quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Quando governantes dizem e se contradizem, reina a confusão

 

 

Não posso dizer que o Ministro da Administração Interna ou a Ministra da Justiça, o primeiro no caso do SEF e a segunda no caso dos candidatos a procurador europeu. Com efeito, as formas de mau relacionamento com a verdade podem assumir modalidades várias como o lapso, a inadvertência, a ignorância, o erro e, obviamente, a mentira.

Do caso do SEF já disse o que pensava vincando a hediondez do crime de assassinato dum cidadão que estava à guarda dum Estado de direito, a não assunção pronta das consequências indemnizatórias e o falar tardio dos responsáveis políticos e administrativos, das oposições, dos formadores da opinião pública e dos movimentos cívicos.

O caso que, neste momento, sacode o Ministério da Justiça obviamente não tem a gravidade do anterior porquanto não envolve crime de sangue. Não obstante, enquanto no caso do SEF se podem admitir hipóteses como excesso de força, falta de controlo emocional, erro de cálculo, etc., aqui é nítida a tentativa de favorecimento, a cunha, a recomendação indevida, o tráfico de influências ou o que lhe queiramos chamar à face da lei ou do senso comum – e tudo estribado em aduções que não correspondem à verdade.

É mau que político experiente ou governante na crista da onda (ambos com formação jurídica) justifiquem dizendo que se trata de meros lapsos (sem importância) e não há a categoria de procurador-geral-adjunto ou confundindo liderança investigatória com representação do Estado em julgamento – só para justificar ante a REPER (Representação Permanente de Portugal na UE) a não aceitação, por parte do Governo português, da escolha do candidato a procurador europeu colocado em primeiro lugar pelo respetivo comité independente de entre os três que o CSMP (Conselho Superior do Ministério Público) selecionou.

Se se trata de mero lapso e de informação que não determina a escolha feita, é de questionar por que motivo a Ministra se apressa a enviar carta a corrigir tal informação.

Também não adianta nada a alegação de que a Ministra sabia ou não sabia do que se passava. Diz que não sabia, mas o ex-Diretor-Geral da Política de Justiça refere que a nota informativa enviada à REPER em reforço do currículo do procurador escolhido foi redigida de acordo com instruções (não diz de quem) de que a Ministra tinha conhecimento. Oxalá que não tenha sido redigida por ele ou a seu mando sob instruções dele proprio, de subordinado, da governante ou de qualquer outro membro do Governo. Por sua vez, a antecessora de Francisca Van Dunem no cargo sustenta que a Ministra não tinha como não saber do que se passava. E lá saberá porquê, sendo caso para deduzir que Paula Teixeira da Cruz tinha conhecimento de todos os desmandos que ocorriam no Ministério da Justiça (MJ) no tempo da troika!

A única consequência político-administrativa cifrou-se na apresentação do pedido de demissão do Diretor-Geral da Política de Justiça que se justificou em mensagem deixada no site daquele departamento dizendo, além do já mencionado acima, que, embora não tendo responsabilidades no ocorrido, observava o princípio republicano segundo o qual os dirigentes devem assumir o ónus do que de mal ocorre nos serviços que lideram. Resta saber se o disse por si ou como recado à governante. E, como supostamente o Governo não gostou da mensagem, o Secretário de Estado da Justiça, que presidira ao júri do CSM (Conselho Superior da Magistratura) para selecionar um candidato da magistratura judicial (também esta poderia fornecer o procurador europeu) – um juiz desembargador que era presidente do tribunal da comarca do Porto, mandou retirar do referido site o comunicado do predito ex-diretor-geral, alegadamente por não ele ter o direito de fazer dum espaço comunicacional dum departamento do Estado a sua quinta. Mal avisado este membro do Governo, já que o diretor-geral no momento da sua demissão tinha todo o direito – e até o dever – de se explicar.

A Ministra da Justiça aceitou prontamente o pedido de demissão do diretor-geral, mas não terá querido saber do apuramento das responsabilidades, como se a demissão fosse o remédio.

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Além das reações políticas – que passam pela explicação cabal do que aconteceu e pela eventual exigência de demissão da governante –, são notórias as tomadas de posição em ordem à reposição da normalidade em termos jurídicos.

A candidata preterida limitou-se a apresentar queixa à Procuradoria Europeia. Porém, outras reações mais ousadas estão na ribalta.  

Assim, o bastonário da Ordem dos Advogados (OA) considera que o caso dos dados falsos sobre o procurador escolhido é “um assunto de extrema gravidade”, podendo configurar a eventual prática de ilícitos criminais como abuso de poder e falsificação de documentos. Por isso, a OA vai apresentar ao MP participação criminal contra incertos após as notícias sobre irregularidades no processo de nomeação do procurador europeu.

Em comunicado enviado à Lusa, o bastonário da AO revela que decidiu pedir ao MP que “averigúe a eventual responsabilidade criminal no caso dos dados falsos sobre o procurador José Guerra”, considerando este “um assunto de extrema gravidade que não pode ficar encerrado com a simples declaração de que se tratou de lapso” dos serviços do MJ, especialmente depois das posteriores afirmações do diretor-geral da Política de Justiça, que se demitiu. E justifica-se como o facto de competir à OA “defender o Estado de Direito e colaborar na administração da justiça”, não podendo deixar de atuar face a “situações que colocam em causa a reputação das instituições e dos documentos oficiais do Estado” e até das próprias “instituições europeias”.

Portanto, a OA pretende o cabal esclarecimento dos factos através de cuidadosa investigação por parte do MP, já que poderá estar em causa a eventual prática de ilícitos criminais como abuso de poder e falsificação de documentos que, se fossem provados, teriam um “indiscutível impacto na visão que os cidadãos têm das entidades que os regem”. Por conseguinte, entendeu solicitar ao MP, como titular da ação penal em Portugal, que abra o competente inquérito criminal e proceda “ao apuramento rigoroso da verdade, para que não subsistam dúvidas sobre o regular funcionamento das instituições, a bem da justiça, da legalidade, e do Estado de Direito em Portugal e na Europa”.

Por seu turno, a Lusa já diz ter questionado a Procuradoria-Geral da República (PGR) se iria abrir um inquérito para averiguar os factos relacionados com os alegados lapsos e falsidades contidas no currículo do procurador europeu, mas sem ter obtido resposta.

Também o juiz desembargador José Rodrigues da Cunha avançou com uma ação no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto contra o Ministério da Justiça, a pedir a anulação do ato que o excluiu “da candidatura do procedimento de nomeação ou designação de personalidades indicadas pelo Governo para o cargo de Procurador Europeu Nacional e, consequentemente, o ato que designa os três candidatos Procuradores da Republica”.

Mais: o ex-presidente da Comarca do Porto – que cessou funções a 4 de janeiro – deu igualmente entrada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa com uma intimação contra o MJ para “prestação de informações e passagem de certidão de todos os atos praticados desde 22 de março de 2019 (inclusive) até ao momento da nomeação do Procurador Europeu Nacional na Procuradoria Europeia, José Eduardo Guerra”. Com efeito, até agora o MJ não lhe fez chegar o despacho onde foi decidida a sua exclusão. Assim, a intimação resultou do facto de o MJ “não ter apresentado voluntariamente tais documentos nem prestado tais informações, no prazo previsto, pelo que o intimante desconhece o que consta em qualquer eventual despacho ou sequer se existe”. E, quanto à ação interposta no TAF do Porto, fundamenta-se no facto de até à presente data não ter sido notificado do ato administrativo que determinou a sua exclusão, “cujo conteúdo, teor, data e autoria, ou seja, os seus elementos essenciais, se desconhece”, de consubstanciar uma “preterição de audiência prévia, consagrado constitucionalmente” e de ter havido “violação das regras procedimentais”, nomeadamente quanto aos prazos estabelecidos/fixados pelo MJ e aos quais se autovinculou e não cumpriu, com violação do princípio da legalidade, da boa-fé, da confiança, bem como da imparcialidade/transparência”.

Aduz também que se “verifica uma situação de falta de fundamentação da decisão de exclusão da candidatura, que padece de vício de forma”, e que a seleção dos três candidatos do MP “foi extemporânea, por ter ocorrido cerca de duas semanas após a data limite que consta no aviso para a conclusão do procedimento de seleção”.

E lembra que nenhum dos três procuradores da República selecionados e indicados pelo Governo reunia “a condição de elegibilidade”, pois, segundo o regulamento um dos critérios é “possuir as habilitações necessárias para serem nomeados para o exercício das mais altas funções do Ministério Público no seu Estado-membro”. Isso mesmo é expressamente assumido e reconhecido pelo próprio MJ no documento denominado ‘Cronologia do Processo de Seleção para Procurador Europeu Nacional’, divulgado em 14 de outubro, após a audição da Ministra da Justiça na Assembleia da República, como referem os documentos.

Mais revela o juiz desembargador, que vai regressar ao TRP (Tribunal da Relação do Porto), que, cerca de um mês depois, em 11 de novembro de 2020, enviou uma exposição ao presidente do PE (Parlamento Europeu) e a outras instâncias europeias a denunciar a violação das regras do processo de seleção para procurador europeu nacional, sustentando que o procurador em causa “não preenchia” todas as condições de elegibilidade para o cargo, apontando igualmente o “incumprimento do prazo” por parte do MJ para a conclusão do procedimento de seleção e afirmando que houve “violação dos princípios da imparcialidade, da igualdade ou transparência e da legalidade e da boa-fé”.

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Face a estes dados, que é de todo conveniente que os tribunais tirem a limpo – do que duvido, dado o facto da emanação da PGR do poder executivo – em nome dos legítimos interesse das pessoas e da credibilidade das instituições nacionais e europeias.

É de estranhar o silêncio cúmplice das instituições europeias, até porque um órgão criado para combater a fraude não pode partir duma situação algo fraudulenta.

Por outro lado, os decisores políticos não podem desvalorizar estes factos não os podendo considerar como um não caso ou como um caso só político ou só judicial. É o Estado de direito democrático que está em causa, bem como os cidadãos e os seus agentes. Nisto não pode haver dúvidas e, muito menos, confusão.

2021.01.06 – Louro de Carvalho

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