No início do
designado por Tempo Comum no Ano Litúrgico, somos confrontados com o tema da
vocação ou chamamento (em latim, “vocatio”
e, em grego, “klêsis”).
Obviamente,
falando em chamamento em termos espirituais e litúrgicos, não estamos a
referir-nos ao chamamento a que assistimos ou que nos interpela diariamente,
mas ao chamamento do Senhor, um chamamento de vida, não para ficarmos na mesma,
no ensimesmamento, mas para sairmos de nós mesmos, da nossa zona de conforto e
irmos ao encontro do Senhor em Si e nos irmãos. É um chamamento para fora de
nós ou em saída (em latim, “evocatio”
e, em grego, “ekklêsis”). Por outro lado, é a realidade com que se confrontam,
não apenas os que Deus quer para o sacerdócio ou para a vida religiosa e/ou
missionária, mas todo o ser humano e, em especial, os que detêm o nome de
cristãos. E estes são chamados cada um pelo seu nome, mas também para
integrarem a comunidade que se sente chamada para escutar o Senhor, celebrar os
mistérios e partir em testemunho. É a Igreja reunida (em latim, “ecclesia”, “concilium” e, em grego, “ekklêsía”,
“sýnodos”) e em saída (em latim, “exiens” e, em grego, “en
éxodôi”).
Assim, todo
o ser humano é chamado à vida, que postula a dignidade, expressa na
fraternidade, na liberdade e na igualdade e, por conseguinte, na intervenção na
vida da comunidade. E, se alguns cristãos são especialmente interpelados para a
vida sacerdotal, religiosa e missionária, todos os cristãos, pelo Batismo, são
e devem sentir-se chamados à santidade. Porém, a santidade não é mais um
privilégio de uns tantos e tantas, nem uma lavagem de pés para ascender ao
pódio dos altares, mas um compromisso com o discipulado com vista à profecia e
apostolado.
Tudo pode
ficar mais claro com a reflexão sobre as passagens que evocam a chamada a
Samuel (1Sm
3,3b-10.19) e a escolha
dos primeiros discípulos de Jesus (Jo 1,35-42).
***
Atentando no episódio de Samuel, é de registar que a vocação
é sempre iniciativa de Deus (“o Senhor chamou
Samuel”) e segundo critérios que nos escapam, mas que nos desafiam. Depois, a
anotação de que “Samuel ainda não conhecia o Senhor porque nunca se lhe tinha
manifestado a Palavra do Senhor” sugere que o chamamento parte só de Deus e é iniciativa
exclusiva de Deus, a que Samuel, a princípio é totalmente alheio. Ademais, a
indicação de que a chamada ocorreu de noite (“A lâmpada de Deus ainda não se
tinha apagado”) insinua que a
voz de Deus (“theîa klêsis”) se torna mais facilmente percetível no silêncio, quando o
coração e a mente do homem abandonam a preocupação com os problemas diários e
estão mais livres e disponíveis para escutarem o apelo e o desafio de Deus.
Por
fim, é de considerar a forma como se processa a resposta de Samuel. O jovem,
não percebendo que se tratava da voz de Deus, foi ter com Eli, que achara
estranha tal chamada e apenas sabia que não tinha chamado o jovem. Só à
terceira vez é que topou que era o Senhor quem pretendia falar com o jovem.
E
aqui temos a importância do papel do intermediário entre o Deus que chama e
aquele que é chamado. Assim, Eli ensina Samuel a
abrir o coração ao chamamento de Deus (“se
fores chamado outra vez, responde: ‘Fala,
Senhor; o teu servo escuta.”). Na verdade, muitas vezes, os irmãos, sobretudo os mais
sábios e experientes, que nos rodeiam têm papel decisivo na perceção da vontade
de Deus a nosso respeito e na sensibilização aos apelos de Deus. Porém, tudo
isto não resulta se aquele que é chamado não tiver prestado atenção à voz ou
aos seus sinais, se rejeitar a mediação humana, se não aceitar o desafio ou se,
tendo respondido ao desafio, vier a desistir de continuar.
Por
isso, o autor humano do texto põe em relevo a
disponibilidade de Samuel para ouvir e para acolher a voz de Deus: “Fala, Senhor; o teu servo escuta”. “Escutar”,
no mundo bíblico, significa não só ouvir com os ouvidos, mas, sobretudo, acolher
no coração e transformar o que se ouviu em compromisso de vida. O que Samuel diz
a Deus é que está disposto a acolher o seu e desafio e a comprometer-Se com ele,
ou seja, aceita embarcar no desafio profético e ser um sinal vivo de Deus, voz
“humana” de Deus, na vida e na história do seu Povo.
Na verdade, a história do Povo atravessava um momento
dramático. Era a fase
pré-monárquica, em que era crescente a infidelidade à lei e aumentava o
fascínio pela monarquia, como solução dos problemas que o povo vivia,
notando-se raramente a presença de Deus. No entanto, o Senhor não abandona o
seu Povo e continua a chamar pessoas para colaborarem com Ele na salvação do Povo.
Assim foi com Abraão, com Moisés e agora com Samuel.
Samuel foi o
filho que Deus concedeu à estéril Ana após a sua oração angustiosa, mas
confiante. E Ana ofereceu este seu filho ao serviço do templo e é aí, no
santuário de Silo onde se encontrava a arca da aliança, que Deus o chama para
ser juiz e profeta. O chamamento de Samuel marca o início do movimento
profético. E é chamado Samuel e não outro, porque assim o quer o Senhor, que não
escolhe, muitas vezes, os capacitados, mas capacita os chamados.
Samuel não
se limita a ouvir a Palavra de Deus, mas compromete-se com ela. Assim também o
nosso encontro com a Palavra de Deus não pode limitar-se a um encontro meramente
informativo, mas tem de ser um evento performativo. A Palavra de Deus não existe
só para nos informar, mas para transformar a nossa vida na obediência a tal
Palavra.
***
Por seu
turno, a passagem evangélica desta dominga (Jo 1,35-42) fala da vocação dos primeiros discípulos de Jesus. Estamos
na secção introdutória do Evangelho de João, em que o evangelista nos apresenta
Jesus, ou seja, com a entrada em cena de diversas personagens, faz várias asserções
sobre a identidade de Jesus. Neste 2.º domingo do Tempo Comum no Ano B, a
personagem que nos ajuda a descobrir a verdadeira identidade de Jesus é João
Batista. É ele quem afirma de Jesus “Eis
o cordeiro de Deus”. E é tal o testemunho que leva os dois discípulos de
João a seguirem Jesus.
Há aqui uma
modalidade de vocação que passa pela reconversão vocacional. Estes dois já eram
discípulos, mas, por vontade ou condescendência do mestre passaram a outra
escola a outro mestre, Aquele que veio depois de João Batista, o Messias
prometido.
Talvez seja
oportuno, agregar ao conceito de vocação o conceito de “discípulo”. A palavra
vem diretamente do latim “discipulus”,
o que aprende (do verbo “disco”). Ora, para haver discípulos, tem de haver quem
ensine. Em latim, quem ensina é o “docens”
(docente, vd
verbo “doceo”, ensinar), o “magister”
(mestre, vd
verbo “tero”, tornear, moldar; e
advérbio “magis”, mais), o “professor” (em latim, “professor”, que sabe uma arte, uma ciência e dá testemunho dela,
faz profissão dela). Tem de
haver conteúdos, ou seja, o que se aprende – a “disciplina” (cognata de
“disco” e de “discipulus”), o que se
ensina, ou seja, a doutrina (em latim, “doctrina”,
cognata de “doceo”), o que se sabe ou conhece, ou seja, a ciência e o conhecimento
(em latim,
respetivamente, “scientia”, cognata
de “scio”, saber, e “cognitio”, cognata de “cognosco”, conhecer). Ora, discípulo, mestre e doutrina fazem a escola, o
sistema.
Em grego,
temos como discípulo, o “mathêtês” (o que
aprende – vb “manthánô”), como mestre, o “didáskalos”
(o que
ensina – vb “disdaskô”) e como doutrina, ciência e erudição, a “paideia”, a “epistêmê”, o “máthêma” e
a “sophía”. E, como escola, temos a “skholê” e o “didaskaleîon”.
Entre os
gregos e os romanos, salvo raras exceções (vg: Pitágoras que estabeleceu a
vida comunitária), os
discípulos eram levados até ao mestre e voltavam para casa. Com Jesus não foi
assim. Jesus escolheu, chamou e convidou a que O seguissem. E o caminho é o da
cruz: “Se alguém quiser seguir-Me, tome a
sua cruz e siga-Me” (Lc 9,23).
Sustenta Dom
António Couto que João Batista permanece “estacado” (eistêkei), em Bethabara (Casa de passagem), imóvel e atento. Está de passagem ocupando “o seu
lugar estreito e aberto entre o ‘deslugar’ e a casa, o deserto e a Terra
Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. Põe-se estrategicamente do outro
lado do Jordão, onde o povo do Êxodo parara outrora, para preparar a entrada na
Terra Prometida, atravessando o Jordão. É desse lugar de passagem, em que está
postado como guarda ou sentinela vigilante, que João vê (emblépô) Jesus que passa (peripatoûnti). Jesus vai a passar: Ele é o caminho (Jo 14,6), ao passo que João está parado, pois não é o caminho.
E João aponta Jesus como o Cordeiro de Deus, apresenta-no-lo e põe-nos em andamento
atrás d’Ele. Cordeiro diz-se em aramaico (então língua comum) talya’, termo que,
além de “cordeiro”, significa “servo”, “filho” e “pão”. Aqui temos Jesus
magistralmente apresentado: Cordeiro, Servo, Filho e Pão de Deus – a identidade
acima aludida.
Seja como
for, a verdadeira identidade de Jesus é definida na sua verdade e simplicidade.
Como cordeiro manso e dócil, não vem com fulgor que cega ou poder que esmaga,
mas como quem ama e serve com radical humildade, mansidão e proximidade. Mais:
este Cordeiro é de Deus e não de qualquer rebanho mundano: é Deus o seu pastor.
E o evangelista
João, ao colocar Jesus, no momento da Paixão, a morrer na hora em que eram
sacrificados os cordeiros para a ceia pascal, mais uma vez no-Lo apresenta como
o verdadeiro cordeiro Pascal. De facto, é Jesus o enviado por Deus a salvar o
seu Povo da escravidão do pecado. É Jesus o enviado por Deus que vem realizar a
Páscoa definitiva.
Da susodita
afirmação do Batista, surge o seguimento dos seus dois discípulos. Prontificam-se
a seguir Jesus, o caminho (sem caminho teriam de ficar parados), caminham atrás de Jesus, seguem Jesus no caminho do
amor fiel que O levará até à cruz. Parece que a iniciativa é de João, quando
ele, apresentando o mestre absoluto, tornou-se só a ocasião. Parece também que
a iniciativa é dos dois discípulos do Batista, mas em si não passou duma
atração não consolidada. Na verdade, a iniciativa é de Jesus, que se volta e pergunta:
“Que procurais?”. Jesus não afirma: pergunta.
Não começa uma aula, mas entabula um colóquio vital. Ora, esta pergunta do
Senhor recorda uma verdade fundamental da vocação. Em todas as vocações há um
momento de verdade sobre as nossas expectativas e as nossas verdadeiras
motivações. Com efeito, pode haver alguém que queira seguir Jesus por valores
bem diferentes dos anunciados por Jesus – o que não pode ser.
Jesus reconhece,
naqueles homens, homens à procura, que não sabem dizer o que procuram, mas
desejam saborear o pão que só Jesus pode dar em sua Casa. A questão que os move
é onde mora o Mestre. Conhecidas as motivações dos seus seguidores, Jesus,
formulando a resposta-convite “Vinde e
vede” (Jo 1,39), aviva e
sacia-lhes a sede. Não lhes entrega livro de instruções, manual de doutrinas e
preceitos ou súmula teológica, mas convida-os a fazerem a experiência, chama-os
a viver a relação pessoal de comunhão com Ele. E a indicação da hora pelo
narrador quererá dizer que, para os dois, aquela hora foi hora decisiva. Foram
e viram quem era (ideîn) e moraram
com Ele um dia (Jo 1,39), simbolismo
para indicar o “de agora em diante, sempre”. Perceberam que era aquela a Casa
deles. O mesmo pode suceder connosco.
Porém, é de
ter em conta que a vocação de uma pessoa ao discipulado não é um caso isolado:
somos chamados ao condiscipulado: os discípulos são condiscípulos (em latim, “condiscipuli” e, em grego, “synmathetaí”). Somos convocados (em latim, “convocati” e, em grego, “sýgklêtoi”). Somos Igreja!
Contudo, a
vocação não termina aqui. André, o Prôtóklêtos Andréas, o ‘primeiro
chamado’, como o qualifica a Tradição Oriental, foi logo procurar, encontrar (o verbo eurískô supõe
um encontro após a busca, não um encontro casual) e chamar (“primeiro chamante”), o seu
irmão Simão, e trouxe-o de casa para a Casa, para Jesus (cf Jo
1,40-42). “André disse a Simão: ‘Encontramos o Messias’ … e levou-o a Jesus”.
Vemos aqui a vocação como iniciativa de Jesus, mas por intermédio de outro
discípulo, como sucede tantas vezes hoje. De facto, quem faz a experiência de
Deus, descobre uma alegria tal que não a pode guardar só para si e, por isso,
anuncia e convida outros para o encontro decisivo de todas as vidas. O
testemunho do chamado desperta vocações.
“Olhando-o
por dentro (emblépô autô), Jesus disse:
“Tu és Simão, o filho de João; serás
chamado Kêphâs, que se
traduz Pedro” (Jo 1,42). Depois, chama
Filipe, sem explicação (Jo 1,43). E Filipe
leva a Jesus Natanael sem explicação ou demonstração convincente. Na verdade, a
demonstração é frágil face à experiência que implica a vida. E a eficácia do
testemunho surge, não quando a testemunha incita o destinatário a inclinar-se perante
as provas, mas quando o incita a fazer a experiência, levando-o a implicar a
própria vida. A experiência da testemunha é mais forte e mais radical que as
provas que eventualmente queira dar. É por isso que Filipe fala de Jesus a
Natanael, mas, face às objeções deste, não lhe dissipa as dúvidas (Jo 1,45-46), mas diz-lhe simplesmente “Vem e vê!” (Jo 1,46), como Jesus
fizera aos primeiros dois discípulos, os que vinham da escola do Batista.
Vemos que os
discípulos de Jesus são marcados pelo seguimento, pois são chamados a ir atrás
de Jesus para onde ele Vai, e pelo testemunho, ou seja, pelo condão de partilhar
a experiência que vivem. Quer dizer: como Samuel fora chamado à profecia, estes
são chamados à nova profecia e à missão pela palavra e pelo testemunho.
E Dom
António Couto recorda que o chamamento de Simão, mudando-lhe o nome para Kêphâs, mudou-lhe pessoa e vida. O termo
hebraico normal para dizer “rocha”, “rochedo”, “pedra firme” é tsûr ou sela‘,
que designa Deus no AT por 33 vezes. Mas o hebraico também tem o termo keph,
aramaico kêpha’, para designar rocha, não na sua solidez, mas
enquanto escavada, ou gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde
os pássaros fazem os ninhos, os animais guardam as crias e os homens se
refugiam em caso de guerra. Não sendo lugar sólido, propicia solidez e proteção
– termos que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver – em
vasto campo semântico, por exemplo: kaph (palma da
mão); keph (rochedo
esburacado – grutas); kêpha’ (aramaico, rochedo esburacado); kêphãs (grego, rochedo esburacado e
acolhedor), nome dado por Jesus a Pedro (Jo 1,42), única vez nos Evangelhos; kipah (folha de
palmeira, que protege do sol; significa também o que os judeus ortodoxos usam
na cabeça para indicar a proteção de Deus); kaphar
(cobrir,
perdoar); e kaporet (cobertura,
perdão) (cf Rómulo Souza, Palavra, Parábola, Ed Santuário, pgs 236-245).
É assim que
os discípulos agora trilham os caminhos de Cristo, traçados pelo mundo, sob a
batuta do novo Simão (hoje, Francisco), qual aberta
e acolhedora casa, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão
de cuidar de todos os filhos de Deus. São os apóstolos, novos profetas, sacerdotes
e líderes – promovendo um povo de profetas, sacerdotes e reis e santos!
2021.01.17 –
Louro de Carvalho
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