Não posso
dizer que o Ministro da Administração Interna ou a Ministra da Justiça, o
primeiro no caso do SEF e a segunda no caso dos candidatos a procurador europeu.
Com efeito, as formas de mau relacionamento com a verdade podem assumir
modalidades várias como o lapso, a inadvertência, a ignorância, o erro e,
obviamente, a mentira.
Do caso
do SEF já disse o que pensava vincando a hediondez do crime de assassinato dum
cidadão que estava à guarda dum Estado de direito, a não assunção pronta das consequências
indemnizatórias e o falar tardio dos responsáveis políticos e administrativos, das
oposições, dos formadores da opinião pública e dos movimentos cívicos.
O caso
que, neste momento, sacode o Ministério da Justiça obviamente não tem a
gravidade do anterior porquanto não envolve crime de sangue. Não obstante, enquanto
no caso do SEF se podem admitir hipóteses como excesso de força, falta de
controlo emocional, erro de cálculo, etc., aqui é nítida a tentativa de
favorecimento, a cunha, a recomendação indevida, o tráfico de influências ou o
que lhe queiramos chamar à face da lei ou do senso comum – e tudo estribado em aduções
que não correspondem à verdade.
É mau
que político experiente ou governante na crista da onda (ambos
com formação jurídica)
justifiquem dizendo que se trata de meros lapsos (sem importância) e não há a categoria de
procurador-geral-adjunto ou confundindo liderança investigatória com representação
do Estado em julgamento – só para justificar ante a REPER (Representação
Permanente de Portugal na UE)
a não aceitação, por parte do Governo português, da escolha do candidato a
procurador europeu colocado em primeiro lugar pelo respetivo comité independente
de entre os três que o CSMP (Conselho Superior do Ministério
Público) selecionou.
Se se
trata de mero lapso e de informação que não determina a escolha feita, é de questionar
por que motivo a Ministra se apressa a enviar carta a corrigir tal informação.
Também não
adianta nada a alegação de que a Ministra sabia ou não sabia do que se passava.
Diz que não sabia, mas o ex-Diretor-Geral da Política de Justiça refere que a
nota informativa enviada à REPER em reforço do currículo do procurador
escolhido foi redigida de acordo com instruções (não diz de quem) de que a Ministra tinha
conhecimento. Oxalá que não tenha sido redigida por ele ou a seu mando sob instruções
dele proprio, de subordinado, da governante ou de qualquer outro membro do Governo.
Por sua vez, a antecessora de Francisca Van Dunem no cargo sustenta que a Ministra
não tinha como não saber do que se passava. E lá saberá porquê, sendo caso para
deduzir que Paula Teixeira da Cruz tinha conhecimento de todos os desmandos que
ocorriam no Ministério da Justiça (MJ) no tempo da troika!
A única
consequência político-administrativa cifrou-se na apresentação do pedido de
demissão do Diretor-Geral da Política de Justiça que se justificou em mensagem
deixada no site daquele departamento dizendo, além do já mencionado acima, que,
embora não tendo responsabilidades no ocorrido, observava o princípio
republicano segundo o qual os dirigentes devem assumir o ónus do que de mal ocorre
nos serviços que lideram. Resta saber se o disse por si ou como recado à governante.
E, como supostamente o Governo não gostou da mensagem, o Secretário de Estado
da Justiça, que presidira ao júri do CSM (Conselho Superior da
Magistratura) para
selecionar um candidato da magistratura judicial (também esta
poderia fornecer o procurador europeu)
– um juiz desembargador que era presidente do tribunal da comarca do Porto,
mandou retirar do referido site o comunicado do predito ex-diretor-geral, alegadamente
por não ele ter o direito de fazer dum espaço comunicacional dum departamento
do Estado a sua quinta. Mal avisado este membro do Governo, já que o
diretor-geral no momento da sua demissão tinha todo o direito – e até o dever –
de se explicar.
A Ministra
da Justiça aceitou prontamente o pedido de demissão do diretor-geral, mas não terá
querido saber do apuramento das responsabilidades, como se a demissão fosse o remédio.
***
Além das
reações políticas – que passam pela explicação cabal do que aconteceu e pela
eventual exigência de demissão da governante –, são notórias as tomadas de posição
em ordem à reposição da normalidade em termos jurídicos.
A candidata
preterida limitou-se a apresentar queixa à Procuradoria Europeia. Porém, outras
reações mais ousadas estão na ribalta.
Assim, o bastonário da Ordem dos Advogados (OA) considera que o caso dos dados
falsos sobre o procurador escolhido é “um assunto de extrema gravidade”, podendo
configurar a eventual prática de ilícitos criminais como abuso de poder e falsificação
de documentos. Por isso, a OA
vai apresentar
ao MP participação criminal contra incertos após as notícias sobre
irregularidades no processo de nomeação do procurador europeu.
Em comunicado enviado à Lusa, o
bastonário da AO revela que decidiu
pedir ao MP que “averigúe a eventual responsabilidade criminal no caso dos
dados falsos sobre o procurador José Guerra”, considerando este “um assunto de
extrema gravidade que não pode ficar encerrado com a simples declaração de que
se tratou de lapso” dos serviços do MJ, especialmente depois das posteriores
afirmações do diretor-geral da Política de Justiça, que se demitiu. E justifica-se como o facto de competir à OA “defender
o Estado de Direito e colaborar na administração da justiça”, não podendo deixar
de atuar face a “situações que colocam em causa a reputação das instituições e
dos documentos oficiais do Estado” e até das próprias “instituições europeias”.
Portanto, a OA pretende o cabal esclarecimento dos factos através de cuidadosa
investigação por parte do MP, já que poderá estar em causa a eventual prática
de ilícitos criminais como abuso de poder e falsificação de documentos que, se
fossem provados, teriam um “indiscutível impacto na visão que os cidadãos têm
das entidades que os regem”. Por conseguinte, entendeu solicitar ao MP, como
titular da ação penal em Portugal, que abra o competente inquérito criminal e
proceda “ao apuramento rigoroso da verdade, para que não subsistam dúvidas
sobre o regular funcionamento das instituições, a bem da justiça, da
legalidade, e do Estado de Direito em Portugal e na Europa”.
Por seu turno, a Lusa já diz ter
questionado a Procuradoria-Geral da República (PGR) se iria abrir um inquérito para
averiguar os factos relacionados com os alegados lapsos e falsidades contidas
no currículo do procurador europeu, mas sem ter obtido resposta.
Também o juiz desembargador José Rodrigues da Cunha avançou com uma ação no
Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto contra o Ministério da
Justiça, a pedir a anulação do ato que o excluiu “da candidatura do procedimento de nomeação ou designação de
personalidades indicadas pelo Governo para o cargo de Procurador Europeu
Nacional e, consequentemente, o ato que designa os três candidatos Procuradores
da Republica”.
Mais: o ex-presidente da Comarca do Porto – que cessou funções a 4 de janeiro –
deu igualmente entrada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa
com uma intimação contra o MJ para
“prestação de informações e passagem de certidão de todos os atos praticados
desde 22 de março de 2019 (inclusive) até ao momento da nomeação do Procurador Europeu
Nacional na Procuradoria Europeia, José Eduardo Guerra”. Com efeito, até agora o MJ não lhe fez chegar o despacho onde
foi decidida a sua exclusão. Assim, a intimação resultou do facto de o MJ “não
ter apresentado voluntariamente tais documentos nem prestado tais informações,
no prazo previsto, pelo que o intimante desconhece o que consta em qualquer
eventual despacho ou sequer se existe”. E, quanto à ação interposta no TAF do Porto, fundamenta-se no facto
de até à presente data não ter sido notificado do ato administrativo que
determinou a sua exclusão, “cujo conteúdo, teor, data e autoria, ou seja, os
seus elementos essenciais, se desconhece”, de consubstanciar uma “preterição de
audiência prévia, consagrado constitucionalmente” e de ter havido “violação das regras procedimentais”, nomeadamente quanto aos prazos
estabelecidos/fixados pelo MJ e aos quais se autovinculou e não cumpriu, com
violação do princípio da legalidade, da boa-fé, da confiança, bem como da
imparcialidade/transparência”.
Aduz também que se “verifica
uma situação de falta de fundamentação da decisão de exclusão da candidatura,
que padece de vício de forma”, e que a seleção dos três candidatos do MP “foi extemporânea, por ter ocorrido
cerca de duas semanas após a data limite que consta no aviso para a conclusão
do procedimento de seleção”.
E lembra que nenhum dos três
procuradores da República selecionados e indicados pelo Governo reunia “a
condição de elegibilidade”, pois, segundo o regulamento um dos critérios
é “possuir as habilitações necessárias para serem nomeados para o exercício das
mais altas funções do Ministério Público no seu Estado-membro”. Isso mesmo é expressamente assumido e reconhecido pelo
próprio MJ no documento denominado ‘Cronologia do Processo de Seleção para
Procurador Europeu Nacional’, divulgado em 14 de outubro, após a audição da Ministra
da Justiça na Assembleia da República, como referem os documentos.
Mais revela o juiz desembargador, que vai regressar ao TRP (Tribunal da Relação do Porto), que, cerca de um mês depois, em 11 de novembro de 2020, enviou uma
exposição ao presidente do PE (Parlamento Europeu) e a outras instâncias europeias
a denunciar a violação das regras do processo de seleção para procurador
europeu nacional, sustentando que o procurador em causa “não preenchia” todas
as condições de elegibilidade para o cargo, apontando igualmente o “incumprimento do prazo” por parte do MJ para a
conclusão do procedimento de seleção e afirmando que houve “violação dos
princípios da imparcialidade, da igualdade ou transparência e da legalidade e
da boa-fé”.
***
Face a estes dados, que é de todo conveniente que os tribunais tirem a
limpo – do que duvido, dado o facto da emanação da PGR do poder executivo – em nome
dos legítimos interesse das pessoas e da credibilidade das instituições
nacionais e europeias.
É de estranhar o silêncio cúmplice das instituições europeias, até porque
um órgão criado para combater a fraude não pode partir duma situação algo
fraudulenta.
Por outro lado, os decisores políticos não podem desvalorizar estes factos não
os podendo considerar como um não caso ou como um caso só político ou só
judicial. É o Estado de direito democrático que está em causa, bem como os
cidadãos e os seus agentes. Nisto não pode haver dúvidas e, muito menos,
confusão.
2021.01.06 – Louro
de Carvalho
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