. Em latim, quem ensina é o “docens(docente, vd verbo “doceo”, ensinar), o “magister(mestre, vd verbo “tero”, tornear, moldar; e advérbio “magis”, mais), o “professor” (em latim, “professor”, que sabe uma arte, uma ciência e dá testemunho dela, faz profissão dela). Tem de haver conteúdos, ou seja, o que se aprende – a “disciplina” (cognata de “disco” e de “discipulus”), o que se ensina, ou seja, a doutrina (em latim, “doctrina”, cognata de “doceo”), o que se sabe ou conhece, ou seja, a ciência e o conhecimento (em latim, respetivamente, “scientia”, cognata de “scio”, saber, e “cognitio”, cognata de “cognosco”, conhecer). Ora, discípulo, mestre e doutrina fazem a escola, o sistema.

Em grego, temos como discípulo, o “mathêtês(o que aprende – vb “manthánô”), como mestre, o “didáskalos(o que ensina – vb “disdaskô”) e como doutrina, ciência e erudição, a “paideia”, a “epistêmê”, o “máthêma” e a “sophía”. E, como escola, temos a “skholê” e o “didaskaleîon”.

Entre os gregos e os romanos, salvo raras exceções (vg: Pitágoras que estabeleceu a vida comunitária), os discípulos eram levados até ao mestre e voltavam para casa. Com Jesus não foi assim. Jesus escolheu, chamou e convidou a que O seguissem. E o caminho é o da cruz: “Se alguém quiser seguir-Me, tome a sua cruz e siga-Me(Lc 9,23).

Sustenta Dom António Couto que João Batista permanece “estacado” (eistêkei), em Bethabara (Casa de passagem), imóvel e atento. Está de passagem ocupando “o seu lugar estreito e aberto entre o ‘deslugar’ e a casa, o deserto e a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. Põe-se estrategicamente do outro lado do Jordão, onde o povo do Êxodo parara outrora, para preparar a entrada na Terra Prometida, atravessando o Jordão. É desse lugar de passagem, em que está postado como guarda ou sentinela vigilante, que João vê (emblépô) Jesus que passa (peripatoûnti). Jesus vai a passar: Ele é o caminho (Jo 14,6), ao passo que João está parado, pois não é o caminho. E João aponta Jesus como o Cordeiro de Deus, apresenta-no-lo e põe-nos em andamento atrás d’Ele. Cordeiro diz-se em aramaico (então língua comum) talya’, termo que, além de “cordeiro”, significa “servo”, “filho” e “pão”. Aqui temos Jesus magistralmente apresentado: Cordeiro, Servo, Filho e Pão de Deus – a identidade acima aludida.  

Seja como for, a verdadeira identidade de Jesus é definida na sua verdade e simplicidade. Como cordeiro manso e dócil, não vem com fulgor que cega ou poder que esmaga, mas como quem ama e serve com radical humildade, mansidão e proximidade. Mais: este Cordeiro é de Deus e não de qualquer rebanho mundano: é Deus o seu pastor.

E o evangelista João, ao colocar Jesus, no momento da Paixão, a morrer na hora em que eram sacrificados os cordeiros para a ceia pascal, mais uma vez no-Lo apresenta como o verdadeiro cordeiro Pascal. De facto, é Jesus o enviado por Deus a salvar o seu Povo da escravidão do pecado. É Jesus o enviado por Deus que vem realizar a Páscoa definitiva.

Da susodita afirmação do Batista, surge o seguimento dos seus dois discípulos. Prontificam-se a seguir Jesus, o caminho (sem caminho teriam de ficar parados), caminham atrás de Jesus, seguem Jesus no caminho do amor fiel que O levará até à cruz. Parece que a iniciativa é de João, quando ele, apresentando o mestre absoluto, tornou-se só a ocasião. Parece também que a iniciativa é dos dois discípulos do Batista, mas em si não passou duma atração não consolidada. Na verdade, a iniciativa é de Jesus, que se volta e pergunta: “Que procurais?”. Jesus não afirma: pergunta. Não começa uma aula, mas entabula um colóquio vital. Ora, esta pergunta do Senhor recorda uma verdade fundamental da vocação. Em todas as vocações há um momento de verdade sobre as nossas expectativas e as nossas verdadeiras motivações. Com efeito, pode haver alguém que queira seguir Jesus por valores bem diferentes dos anunciados por Jesus – o que não pode ser.

Jesus reconhece, naqueles homens, homens à procura, que não sabem dizer o que procuram, mas desejam saborear o pão que só Jesus pode dar em sua Casa. A questão que os move é onde mora o Mestre. Conhecidas as motivações dos seus seguidores, Jesus, formulando a resposta-convite “Vinde e vede(Jo 1,39), aviva e sacia-lhes a sede. Não lhes entrega livro de instruções, manual de doutrinas e preceitos ou súmula teológica, mas convida-os a fazerem a experiência, chama-os a viver a relação pessoal de comunhão com Ele. E a indicação da hora pelo narrador quererá dizer que, para os dois, aquela hora foi hora decisiva. Foram e viram quem era (ideîn) e moraram com Ele um dia (Jo 1,39), simbolismo para indicar o “de agora em diante, sempre”. Perceberam que era aquela a Casa deles. O mesmo pode suceder connosco.

Porém, é de ter em conta que a vocação de uma pessoa ao discipulado não é um caso isolado: somos chamados ao condiscipulado: os discípulos são condiscípulos (em latim, “condiscipuli” e, em grego, “synmathetaí”). Somos convocados (em latim, “convocati” e, em grego, “sýgklêtoi”). Somos Igreja!

Contudo, a vocação não termina aqui. André, o Prôtóklêtos Andréas, o ‘primeiro chamado’, como o qualifica a Tradição Oriental, foi logo procurar, encontrar (o verbo eurískô supõe um encontro após a busca, não um encontro casual) e chamar (“primeiro chamante”), o seu irmão Simão, e trouxe-o de casa para a Casa, para Jesus (cf Jo 1,40-42). “André disse a Simão: ‘Encontramos o Messias’ … e levou-o a Jesus”. Vemos aqui a vocação como iniciativa de Jesus, mas por intermédio de outro discípulo, como sucede tantas vezes hoje. De facto, quem faz a experiência de Deus, descobre uma alegria tal que não a pode guardar só para si e, por isso, anuncia e convida outros para o encontro decisivo de todas as vidas. O testemunho do chamado desperta vocações.

“Olhando-o por dentro (emblépô autô), Jesus disse: “Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro(Jo 1,42). Depois, chama Filipe, sem explicação (Jo 1,43). E Filipe leva a Jesus Natanael sem explicação ou demonstração convincente. Na verdade, a demonstração é frágil face à experiência que implica a vida. E a eficácia do testemunho surge, não quando a testemunha incita o destinatário a inclinar-se perante as provas, mas quando o incita a fazer a experiência, levando-o a implicar a própria vida. A experiência da testemunha é mais forte e mais radical que as provas que eventualmente queira dar. É por isso que Filipe fala de Jesus a Natanael, mas, face às objeções deste, não lhe dissipa as dúvidas (Jo 1,45-46), mas diz-lhe simplesmente “Vem e vê!(Jo 1,46), como Jesus fizera aos primeiros dois discípulos, os que vinham da escola do Batista.

Vemos que os discípulos de Jesus são marcados pelo seguimento, pois são chamados a ir atrás de Jesus para onde ele Vai, e pelo testemunho, ou seja, pelo condão de partilhar a experiência que vivem. Quer dizer: como Samuel fora chamado à profecia, estes são chamados à nova profecia e à missão pela palavra e pelo testemunho.    

E Dom António Couto recorda que o chamamento de Simão, mudando-lhe o nome para Kêphâs, mudou-lhe pessoa e vida. O termo hebraico normal para dizer “rocha”, “rochedo”, “pedra firme” é tsûr ou sela‘, que designa Deus no AT por 33 vezes. Mas o hebraico também tem o termo keph, aramaico kêpha’, para designar rocha, não na sua solidez, mas enquanto escavada, ou gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os ninhos, os animais guardam as crias e os homens se refugiam em caso de guerra. Não sendo lugar sólido, propicia solidez e proteção – termos que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver – em vasto campo semântico, por exemplo: kaph (palma da mão)keph (rochedo esburacado – grutas)kêpha’ (aramaico, rochedo esburacado)kêphãs (grego, rochedo esburacado e acolhedor), nome dado por Jesus a Pedro (Jo 1,42), única vez nos Evangelhos; kipah (folha de palmeira, que protege do sol; significa também o que os judeus ortodoxos usam na cabeça para indicar a proteção de Deus)kaphar (cobrir, perdoar); e kaporet (cobertura, perdão) (cf Rómulo Souza, Palavra, Parábola, Ed Santuário, pgs 236-245).

É assim que os discípulos agora trilham os caminhos de Cristo, traçados pelo mundo, sob a batuta do novo Simão (hoje, Francisco), qual aberta e acolhedora casa, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão de cuidar de todos os filhos de Deus. São os apóstolos, novos profetas, sacerdotes e líderes – promovendo um povo de profetas, sacerdotes e reis e santos!

2021.01.17 – Louro de Carvalho

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